Um destacamento pede socorro

Retomo a escrita só hoje, dia 27 de Janeiro, uma manhã magnífica de sábado. O dia de ontem foi de tal modo ocupado, que não consegui ter tempo para conversar convosco. Aproveito agora, porque desde as seis da manhã que estou a pé e sem o capelão. Partiu. Partiu bem cedo, há cerca de meia hora, eram precisamente seis da manhã. Partiu com o furriel Teodoro e uma secção para o destacamento do Quitari. De modo que devo ter toda a manhã disponível para pôr a correspondência em dia. Devo desde já dizer que, relativamente ao pedido do capelão, ainda não consegui produzir nada de útil. Aliás, nem tive tempo de reflectir acerca do hino. Os problemas surgidos foram mais importantes. E neste instante, também não estou com vontade nem inspiração para fundir a cuca, isto é, para queimar fósforo da massa cinzenta por causa de um hino. Não significa isto que menospreze o pedido do capelão. Não! Pelo contrário, vou ter, não sei como, de lhe dar cumprimento. Mas agora prefiro aproveitar o sossego da manhã para desenvolver devidamente os tópicos registados no final da conversa anterior.

Acabo de me sentar aos comandos da minha «cronosfera» e de regular o relógio desta máquina do tempo para a noite de 18 de Janeiro. Devo acrescentar que estou a utilizar a mesma máquina do tempo com que o Capitão Mortimer viajou até ao passado e, depois, para uma data futura do planeta Terra.

Estão espantados com as minhas palavras? Estou mesmo a ver que sim. Estão completamente pasmados com o que estou para aqui a dizer e completamente fora de sintonia. Como é que hão-de saber quem é o Capitão Mortimer, se não lêem livros em banda desenhada?

As aventuras de Black e Mortimer eram as minhas favoritas, nos meus tempos de miúdo. Eram talvez as melhores e mais atraentes para mim. Eram as primeiras que lia na revista semanal de banda desenhada, o «Cavaleiro Andante», que comprava com os vinte e cinco tostões que o pai me dava todos os Sábados.

Estou agora aqui às voltas, a tentar descobrir o nome do autor destas aventuras. Creio que é belga, mas não consigo recordar-me do nome. Lembro-me bem de algumas histórias: O Enigma da Atlântida, A Armadilha Diabólica, etc., mas não me consigo lembrar do nome do autor. Tenho pena de não ter aqui comigo aquela mala de viagem, onde guardava as minhas colecções de livros e revistas em banda desenhada: O Mosquito, o Mundo de Aventuras, O Condor, O Falcão, e tantas outras. Foram estas as minhas leituras favoritas até ao terceiro ano do liceu. Depois, abandonei-as e comecei a entrar noutras mais sérias ou mais evoluídas, como os livros de Júlio Dinis, de Eça de Queirós, de Alexandre Herculano, de Silva Gaio, de Rebelo da Silva, de Gervásio Lobato, em suma, uma série de nomes da nossa literatura, alguns dos quais praticamente desconhecidos da geração do meu tempo. Quem é que da minha geração conseguiu ter a sorte de encontrar os cinco volumes de um romance policial de Gervásio Lobato, intitulado Os Mistérios do Porto? Valeu-me ter encontrado em casa a rica biblioteca que o pai foi fazendo ainda na sua juventude, e que eu descobri numa estante, no sótão da nossa casa em Aveiro.

É curioso como estas coisas acontecem! Só agora, à distância de tantos anos e aqui isolado no meio do mato, me vieram à lembrança as agradáveis leituras dos meus tempos de miúdo!

Pois foi na máquina do tempo, cuja imagem está agora bem visível na minha memória, que recuei até ao dia dezoito. Felizmente, Olrik, o anti-herói e antagonista de Mortimer, não sabotou a máquina do tempo. O recuo processou-se sem qualquer complicação. Cheguei em perfeitas condições. A máquina parou no exacto momento em que o Costa, o soldado de transmissões, entrou no meu gabinete, às onze da noite:

— Alferes Ulisses, acabo de receber uma mensagem da Camuanga. Estão todos nos abrigos. Estão a ser atacados.

— Vê se eles voltam a ligar-nos. Diz-lhes que procurem aguentar-se o melhor que puderem e que iremos socorrê-los logo que amanheça.

— Há um pequeno problema, meu alferes. Estamos sem baterias para o rádio.

— Como é isso possível? Não há baterias de reserva? Além disso, isso não é desculpa para não os irmos socorrer. Diz-lhes que iremos para lá assim que amanheça. E liga também para a sede da Companhia, a dar conhecimento do ataque, caso não tenham já recebido a mensagem.

Saído o soldado de transmissões, falei com os furriéis:

— Quem é o furriel que está de serviço?

— Sou eu, alferes. — respondeu o Ramalho.

— É preciso reforçar as sentinelas. O ataque à Camuanga pode ser um de uma acção conjunta de ataques a destacamentos.

— Deve ser mais um ataque isolado, alferes. — respondeu o Donato. Connosco não se devem voltar a meter.

— Isso é coisa que nunca podemos dizer, Donato. Não atacaram ninguém no Natal, nem no Ano Novo, mas podem aproveitar agora, quase no final do mês, para tentarem apanhar a malta desprevenida. Seja como for, o cuidado nunca é demais. E o Ramalho, que está de serviço, faz o que lhe mando: vai às casernas acordar o pessoal e dobrar as sentinelas em todos os postos.

— Não é necessário, alferes. As sentinelas normais chegam.

— O Ramalho está a querer contrariar as minhas ordens?

— Não, alferes...

— Se não, então trate de ir imediatamente fazer o que lhe digo, antes que nos aborreçamos. E avise o pessoal nas casernas que esteja acordado, porque vou passar por lá e falar com eles. E passar depois uma ronda. E não barafuste, que não adianta nada com isso.

Saído o furriel do edifício, para cumprimento contrariado das ordens recebidas, falei com os restantes furriéis:

— Amanhã, mal amanheça, temos de ir com uma secção à Camuanga, depois de pegarmos alguns GEs, mais experientes do que nós, para nos acompanharem. Quem é que vai comigo?

— Eu não, alferes. — disse o furriel açoreano.

— Eu também não, alferes. — acrescentou o Teodoro.

— Quer dizer, têm medo de ir socorrer camaradas em perigo! Mas gostaram que o pessoal do Quitari tivesse vindo ajudar-nos, quando nos quiseram apalpar! E o Rodrigues? Não me vai deixar ir sozinho?

— Alferes, não é um bocado arriscado, sem levarmos rádio? E se nos atacam?

— Quer dizer que estão todos com medo! Se virem camaradas em perigo, voltam as costas e deixam-nos entregues à sorte? Poderia destacar um de vós e obrigar-vos a ir. Mas não o faço. Se têm medo, vou sozinho com os soldados que quiserem acompanhar-me. Prefiro ir com pessoal voluntário do que com quem tenha medo! Nunca imaginei que me dessem esta decepção!

Saí do edifício do comando com uma sensação simultaneamente de frustração e revolta. Esperava tudo menos que os meus furriéis mostrassem medo numa situação de perigo. Dirigi-me a uma das casernas e, uma vez lá dentro, pedi a um dos soldados que fosse à outra chamar o pessoal, para lhes falar. Com toda a gente reunida e sem a presença dos furriéis, pus os soldados ao corrente da situação:

— Já se devem ter apercebido que estamos neste momento numa situação de prevenção. Como já devem ter dado conta, o furriel de serviço veio reforçar as sentinelas. Em vez de um homem em cada posto, passámos a ter dois, para maior segurança. Há umas semanas, antes do Natal, passámos a noite nos abrigos. Os turras tentaram apalpar-nos, apesar de haver quem não tenha querido acreditar nas nossas palavras. Agora, às onze da noite, o Costa das transmissões entrou-me no gabinete a comunicar que a Camuanga estava a ser atacada. Para lhes dar força psicológica, já que outra ajuda não é possível a esta hora da noite, mandei o Costa dizer-lhes que, logo que amanhecesse, iríamos com uma secção socorrê-los. Eu estou disposto a ir com um grupo que não tenha medo, apesar de estarmos sem aparelho portátil de transmissões, por falta de baterias.

— E os furriéis? Também vão? — perguntou um soldado.

— Não! Pus o problema aos furriéis e eles recusaram-se a ir ajudar os nossos camaradas, com o pretexto de que estamos sem rádio.

— Mas o meu alferes só tem que indicar um nome e dar a ordem para o acompanhar. — disse outro soldado.

— De facto assim é! E se ele não acatar a ordem?

— As ordens são para serem cumpridas, meu alferes.

— Tens toda a razão. As ordens são para serem cumpridas. E têm de ser cumpridas, a partir do momento em que as dê. Mas a situação é de risco! E eu prefiro não ir acompanhado com quem vai contrariado e acagaçado com medo de morrer. A situação não é para homens com medo, mas para homens que não o tenham e sigam com o máximo de atenção e com os sentidos bem despertos, para que nada nos aconteça. Por isso estou aqui a falar-vos. Eu estou disposto a ir em socorro dos nossos camaradas. E quero ir acompanhado com pessoal voluntário, cauteloso e que não tenha medo de ir comigo. E estou mesmo disposto a ir sozinho. Tenho a certeza que os GEs não vão deixar de me acompanhar. Por isso, peço àqueles que me quiserem acompanhar e que não sejam casados e com filhos que venham para este lado.

Passados uns instantes, tinha do meu lado direito um grupo razoável de soldados. Do pessoal voluntário, escolhi para seguir, logo pela madrugada, o Régua, cujo verdadeiro nome é Rodrigues, o Carlos Ferreira, o enfermeiro Alves, o condutor Sobreiro, e mais dois elementos, cujo nome não consigo recordar neste momento.

— O meu alferes está-se a esquecer de mim? O condutor Monteiro nunca o deixa ir sozinho. Só uma viatura não chega, alferes. Como é que quer levar o nosso pessoal e mais os GEs numa só viatura?

— Tens toda a razão. Nem podia passar sem ti. Estás quase sempre presente, quando é preciso. Só é pena que às vezes sejas um bocado brusco, intempestivo. Mas a verdade é que és indispensável. Então já sabem: aos elementos que vão comigo amanhã peço que verifiquem atentamente a espingarda e as munições. Eu irei fazer o mesmo. Amanhã, mal amanheça, deverão ir levantar granadas e duas caixas de ração de combate, uma para nós e outra para os elementos que iremos procurar à Cabaca. Tomamos o pequeno-almoço e arrancamos logo. Apenas paramos na Cabaca para pedir a colaboração dos GEs. Cumpram agora rigorosamente as minhas instruções e aproveitem as restantes horas de sono.

Perto da meia-noite, tinha levado também uma tampa do furriel de serviço, que não quis deixar os camaradas sem a companhia dele. Mandei-o providenciar para que, às seis da manhã, estivesse um pequeno almoço pronto para o grupo que ia sair. Redigi uma mensagem para a Companhia, a participar a saída em socorro da Camuanga, inspeccionei minuciosamente a G3 e os carregadores e, para aliviar um pouco a tensão, mantive-me na companhia das sentinelas dobradas até às duas da manhã, altura em que um dos soldados me chamou a atenção para as horas:

— O meu alferes não vai dormir? Até amanhecer, ainda tem umas quatro horas de sono. E logo vai ter de ir de olhos bem abertos...

— Tens toda a razão! Vou seguir os teus conselhos. Vou tentar dormir um pouco. Está descansado que amanhã, com a tensão com que vou fazer a viagem, não vai haver sono que consiga fechar-me os olhos. Tenciono regressar inteiro com o pessoal. Até amanhã.

Antes de entrar no gabinete, falei ainda com as sentinelas que ficam junto ao comando:

— Logo, mal o sol comece a clarear o céu, agradeço que um de vós vá ao meu gabinete acordar-me. Temos de partir cedo para a Camuanga.

Com quatro horas de sono, achei que não valia a pena perder tempo a despir-me e a enfiar-me entre lençóis. Tirei as botas e estiquei-me sobre a cama. Foi um sono agitado. Foi uma noite de sonhos pouco agradáveis, que anteciparam negativamente a operação do dia seguinte. Felizmente que as minas, que se erguiam ameaçadoras do meio da picada em direcção à viatura e que nós procurávamos evitar, desviando-nos para um e outro lado, não passaram do sonho. Se elas tivessem sido colocadas na picada, não se teriam levantado ameaçadoramente para nos atingirem. E seguramente não estaria agora aqui a redigir estas linhas. Mas, nos sonhos, tudo é possível. As coisas mais disparatadas acontecem. Conseguimos mesmo realizar o impossível. Torna-se fácil respirar debaixo de água. Ganhamos asas, que nunca poderemos possuir, e voamos livremente pelos ares. Encontramos a miúda que no baile nos deu tampa e tornamo-nos com ela as estrelas da noite.

 

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