Acerca das telecomunicações

 

Alto Zaza, 25 de Janeiro de 1973

 

Finalmente, consegui arranjar disposição e disponibilidade para conversar um pouco convosco. Foi uma grande ideia ter-vos mandado um duplicado da carta que escrevi à minha prima Manuela. Neste momento, já vai a caminho daí, se é que ainda não vos chegou às mãos. E daí talvez não! Ainda só passaram três dias, contando com este, que está quase acabado. A esta hora ainda deve andar em bolandas pelos serviços postais.

Por enquanto, ainda não foram inventados foguetes-correio nem sistemas de transmissão imediata de correspondência. Nem os telegramas urgentes, que deveriam chegar no mesmo dia aos destinatários, conseguem a rapidez que deveria corresponder ao adjectivo urgente. Comunicações instantâneas, por enquanto, só são possíveis através da rádio. E mesmo estas não são para toda a gente! Lá virá o tempo, para o ano dois mil, em que as comunicações serão como as que lia, em miúdo, nos livros de banda desenhada de ficção científica, em que se transmitem dados à velocidade da luz e se teletransportam os heróis do espaço.

Agora, o mais rápido que conseguimos (pelo menos eu, aqui, na tropa!) nas comunicações à distância, são ligações via rádio com os camaradas que estão noutras zonas da região. É pela rádio que comunico frequentemente com a sede da Companhia e com os destacamentos sob a minha responsabilidade. É pela rádio que peço ajuda ao médico da Companhia, quando me surgem, a mim e ao enfermeiro, casos bicudos com doentes que não conseguimos resolver sem o apoio do profissional da Medicina. É pela rádio que recebo frequentemente e faço seguir as mensagens cifradas, que me ocupam bons pedaços de tempo.

Lá virá o dia em que falaremos uns com os outros, à distância, podendo-se ver as caras dos interlocutores em ecrãs talvez semelhantes aos dos actuais aparelhos de televisão. E este tempo já não deve estar muito longe, a acreditar nas informações que leio na revista Science et Vie, que o pai vai fazendo o favor de adquirir e me enviar para aqui.

Está visto! Hoje iniciei a minha correspondência por um tema curioso: o das telecomunicações. São um prodígio, as palavras! São como as cerejas! Começamos a falar de alhos e, quando nos damos conta, já estamos a falar de bugalhos! Até me esqueci que estou aqui isolado, no meio do mato! E, desta vez, não estou só no meu gabinete e quarto. Tenho aqui comigo, numa cama que mandei instalar no meu gabinete, o capelão. Está entretido a ler um pouco, o que me dá alguma disponibilidade para vos escrever estas linhas.

Na sala ao lado, ouvem-se as conversas animadas dos furriéis. Não admira! Ainda é cedo. São apenas dez da noite e o sono ainda vem longe!

Acabo de interromper por momentos a escrita. Não deveria dizer «interromper», mas antes «fui interrompido». Estava de caneta suspensa e a olhar para o tecto metálico, não à caça das ideias, mas a fazer mentalmente o balanço dos últimos dias. O capelão, que me parece que tem um olho no livro e o outro na minha pessoa, viu-me com a caneta parada e meteu conversa:

— Estás à cata das ideias? Há pouco, preenchias os aerogramas com uma velocidade incrível; e agora paraste bruscamente ...

— O capelão está a ler ou a espiar-me?

— Estou a fazer as duas coisas. Estava a ler, mas mais a admirar a velocidade impressionante com que escreves. Verifico que as ideias não costumam faltar-te. Saem-te com elevada rapidez. Escreves praticamente ao correr da pena. Parece que a boca que anda por aí a teu respeito é verdadeira!

— A boca que anda por aí? Mas qual boca? — perguntei intrigado.

— Consta que és o militar que mais aerogramas consome em todo o batalhão. E, pelos vistos, a boca está correcta!

— Ah, é isso?! Até pensei que era outra coisa pior!

— Mas há alguma coisa pior?

— Claro que não! O que é que queria que houvesse? Mas como falou «na boca que anda para aí», pensei que fosse alguma coisa diferente.

— Já que interrompeste por momentos a escrita, tenho uma coisa muito importante para te comunicar.

— Interrompi a escrita porque estava a fazer um balanço dos acontecimentos dos últimos dias. Prometi, durante a viagem para Angola, que efectuaria um relato de todos os acontecimentos...

— Prometeste um relato? A quem?

— Aos meus pais. É uma forma de me sentir mais perto deles e de eles viverem um pouco, à distância, a minha permanência neste território.

— Estou a entender!

— O capelão disse que tinha uma coisa muito importante para me dizer...

— É verdade! A minha vinda para aqui foi essencialmente por tua causa...

— Por minha causa?! Mas a que propósito? O que é que eu fiz para o capelão ter de vir aqui para o Alto Zaza?

— Não foi o que fizeste! É o que vais ter que fazer!

— Agora é que me está a deixar deveras intrigado! Mas vou ter de fazer o quê?

— Já te vou explicar. Estou aqui por ordem do Comandante de Batalhão. Estou aqui para te formular um pedido do Comandante de Batalhão.

— A mim?! O comandante não tem mais alferes no batalhão? Na CCS não há oficiais? Foi preciso mandá-lo ter comigo, aqui a este isolamento, no meio da selva e junto à fronteira?

— É verdade! Como vês, és uma pessoa muito importante! Em todo o batalhão, és o único oficial que é licenciado.

— Não sou o único! Então e os médicos? Não têm também uma licenciatura?! E bastante importante?!

— Têm! Mas não são como a tua. Tu és um homem das Letras. O comandante já conhece as tuas capacidades oratórias. Foste o único oficial de todo o batalhão que ele ouviu discursar.

— Essa agora é que está interessante! Onde é que ele me ouviu discursar? Nunca fiz nenhum discurso para ninguém!

— Estás a esquecer-te da tua permanência em Tomar. Não foste destacado para fazer uma palestra relacionada com a guerra em Angola? Não a apresentaste a todos os oficiais do R. I. 15, na biblioteca do quartel?

— Tem razão! Já nem me lembrava de tal coisa! Mas como é que sabe isso, se na altura ainda nem estava integrado no batalhão? Não me diga que o comandante me quer cravar para lhe escrever algum discurso...

— Não! Quer uma coisa muito mais importante.

— Está a deixar-me assustado! Ainda mais importante? Se um discurso é já uma trabalheira dos diabos, que poderá haver de mais importante?

— O comandante quer um hino.

— O quê?! Um hino? Mas eu não sou poeta nem músico! Como é que lhe posso fazer um hino? E onde vou buscar a inspiração para isso?

— Não precisas de saber música. Apenas tens de escrever o hino. A música será feita por alguém que saiba do ofício.

— Pois! Está tudo muito bem, mas vou fazer um hino a que propósito? E onde vou buscar a inspiração?

— O hino deverá ser alusivo aos Tigres de Sanza, ou seja, a todo o batalhão. Em Sanza Pombo há uma emissão de rádio, dirigida a militares e civis da região. E o hino do batalhão será o indicativo para o começo e fecho do programa. Tem de ser algo que entre nos ouvidos de toda a gente. Não saio de cá do destacamento sem levar o hino para o comandante.

— O não sair de cá não é para mim problema. Enquanto cá estiver, estou eu em boa companhia. O que me preocupa é o ter de fazer o hino. Onde é que vou buscar as ideias? Por este andar, começo a ficar outra vez com a minha correspondência atrasada relativamente aos acontecimentos no destacamento. Lá se vai a promessa pelo cano abaixo!

— Retoma a tua correspondência, mas não te esqueças do meu pedido. A noite costuma ser boa conselheira. As ideias não te hão-de faltar.

— Isso é verdade! Quando nos deitamos com um problema, frequentemente o nosso cérebro continua a reflectir sobre ele, mesmo enquanto dormimos. E, de repente, faz-se «clic» e surge a ideia luminosa. O seu recado está dado. Prometo que não ficará de mãos a abanar. Amanhã, ou depois, se verá o que a minha massa cinzenta irá produzir.

 

Está transcrita parte da conversa com o capelão, que me fez interromper a carta. Já estão a ver o que me espera nas próximas horas ou dias: pôr a massa cinzenta em ebulição, para satisfazer o pedido do comandante do Batalhão 4511, o tenente-coronel Soares Coelho.

É curioso! Estou agora a relacionar o pedido do comandante com o tema inicial desta carta.

O comandante de batalhão, que se lembrou de me cravar com o pedido do hino, insere-se na temática da comunicação à distância. Em vez de redigir a mensagem para o Alto Zaza e utilizar a transmissão pela rádio, ele optou por um sistema de comunicação menos trabalhoso, mas mais eficaz e persuasivo. Utilizou o capelão como veiculador da mensagem. E como este canal de comunicação é de tipo activo, com sistema de inteligência própria, a mensagem do comandante adquiriu uma nova eficácia e dinâmica. Em primeiro lugar, poupou-lhe uma trabalheira. Sem o capelão, teria de redigir um texto, o que poderia levá-lo a fundir algum fusível. Deste modo, passou oralmente a mensagem e tornou-a dinâmica, utilizando as potencialidades da massa cinzenta do padre. Este funcionou como um retransmissor activo, na medida em que não só transmitiu a mensagem, como a amplificou inteligentemente, conferindo-lhe uma carga persuasiva eficaz, para levar o receptor a produzir o desejado hino.

Tenho de concluir que, neste caso, o comandante de batalhão revelou uma grande esperteza. Só me falta agora saber se terá pleno sucesso. E isto coloca-me numa situação bastante complicada. Vou ter de pedir inspiração a todos os antepassados, para que o hino saia em condições. Dava-me agora jeito ter aqui um Homero, ou o batalhão de aedos que o antecederam, para me ajudarem a safar desta situação. Não é que me importe de ter aqui o capelão na minha companhia. Até será agradável! O problema é que a minha pessoa é quem está em jogo. Se o comandante depositou em mim tamanha expectativa, não o posso deixar ficar mal, porque quem ficará mal serei eu.

Estou a ver que não vou ter tempo, nas próximas horas, de pôr a escrita em dia. O pedido efectuado não me deixa concentrar devidamente. Vou ter de me limitar, agora, a uma espécie de sumário dos acontecimentos dos últimos dias. Com eles aqui sumariamente registados, com o auxílio precioso da minha agenda, ser-me-á possível interromper a carta e retomá-la noutra altura.

De acordo com os dados da minha pasta de arquivo, efectuei um relato minucioso até ao dia 17 deste mês. Como neste preciso instante ainda estamos a 25, o atraso é apenas de oito dias. Os factos mais importantes, que deverão merecer-me uns quilómetros de escrita, são:

 

18 de Janeiro: ataque à Camuanga;

19 de Janeiro: odisseia de socorro com poucos homens, por cobardia dos furriéis, e batida na zona.

20 de Janeiro: regresso. Ida a Quimbele. Avaria a vários quilómetros do destino.

21 de Janeiro: dia em Quimbele, esperando a reparação da viatura.

22 de Janeiro: regresso ao A. Zaza noutra viatura.

23 de Janeiro: nada de especial. Passeio pelos arredores. Progressos no posto administrativo.

24 de Janeiro: mensagem para ir buscar o capelão;

25 de Janeiro: evacuação para o hospital de uma miúda de dois meses gravemente queimada. Regresso com o capelão.

 

Com o sumário feito, já posso dormir mais tranquilo, se é que há tranquilidade possível, tendo que descalçar a bota por causa do hino. Faltam poucos minutos para o dia seguinte. Os furriéis já sossegaram. Antes de apagar a luz e dormir, vou ainda passar uma ronda às sentinelas. Não é que não confie nos furriéis e nos cabos de serviço... Mas, cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém! A segurança de todos será muito maior se o comandante do destacamento, que sou eu, não confiar plenamente nos outros. E os furriéis merecem-me, agora, muito menos confiança. Além de cobardolas, afiguram-se-me cada vez mais uns baldistas e irresponsáveis. Até o Rodrigues, apesar da grande amizade que sinto por ele, me deixou decepcionado!

É tudo por agora. Vou à ronda. Amanhã, se puder, retomo a escrita. E prometo seguir, se não falhar, o sumário elaborado.

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