Chegada à Camuanga

Não me lembro, neste momento, se já vos falei da Camuanga. A solução para tirar esta dúvida seria fácil de encontrar. Poderia folhear os duplicados da correspondência já enviada. O grande problema é que só tardiamente comecei este arquivo metódico. Por outro lado, mesmo que tivesse comigo todos os duplicados, a verdade é que não tenho tempo para estar a reler o que já escrevi. Referências à Camuanga, lembro-me que já fiz várias. Ainda numa das últimas cartas referi uma viagem recorde a esta povoação, em que o percurso se fez em pouco mais de uma hora. Curiosamente, desta vez, voltámos a bater novo recorde. Não foi o da rapidez; foi o da viagem mais demorada!

Ainda se lembram das horas a que saímos do Alto Zaza? Pouco passava das seis e meia da manhã. E chegámos à Camuanga praticamente à hora do almoço, o que dá uma boa série de horas.

Não era da duração da viagem que queria agora falar. Todo este «arrazoado» proveio do facto de não me lembrar se já vos fiz ou não a descrição da Camuanga. Na dúvida, faço agora tábua rasa de tudo quanto já escrevi e parto do princípio que é a primeira vez. Falemos então um pouco da Camuanga.

A povoação da Camuanga é, de toda a região do Alto Zaza, a sanzala mais distante e também uma das mais próximas da fronteira com a República do Zaire, ex-Congo Belga. É uma região no lado esquerdo do rio Cuango, um dos maiores rios de Angola, que serve de fronteira entre os dois países. É também uma região que, infelizmente, já tive a oportunidade de patrulhar, ainda que só tenha feito metade da operação. É uma zona muito acidentada, que constitui um excelente corredor para entrada de terroristas provenientes de uma base existente próximo da fronteira, em território zairense.

A Camuanga é uma das últimas povoações a que temos acesso por picada. É talvez a maior sanzala na zona. É nela que se encontra um grupo não pertencente à nossa Companhia, cujo apoio logístico está dependente de mim. Daí o terem prioritariamente pedido o nosso socorro, em vez do da sede da 3ª Companhia do Batalhão 4511, a que pertencemos.

A Camuanga está situada num planalto, rodeado de densa floresta e de várias elevações em toda a volta, algumas das quais bastante acidentadas e de grande altitude, que constituem uma muralha que não permite ter largos horizontes. Em qualquer extremidade da sanzala, tudo o que temos imediatamente à nossa frente é uma descida acentuada em direcção às inúmeras linhas de água, que engrossam o Cuango; e, ao longe, elevações de dorso irregular, escarpado e quase sem vegetação no topo, mas de encostas verdejantes, com árvores altíssimas e onde se circula com dificuldade.

A povoação é formada por elevado número de construções, que não correspondem ao número de famílias. E isto deve-se ao facto de que nem todas se destinam a habitação. Muitas constituem celeiros, com plataformas a cerca de um metro acima do solo, onde os nativos secam e guardam cereais, frutas e, sobretudo, a mandioca, base da alimentação da população.

Numa próxima visita, tenciono levar a máquina fotográfica e rolos de diapositivos, para uma recolha dos pormenores relativos às construções. Desta vez, tudo o que consegui foram três fotografias a preto e branco. O rolo estava no fim. Apenas deu para fotografar o acampamento militar, onde dormi com os meus homens, uma mulher a trabalhar com o pilão, junto à cubata, e dois soldados, a preparar-nos uma refeição quente, rodeados de uma legião de miúdos da sanzala. Prometo que, assim que tiver as fotografias, vos mandarei um exemplar de cada.

 

Mulher a trabalhar com o pilão. Camuanga (Angola-Sector de Uíje), em Janeiro de 1973.

Acabo de ser assaltado por um pensamento futuro do pai:

— Ouve lá, ficas parado o tempo todo na descrição da Camuanga? O que é que isso nos interessa? Avança lá com os factos. O que é que fizeram, depois de terem chegado à Camuanga?

É preciso ter paciência. As descrições também são necessárias. Se não as fizer agora, que tenho os acontecimentos ainda recentes e a bailarem-me na massa cinzenta, depois apagam-se-me os dados e não será mais possível evocar as memórias da região. Já que não possuo sistemas visuais de registo dos factos, ao menos seja-me permitido recorrer ao poder evocador das palavras. Mas aceito a crítica e passo aos factos.

Após a recepção pelos soldados e nativos, que nos vieram esperar à entrada da sanzala, entrámos e subimos até à zona central e plana da povoação. Parámos os unimogues em frente ao amplo coberto de zinco, entre as tendas cónicas e ao lado de um abrigo, onde está instalado um morteiro. Fomos recebidos pelo furriel Amândio:

— Chegam numa boa altura. Vou mandar reforçar as doses, para almoçarem connosco.

— Não é necessário. Obrigado. Trazemos rações de combate.

— Não veio nenhum furriel com o alferes?

— Não era possível vir toda a gente. Para vir um deles, não teria vindo eu. Além disso, não temos mais viaturas disponíveis. Nem um rádio pudemos trazer, por falta de bateria. Para nossa segurança, dei prioridade aos milícias do chefe Francisco. Têm mais experiência do que nós. Mas o que é que sucedeu? Já fizeram uma patrulha de reconhecimento na zona?

— Fomos atacados durante a noite, por volta das onze horas. Passámos a noite nos abrigos. Foi quando enviámos a mensagem a pedir ajuda.

— Receberam a minha resposta? Só chegámos agora, porque viemos com a máxima precaução. Arrancámos do Alto Zaza ao amanhecer. Viemos devagar, com muita atenção, com receio de minas ou alguma emboscada. Por isso demorámos tantas horas. Mas fale-me do sucedido.

— Não há muito que dizer. Ouvimos vários disparos durante a noite. Passámos a noite nos abrigos. Não houve baixas.

— Não terá sido algum animal que tenha assustado as sentinelas e provocado os disparos?

— Não, alferes. Os disparos vieram de fora. Existe uma paliçada à volta da povoação, que impede a aproximação de animais. Só podiam ser terroristas.

— Está certo. Mas não fizeram uma patrulha de reconhecimento na área envolvente?

— Ainda não. Somos poucos homens. E a população retomou a vida normal.

— Isso não significa nada. Podem ter deixado algumas surpresas nos trilhos por onde vocês vão ao abastecimento da água. O que é que o Francisco pensa?

— Penso que o meu alferes tem razão. É melhor ver. Podem haver minas.

— Também acho. A seguir ao almoço, o furriel reúne um grupo. Vamos, com a ajuda dos milícias, efectuar um pequeno patrulhamento na zona. É melhor termos a certeza que não terão problemas.

É interessante reflectir um pouco sobre o diálogo que acabei de transcrever. Quando o recordo, vem-me à lembrança a conversa que tive com o capitão quando, no ano passado, foi a nossa vez de passarmos a noite nos abrigos. Uma coisa é participar no acontecimento; outra, é avaliá-lo de fora. Durante a minha conversa com o furriel, tomei, sem me aperceber, a mesmíssima atitude do capitão. À semelhança dele, manifestei desconfiança e dúvida: terá sido algum animal que assustou alguma sentinela e a levou a disparar, ou terão sido realmente atacados? Mas se afirmaram que os disparos vieram de fora, não tenho motivos para duvidar.

Logo a seguir à refeição, efectuámos um patrulhamento da área envolvente. Descemos com precaução o trilho íngreme e difícil que leva à linha de água, onde a tropa e a população se abastece, quando não obtêm o precioso líquido directamente das fortes chuvadas da época. O trilho, além de íngreme, é estreito e perigoso. Há uma zona entre rochas, que não permitem sair do estreito caminho. É um local que poderá tornar-se numa armadilha fatal, se o carreiro for semeado com minas anti-pessoal. Foi esta a minha preocupação e o local onde senti um certo receio de pousar os pés. Foi também a zona que preocupou o grupo de milícias que nos acompanhou. Não deixaram avançar sem uma inspecção minuciosa e cautelosa. Felizmente, não havia nada. O trilho estava limpo. Mas não deixei de chamar a atenção do furriel para os cuidados a ter futuramente, quando tiver de passar por ali.

 

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