Dia cheio de problemas

Passemos rapidamente ao dia 16 de Dezembro, um Sábado cheio de problemas sérios para resolver.

Logo de manhã cedo, entra-me no gabinete o enfermeiro Alves. Vem com ar de aflição:

— Alferes Ulisses, temos um problema grave com o primeiro cabo Carvalho. Precisa de ser urgentemente evacuado.

— Ó diabo! Como é que vai ser? A última viatura que estava boa avariou ontem à tarde...

— Tem que ser urgentemente evacuado, meu alferes. Está há três dias a ser alimentado a soro.

— Há três dias? E só agora é que me vens dizer?

— Pensei que conseguia pô-lo bom. Como ele não aguenta a comida no estômago, pensei que era de tanto feijão que comemos. Por isso comecei a alimentá-lo a soro, para ver se recuperava. Mas não resulta. Está cada vez mais fraco.

— Se me tivesses dito ontem ou anteontem, tinha ido numa viatura para Quimbele. Agora, com tudo avariado, vai ser um problema!

— O meu alferes tem de pedir um heli para Negage, para ser evacuado. Vai para o hospital, que aqui na região não temos nenhum médico para o tratar.

— Não posso pedir para o Negage. Tenho que seguir as hierarquias...

— Como, meu alferes?

— Tenho de pedir a evacuação através do capitão da nossa companhia. Espera um pouco. Vou redigir uma mensagem para a companhia.

«SOLDADO ESTADO GRAVE ESTA SEM VIATURA PICADA MÁ PEÇO EVACUAÇÃO HELI URGENTE»

— Leva a mensagem ao radiotelegrafista.

— Assim, meu alferes, sem ser cifrada?

— Claro! Queres que perca meia hora ou mais a cifrar a mensagem, quando me dizes que a situação é urgente? O Costa que a mande mesmo assim para o capitão. Ele é que tem de accionar o pedido.

Eram 11 e 30 da manhã e ainda não havia sinais de heli nem de resposta. Todo o pessoal estava cada vez mais impaciente.

Na mesma altura, chega de unimogue um grupo da Camuanga. Vem ao Alto Zaza, porque está também sem comida. Tirando as rações de combate, não tenho que lhes dar.

Metido entre dois fogos (doente e reabastecimento), mando nova mensagem para o capitão:

«ACABA CHEGAR PESSOAL REAB DESTACAMENTO PICADAS INTRANSITÁVEIS CAUSA CHUVA MADRUGADA TUDO A RAÇÕES? SOBRE DOENTE VÊM-NO BUSCAR OU DEIXA-SE MORRER?»

Dez minutos depois surge um soldado à minha procura:

— Alferes, o radiotelegrafista pede ao alferes para ir ao rádio falar com o capitão.

— Recebi mensagem urgente para evacuar doente. O que é que ele tem?

— Talvez paludismo ou outra doença.

— Tem um doente grave e não sabe o que é?

— Como é que quer que saiba? Nem eu nem o enfermeiro somos médicos!

— Não fazem evacuações de doentes com paludismo...

— Não sei se é paludismo ou não. E mesmo que seja, se o doente estiver à morte deixa-se morrer sem socorro? Só sei que há três dias está a ser alimentado a soro e está cada vez mais fraco!

— Já há três dias? Não sabe o que se passa em casa?

— Claro que sei. E por isso estou a pedir uma evacuação urgente. Se visse que não era grave não pedia uma medida urgente.

Cerca das 13:30, ouve-se ao longe o barulho de um motor. Entram-me no comando alguns soldados a correr:

— Alferes, vem aí um helicóptero. Vêm buscar o doente.

— Finalmente! — exclamo eu. Estava a ver que era preciso deixá-lo morrer para tomarem previdências.

Foi com alívio de todo o pessoal que, pelas 13:45, mandei nova mensagem para a Companhia:

«DOENTE EVACUADO OBRIGADO FOI ALÍVIO TODA GENTE ANDAVA PREOCUPADA»

Pelas 14:30 recebo uma mensagem da Companhia: 


«SE DOENTE MORRER COMANDANTE ALTO ZAZA ÚNICO CULPADO ESPERE SANÇÕES DISCIPLINARES TERÁ REAB AMANHû

No dia seguinte, ainda não eram oito da manhã, chega ao Alto Zaza uma coluna de Quimbele com os reabastecimentos e os vencimentos de todo o pessoal.

Antes de efectuar o pagamento dos meus homens, aproveitei um dos unimogues acabados de chegar para ir à Cabaca. Era Domingo, dia de inspeccionar as tropas GE. Com todas as viaturas avariadas, ou ia a pé ou deixava o serviço para outra altura, o que não me agradava. Assim, aproveitei a chegada do pessoal de Quimbele e chamei o furriel que vinha a comandar a coluna:

— Preciso de uma viatura para efectuar uma inspecção ao Grupo Especial 201. Peça a um dos furriéis que o ajude no descarregamento do reabastecimento. Cinco minutos antes das oito esteja aqui no comando com um unimogue e uma secção. Não precisa de me acompanhar, a menos que queira ficar a conhecer a Cabaca, a cinco minutos daqui em viatura.

Eram oito horas em ponto estava a chegar à Cabaca. Ainda não tinha chegado ao largo principal, já andavam GEs a chamarem-se uns aos outros para a formatura.

Depois de apresentado o grupo pelo chefe Simão, mandei que ficassem em posição de descanso e iniciei o controlo das armas e munições, tendo conferido o número das armas com os meus registos. Verifiquei que alguns elementos não tinham o número certo de munições. Chamei-lhes a atenção que as munições não podem ser para caçar, que são para defesa e segurança de todo o pessoal. E repus as dotações de cada um, sem tirar o nome daqueles a quem faltavam alguns cartuchos. Embora não o possa manifestar explicitamente, para evitar abusos, compreendo que também eles, de vez em quando, gostem de abater umas peças de caça para comerem. Todos temos um estômago com as mesmas necessidades! E só fuba é como passar a vida a comer só feijão!

Em seguida, efectuei a chamada, um a um, de todos os elementos do grupo, para pagamento dos vencimentos. Entreguei também o dinheiro aos dois homens que me tinham pedido um adiantamento, tendo efectuado a devida dedução, depois de lhes ter perguntado se queriam agora descontar a totalidade do dinheiro adiantado ou só parte.

Depois de dispersado o grupo, um dos GEs a quem adiantei o dinheiro do meu bolso quis que eu ficasse a conhecer as mulheres e os filhos.

Da conversa com os vários homens, apercebi-me que paira no ar uma certa tensão entre os GEs e as milícias. Chamei-lhes a atenção que não pode haver questões entre eles. No fundo são todos da mesma família e os problemas não podem ser resolvidos ao barulho. E, para mim próprio, fiz votos para que nunca viessem a desatar aos tiros uns contra os outros.

Depois do almoço, regressou a coluna do reabastecimento a Quimbele. Apenas solucionou temporariamente o problema da comida. Quanto às viaturas, continuámos sem receber as peças para as podermos pôr a funcionar, o que nos complica seriamente o abastecimento da água.

Ainda a tarde não tinha chegado a meio e a coluna de regresso a Quimbele a metade do percurso, começamos a ouvir à distância um grande barulho de motores. Pouco depois, chegava ao aquartelamento uma coluna de Berliets provenientes de Sanza Pombo. Era uma chegada imprevista. Não sabíamos de nada. Nem uma mensagem da sede do batalhão ou da Companhia a avisar!

Recebo o alferes da Companhia de Comandos e Serviços, que vinha a comandar a coluna:

— Então, qual o motivo do vosso aparecimento imprevisto por aqui? Ninguém me tinha avisado da vossa vinda.

— É natural que não. Viemos directamente da sede do batalhão. Nem sequer passámos por Quimbele. Trazemos combustível para as viaturas e os helicópteros. Vimos abastecer o vosso depósito de combustíveis.

— Mas ninguém aqui pediu combustíveis. Ainda temos um bom fornecimento. Do que precisávamos era de peças para recuperarmos as viaturas, que estão todas avariadas.

— São ordens do comandante de batalhão. Quer o Alto Zaza devidamente fornecido, porque é a zona mais importante de todo o batalhão.

— Ficam cá hoje?

— Não. É descarregar as viaturas no depósito e regressar.

Chamei o soldado Rodrigues, responsável pelo depósito e abastecimento das viaturas:

— Acaba de chegar combustível para viaturas e helicópteros para repor a dotação do destacamento. Acompanha as viaturas até ao depósito e pede ao nosso pessoal para ajudar a descarregar. Tem o cuidado de conferir as guias e de acondicionar o combustível de maneira que fique em segurança, protegido do exterior. Se houver hipóteses, devolve os bidões vazios.

— Não pode ser, alferes. Os bidões vazios têm de seguir na altura em que vêm os camiões civis repor o combustível. Têm de sair bidões vazios em número igual aos que entram cheios, para um controlo mais exacto. Este abastecimento não faz parte do reab normal.

— Bom, trata lá disso como deve ser. Tu é que és o homem dos combustíveis.

O descarregamento fez-se com a maior brevidade possível. Apenas deu tempo ao pessoal chegado para se refrescar com algumas bebidas. Em breve, alferes e furriéis da CCS abandonavam o edifício do comando, onde confraternizámos durante os breves minutos e regressavam pelo mesmo caminho em direcção à sede do batalhão.

Devo acrescentar que fiquei deveras intrigado com o aparecimento imprevisto de uma coluna da sede do batalhão, com viaturas bem fornecidas de bidões, sem qualquer informação prévia. Não consegui alcançar então a razão do sucedido.

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