Duas situações altamente complicadas |
Grupo em Angola, em 1972. Destacamento do Alto Zaza, na região de Quimbele, sector de Uíje. |
Durante a manhã do dia 14, o tema das conversas era invariavelmente a caçada. Foi a primeira cabra do mato apanhada pelo nosso grupo. A cabra do mato não é uma cabra vulgar, como as que conhecemos na metrópole. A expressão designa um animal da família dos veados. É talvez uma espécie de gazela, cuja estatura é aproximada da das cabras, embora maior, razão pela qual terá levado o nome por que é conhecida. Não tenho aqui nenhum livro onde possa esclarecer-me sobre o assunto. Tudo o que sei, pelas conversas tidas com os nativos, é que se trata de uma espécie animal muito abundante na região, cuja carne é saborosíssima. Graças à mãe natureza, conseguimos a carne que o exército nos deveria ter fornecido. Valha-nos ao menos esta pródiga mãe, que é fértil. De facto, a mãe natureza não se limita a dar-nos a carne que caçamos. Toda a região é altamente fértil. As terras são propícias para a lavoura e o clima é de tal modo favorável, que tudo o que se semeia ou planta nasce sem necessidade de grandes cuidados. Assim, volta e meia, aparecem-nos aqui miúdos das sanzalas a vender ananases e bananas. Por vinte e cinco tostões, podemos ter enormes ananases, que nos proporcionam boas sobremesas. É graças a isso que tenho podido fornecer uma sobremesa de fruta ao pessoal. Frequentemente, mando fazer excelentes saladas de fruta nas terrinas inoxidáveis da sopa, o que ajuda a melhorar as nossas refeições. Eu mesmo, aos pequenos almoços, substituo muitas vezes o café com leite e o queijo por refeições só de fruta. O dia decorreu sem nada de mais significativo, que mereça registo. E o dia 15 também nada teve de especial, salvo alguns pequenos episódios, cujo único significado foi o de terem permitido quebrar a monotonia. Logo a meio da manhã , recebi a visita de dois GEs do grupo que está sob a minha alçada. Tinha acabado de fazer a barba e de guardar o material no meu gabinete e preparava-me já para dar uma volta pelo quartel, quando: Meu alféris, dá licença? Era um dos GEs, que me pedia para falar comigo, ao mesmo tempo que fazia a continência. Sim, digam lá o que pretendem. Sou o GE 7 de 68. Sou o André. O meu camarada é Jaime Macaquito. Vimos pedir ao meu alféris se pode adiantar quatrocentos escudos a nós. Ainda não recebi da Companhia o dinheiro do pessoal. Nem a comida, que é o mais urgente, nos mandam... Se o meu alféris emprestasse a nós, depois discontava. Esperem um pouco. Vou ver se ainda tenho dinheiro na carteira para vos emprestar. Fui ao gabinete procurar a carteira e trouxe oitocentos escudos. Aqui têm quatrocentos escudos do meu dinheiro para cada um. Quando vos pagar, faço o desconto no vosso pré. Perguntei o número e o nome de cada um e fiz a devida anotação na folha em que registo os pagamentos dos GEs. Não querem mais nada? Não, meu alféris. Obrigado, meu alféris. De certeza? Não querem beber uma cerveja que vos ofereço? Sim, meu alféris. Vão então ao cantineiro e digam-lhe que fui eu que mandei. Ainda os dois GEs não tinham sumido da minha vista e sai-me lá de dentro um furriel com uma dúvida: Alferes, estou a escrever um aerograma para casa e estou com dúvidas. Baptizar escreve-se com um «S» ou com um «Z» ? Fiquei confuso com a maneira como me fez a pergunta. Se me tivesse perguntado como escrevia «baptizado», era-me mais fácil dar a resposta. Assim, se era com «S» ou com um «Z», fiquei baralhado pelo imprevisto da situação. Tive de voltar ao gabinete e procurar o dicionário que meti na pasta nas vésperas da partida da metrópole. Como vêem, foram duas situações altamente complicadas que me surgiram da parte da manhã . Estive quase para mandar reunir as cortes para solucionar tão complicadas situações! A parte da tarde foi passada a efectuar uma série de disparos para a posteridade. Além dos provocados nos últimos dias pela dieta forçada à base de feijão, fui buscar a máquina fotográfica e dar uma volta pelo quartel. Estava um tempo magnífico, com um céu de um azul fortíssimo e brilhante, no qual se recortavam os poucos maços de algodão branco que não se desfizeram durante o aguaceiro da madrugada. No campo de futebol em frente ao comando, decorria um renhido desafio de futebol, disputado pelas duas equipas de seis elementos cada perante uma entusiasmada assistência. A equipa que perdesse pagava uma rodada de cerveja a toda a malta. Daí que, cada equipa, tinha a sua claque a torcer pela vitória, com a certeza de que, qualquer que fosse o resultado, tinha garantida não uma taça, mas uma garrafa de cerveja. Ao fim do dia, com um sol magnífico a baixar por detrás das copas altas da mata que ao longe rodeia o quartel, foi disparada mais uma foto junto ao canhão sem recuo. Nela ficaram para a posteridade, além da minha pessoa, o furriel açoreano, o velho Manel, de camuflado como qualquer tropa, o soldado Pereira, que apesar de estucador na vida civil em Vila Nova de Gaia é especialista em esfolar os animais caçados, e o condutor Sousa, empregado de comércio de calçado em S. João da Madeira. Creio não ter mais nada de importante a dizer. Mesmo que tivesse, preciso de passar ao dia seguinte e apressar-me. Tenho estado a fazer estes registos praticamente ao correr da esferográfica, com uma velocidade impressionante. Se os pensamentos ocorrem à velocidade da luz, então devo estar quase a comprovar a teoria da Einstein, tal a velocidade com que as palavras me saem e quase sem enganos. E tem mesmo que ser assim, porque a todo o momento posso ser obrigado a interromper a escrita. Felizmente, o pessoal está animado no jogo, a avaliar pelo barulho e risadas que se ouvem na sala ao lado, que me obrigam a uma maior concentração. E já não é nada cedo. A noite vai adiantada. |