Duas situações altamente complicadas

Alto Zaza, Angola, 15 de Dezembro de 1972

Grupo em Angola, em 1972. Destacamento do Alto Zaza, na região de Quimbele, sector de Uíje.

Durante a manhã do dia 14, o tema das conversas era invariavelmente a caçada. Foi a primeira cabra do mato apanhada pelo nosso grupo.

A cabra do mato não é uma cabra vulgar, como as que conhecemos na metrópole. A expressão designa um animal da família dos veados. É talvez uma espécie de gazela, cuja estatura é aproximada da das cabras, embora maior, razão pela qual terá levado o nome por que é conhecida. Não tenho aqui nenhum livro onde possa esclarecer-me sobre o assunto. Tudo o que sei, pelas conversas tidas com os nativos, é que se trata de uma espécie animal muito abundante na região, cuja carne é saborosíssima.

Graças à mãe natureza, conseguimos a carne que o exército nos deveria ter fornecido. Valha-nos ao menos esta pródiga mãe, que é fértil. De facto, a mãe natureza não se limita a dar-nos a carne que caçamos. Toda a região é altamente fértil. As terras são propícias para a lavoura e o clima é de tal modo favorável, que tudo o que se semeia ou planta nasce sem necessidade de grandes cuidados. Assim, volta e meia, aparecem-nos aqui miúdos das sanzalas a vender ananases e bananas. Por vinte e cinco tostões, podemos ter enormes ananases, que nos proporcionam boas sobremesas. É graças a isso que tenho podido fornecer uma sobremesa de fruta ao pessoal. Frequentemente, mando fazer excelentes saladas de fruta nas terrinas inoxidáveis da sopa, o que ajuda a melhorar as nossas refeições. Eu mesmo, aos pequenos almoços, substituo muitas vezes o café com leite e o queijo por refeições só de fruta.

O dia decorreu sem nada de mais significativo, que mereça registo. E o dia 15 também nada teve de especial, salvo alguns pequenos episódios, cujo único significado foi o de terem permitido quebrar a monotonia.

Logo a meio da manhã , recebi a visita de dois GEs do grupo que está sob a minha alçada. Tinha acabado de fazer a barba e de guardar o material no meu gabinete e preparava-me já para dar uma volta pelo quartel, quando:

— Meu alféris, dá licença? — Era um dos GEs, que me pedia para falar comigo, ao mesmo tempo que fazia a continência.

— Sim, digam lá o que pretendem.

— Sou o GE 7 de 68. Sou o André. O meu camarada é Jaime Macaquito. Vimos pedir ao meu alféris se pode adiantar quatrocentos escudos a nós.

— Ainda não recebi da Companhia o dinheiro do pessoal. Nem a comida, que é o mais urgente, nos mandam...

— Se o meu alféris emprestasse a nós, depois discontava.

— Esperem um pouco. Vou ver se ainda tenho dinheiro na carteira para vos emprestar.

Fui ao gabinete procurar a carteira e trouxe oitocentos escudos.

— Aqui têm quatrocentos escudos do meu dinheiro para cada um. Quando vos pagar, faço o desconto no vosso pré.

Perguntei o número e o nome de cada um e fiz a devida anotação na folha em que registo os pagamentos dos GEs.

— Não querem mais nada?

— Não, meu alféris. Obrigado, meu alféris.

— De certeza? Não querem beber uma cerveja que vos ofereço?

— Sim, meu alféris.

— Vão então ao cantineiro e digam-lhe que fui eu que mandei.

Ainda os dois GEs não tinham sumido da minha vista e sai-me lá de dentro um furriel com uma dúvida:

— Alferes, estou a escrever um aerograma para casa e estou com dúvidas. Baptizar escreve-se com um «S» ou com um «Z» ?

Fiquei confuso com a maneira como me fez a pergunta. Se me tivesse perguntado como escrevia «baptizado», era-me mais fácil dar a resposta. Assim, se era com «S» ou com um «Z», fiquei baralhado pelo imprevisto da situação. Tive de voltar ao gabinete e procurar o dicionário que meti na pasta nas vésperas da partida da metrópole.

Como vêem, foram duas situações altamente complicadas que me surgiram da parte da manhã . Estive quase para mandar reunir as cortes para solucionar tão complicadas situações!

A parte da tarde foi passada a efectuar uma série de disparos para a posteridade. Além dos provocados nos últimos dias pela dieta forçada à base de feijão, fui buscar a máquina fotográfica e dar uma volta pelo quartel. Estava um tempo magnífico, com um céu de um azul fortíssimo e brilhante, no qual se recortavam os poucos maços de algodão branco que não se desfizeram durante o aguaceiro da madrugada.

No campo de futebol em frente ao comando, decorria um renhido desafio de futebol, disputado pelas duas equipas de seis elementos cada perante uma entusiasmada assistência. A equipa que perdesse pagava uma rodada de cerveja a toda a malta. Daí que, cada equipa, tinha a sua claque a torcer pela vitória, com a certeza de que, qualquer que fosse o resultado, tinha garantida não uma taça, mas uma garrafa de cerveja.

Ao fim do dia, com um sol magnífico a baixar por detrás das copas altas da mata que ao longe rodeia o quartel, foi disparada mais uma foto junto ao canhão sem recuo. Nela ficaram para a posteridade, além da minha pessoa, o furriel açoreano, o velho Manel, de camuflado como qualquer tropa, o soldado Pereira, que apesar de estucador na vida civil em Vila Nova de Gaia é especialista em esfolar os animais caçados, e o condutor Sousa, empregado de comércio de calçado em S. João da Madeira.

Creio não ter mais nada de importante a dizer. Mesmo que tivesse, preciso de passar ao dia seguinte e apressar-me. Tenho estado a fazer estes registos praticamente ao correr da esferográfica, com uma velocidade impressionante. Se os pensamentos ocorrem à velocidade da luz, então devo estar quase a comprovar a teoria da Einstein, tal a velocidade com que as palavras me saem e quase sem enganos. E tem mesmo que ser assim, porque a todo o momento posso ser obrigado a interromper a escrita. Felizmente, o pessoal está animado no jogo, a avaliar pelo barulho e risadas que se ouvem na sala ao lado, que me obrigam a uma maior concentração. E já não é nada cedo. A noite vai adiantada.

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