Primeira caçada para reabastecimento

Alto Zaza, Angola, em 15 de Dezembro de 1972.

Durante a comissão no Alto Zaza, no norte de Angola, em 1972, os soldados chutam o tempo no campo de futebol frente ao aquartelamento.

Alto Zaza, 18 de Dezembro de 1972

Deixei a vossa companhia há já cinco dias. Foi na madrugada de quarta-feira que concluí uma série de aerogramas e, só agora, cerca das 20 horas, volto a estar convosco. E começo já a escrever enquanto não tenho o capitão e outros alferes no meu gabinete. Aproveito o facto de eles estarem a jogar com os furriéis na sala ao lado para retomar a escrita. Há muita coisa para contar. Não pode esperar. Amanhã parto imprevistamente para uma acção helitransportada junto à fronteira. Não sei quando poderei voltar à escrita e ao relato dos acontecimentos. Esperemos que se mantenham bastante ocupados, para me darem mais tempo.

 

O dia 13 amanheceu sem grandes trabalhos. Apenas a meio da manhã tive a informação imprevista do soldado Nunes. Moço natural de Mundão, em Viseu, na casa dos 21 anos, é um soldado que de electricista na vida civil virou atirador cantineiro. É ele o responsável pelos géneros alimentícios e veio transmitir-me a sua preocupação:

— Meu alferes, estamos a precisar de reabastecimento. Estamos com poucos géneros e os cozinheiros já me andam a chatear que é preciso ir a Quimbele.

— Como é possível? Ainda há poucos dias recebemos reabastecimento!

— O meu alferes está equivocado. Já lá vão muitos dias e os cozinheiros têm 45 bocas para alimentar.

— Ó Rodrigues! — gritei para me ouvirem no edifício de comando, já que a conversa se passava na área em frente. Quando foi a última vez que fomos a Quimbele?

— O alferes chamou-me? — perguntou o furriel, que saíra do interior a correr.

— Sim! Está aqui o cantineiro a dizer-me que estamos com poucos géneros. Há quanto tempo não há reabastecimento?

— Já lá vai mais de uma semana, alferes. Nós é que perdemos aqui a noção do tempo. Os dias parecem todos iguais e passam depressa. Veja a quantidade de cruzes que já estão marcadas na folha de contagem.

— Tem toda a razão! Perde-se facilmente a noção do tempo. Mas também não estou a ver quando voltaremos a Quimbele...

— Ó alferes, posso dar-lhe uma sugestão?

— Claro! Diga lá o que está a pensar.

— As noites aqui custam a passar. São mais compridas que o diabo... Se o alferes permitisse, podíamos reabastecer facilmente a arca e quebrávamos as dietas sempre iguais e o tédio das noites. Com a colaboração de um nativo G.E. e o farolim que um condutor trouxe de Quimbele, podíamos fazer uma caçada na zona.

— E se acontece algum acidente, Rodrigues? Eu com o pulso magoado da queda que dei há dias não me atrevo a andar em cima do unimogue.

— O alferes não precisa de ir. Arranjo um condutor e um grupo de confiança para me acompanhar e vai ver que não há azar...

— A ideia agrada-me, mas antes vou falar para Quimbele. Aguentem um pouco, que já volto.

Fui ao posto do radiotelegrafista, no edifício do comando, na extremidade oposta à do meu gabinete:

— Costa, liga-me para a sede da companhia. Preciso de falar com o Capitão Alberto. A esta hora, a meio da manhã, está de certeza no edifício do comando.

Passados uns segundos, tinha o capitão do outro lado.

— Daqui Ulisses. Liguei para essa porque precisamos urgentemente de reab. Estamos nas lonas. Andamos há três dias a comer feijão com feijão. A última vez que tivemos uma refeição mais decente foi de galinha guisada com feijão recheado de gorgulho.

— Aqui não fazemos milagres. Estou farto de pedir para Sanza. A sede não manda o que pedimos. Não posso fazer milagres!

Mais umas palavras trocadas e saí do posto do rádio tal como entrei. Felizmente, os milagreiros são os nossos cozinheiros, que têm um jeito diabólico para o tacho. Não foi em vão que o nosso cozinheiro da Covilhã , o Lopes de Brito, foi cozinheiro em França. Ele, mais o Almeida, que é ajudante de cozinheiro e era magarefe na vida civil, fazem verdadeiras maravilhas. Apesar dos poucos géneros disponíveis, conseguem tornar a comida apetitosa. Com a ajuda do picante, a verdade é que a última feijoada de galinha estava divina. E ninguém protestou.

Voltei para junto do furriel e do cantineiro e tomei a decisão:

— O capitão diz que Sanza Pombo não lhe manda o reabastecimento e que não pode fazer milagres. Não temos outra solução. É preciso arranjar combustível para as nossas máquinas. O Rodrigues e outro furriel que o queira acompanhar podem ir à caça. Reuna os homens e arranje um guia de confiança na sanzala dos GEs, para logo à noite.

O resto do dia decorreu sem qualquer facto anómalo. Foram as rotinas habituais: receber e decifrar as mensagens, rotina diária em que dou a conhecer a situação no aquartelamento; dar a volta habitual, para ver se tudo se encontra dentro da normalidade; conversar com o pessoal, para ajudar a passar o tempo e dar apoio moral; ir até à cozinha, conversar um pouco e ver como correm as coisas; dar uma volta pela periferia, junto à vedação, para ver se não há nada suspeito; etc. Todavia, houve uma ligeira alteração na rotina. Acompanhei o furriel nos preparativos para a caçada da noite e conversei ainda com o GE que participou na caçada. Garantiu-me que ninguém conhece a zona melhor do que ele e que para caçar é um dos melhores na região.

Por medida de segurança, dei uma particular atenção ao soldado Monteiro, o condutor do unimogue que manifestou mais vontade na saída nocturna:

— Monteiro, tem a viatura devidamente preparada, para não termos situações desagradáveis?

— Sim, meu alferes. A seguir ao almoço, atestei-a e fizemos, eu e o mecânico Santos, uma inspecção à viatura. Está tudo em ordem. Não deve haver azares. O Santos vai também e leva a caixa da ferramenta para remediar problemas.

— Andem com calma e sigam as instruções do guia. De noite, torna-se difícil a orientação. Geralmente, os nativos não se perdem facilmente. Orientam-se pelas estrelas e pelos poucos elementos visíveis no escuro da noite, que eles identificam facilmente.

Pouco depois do jantar, saiu o grupo para a caça. Para passar o tempo e atenuar a preocupação da espera, depois de verificadas as sentinelas, fiz uma partida de póquer com os dois furriéis que ficaram comigo.

— Já passa da meia-noite! Há mais de duas horas que o Rodrigues e o Ramalho saíram com o grupo.

— Ainda é cedo, alferes. — respondeu o Donato, com o seu sotaque açoreano.

— O alferes está preocupado? — perguntou o Teodoro.

— Não, apenas apreensivo. Fico mais descansado quando cá tiver todo o pessoal. Esta espera torna o tempo mais comprido. Nem com o jogo passa depressa!

— Parece-me que estou a ouvir o unimogue. — disse repentinamente o Donato. Já lá vêm.

Calámo-nos. Tirando os poucos ruídos dos insectos da noite, não se ouve absolutamente nada. Embora não o queiram mostrar, os dois furriéis também estão ansiosos.

Passa já da uma da manhã. De repente, começamos a ouvir um ruído distante de motor, que vai aumentando gradualmente.

— São eles. Já lá vêm! — dizemos os três quase em simultâneo, ao mesmo tempo que largamos o jogo e corremos para a entrada do destacamento.

— Já se vê a luz da viatura. — diz a sentinela que estava na zona da entrada.

De facto, a viatura entra pouco depois no aquartelamento. Alguns soldados interrompem o sono e saem da caserna. Também eles querem saber o resultado da caçada. O pessoal mostra-se satisfeito. Sobre a caixa aberta do unimogue, junto ao banco central onde os soldados se sentam voltados para fora, para saltarem rapidamente em caso de ataque, vem uma peça de caça.

— Alferes, é uma cabra do mato. — dizem os soldados entusiasmados, ainda em cima da viatura. Já temos tacho para duas ou três refeições.

Com todo o pessoal apeado, procede-se à descarga do animal. Pesa um bocado. Deve ter uns vinte ou trinta quilos. Em breve, é esfolado e preparado para ir para a arca frigorífica.

— O pessoal que participou na caçada que vá ter com o Fernando Dias, para arranjar umas sandes com chouriço. Têm direito a uma cerveja cada um, que pago eu. E para si, que parte quer do animal? — perguntei ao GE que serviu de guia.

A recompensa não foi muita. Além da cerveja e da sandes, que comeu na companhia do pessoal, o guia apenas pediu aquelas partes que nós habitualmente não guardamos: as vísceras e a pele do animal.

Eram umas duas da madrugada, ou talvez mais, quando o silêncio voltou a reinar. Mas por pouco tempo. Antes de amanhecer, o tempo sofreu uma brusca mudança. Uma súbita trovoada e aguaceiro, que não durou mais do que uma hora, substituiu o toque de alvorada. Andámos cheios de sorte. O Senhor S. Pedro esperou pela chegada do pessoal e pelo alvorecer para mandar a chuva.

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