No escuro da noite

No meu abrigo, na zona mais próxima do comando, está o enfermeiro, um elemento das transmissões e mais três soldados.

— Que horas serão?

— São duas da manhã — responde-me uma voz à minha esquerda.

—- Alferes, — diz a sentinela baixinho — há ali gente atrás do morro. Quando disparei, havia vultos que se aproximaram do lado da entrada.

— Alferes, — diz outra voz ao meu lado parece-me que há qualquer coisa a rastejar daquele lado.

— É melhor mandar uma fugachada para ali — alvitra um soldado. Temos aqui um elemento com o lança granadas foguete. Está carregado e pronto a disparar. Mesmo que não se atinja ninguém, uma granada ali em cheio, no meio do montículo, fará um estardalhaço tal que quem lá estiver desatará a fugir. Se foi para nos apalpar, ficarão a saber que nós não brincamos e respondemos a doer.

— A ideia parece boa. Tem a vantagem de funcionar, pelo menos, como arma psicológica. Mas não podemos disparar já. Pode provocar o pânico entre o pessoal e começam todos a disparar. É preciso um voluntário para ir a todos os abrigos avisar que vamos mandar uma bazucada.

— Vou eu, alferes — diz o soldado que eu escolhera para ordenança.

— Está certo. Mas vais rente ao chão, para não seres visto de fora. Vai com cuidado pelo percurso de segurança e avisa, em voz baixa, o pessoal dos abrigos, quanto te aproximares. Quando não pensam que és algum inimigo infiltrado. Só disparamos o lança-granadas quando estiveres de regresso. Sê rápido. Espera, avisa o pessoal que só deve abandonar os abrigos quando for de dia e tiver a certeza de que não há qualquer perigo.

— Não se preocupe, alferes, tomo cuidado. Não sou estúpido para correr riscos à balda.

— Que horas são? Já deve ser tarde! E o Miguel nunca mais chega.

— Ó alferes, ele ainda não teve tempo de dar a volta a todos os abrigos. A rastejar com a arma, mesmo pelos percursos definidos, leva o seu tempo. Ainda nem dez minutos passaram.

— Eh, pessoal! — ouve-se uma voz baixa e conhecida. Sou eu que estou de volta.

Segundos depois, que pareceram horas, está o Miguel no abrigo. Parece cansado e cheira a suor, apesar do frio da noite.

— Então? — perguntamos baixo, cheios de curiosidade.

— Está todo o pessoal nos abrigos. Estão avisados que vamos utilizar o lança-granadas. As sentinelas do lado do refeitório e cozinha dizem que voltaram a ouvir barulho de passos, mas que não viram ninguém. Possivelmente, terão-se deslocado pela mata junto à picada.

— Cuidado ao disparar o lança-granadas. Aponta cuidadosamente para o centro do monte. A malta vai estar atenta para ver se consegue ver algum vulto a fugir. Só dispara mesmo se vir alguma coisa. Que ninguém fique na zona da retaguarda do lança-granadas. Por precaução, é melhor saíres do abrigo e colocares-te ao lado, bem colado ao chão. Aponta bem e dispara quando eu disser. Prestem atenção. Dispara.

Claro está que todas estas palavras foram ditas em voz ciciada, com a altura mínima indispensável para serem ouvidas pelo pessoal do abrigo. Em fracções de segundo, a granada percorreu o espaço entre o abrigo e o morro, deixando um rasto de fogo. Tivemos uma sorte extraordinária, porque nem nos lembrámos do arame da vedação. A granada podia ter batido no arame e ter-se desviado. Mas não! Mesmo em cheio no morro, provocando um enorme clarão e barulho atroador, que espalhou uma nuvem de areia e estilhaços.

— Alferes, vai alguém a fugir.

Ainda o soldado não tinha acabado a frase e já outro disparava às cegas na escuridão da noite, apenas iluminada por uma multidão de estrelas, na direcção do que parecia um vulto a rastejar. Era impossível fazer pontaria. Só com muito azar o inimigo levaria com alguma bala.

Seguiu-se um silêncio profundo, com todo o pessoal calado e atento nos abrigos. Poucas horas depois, que pareceram ter sido excessivamente esticadas, começaram a distinguir-se, cada vez com mais nitidez, as árvores das matas em redor. Uma meia hora antes do Sol se erguer, com o céu claro e uma ou outra estrela mais teimosa, via-se perfeitamente tudo à nossa volta. Era dia claro e sem nuvens. No abrigo do canhão sem recuo, a uns dez metros de nós, o pessoal olhava para o nosso lado, à espera do primeiro que desse o exemplo de saltar do abrigo.

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