Do sonho para os abrigos

Ajeitei as cartucheiras para os lados, para não me magoarem. Estiquei-me sobre a cama, de barriga para o ar. As cartucheiras não me deixavam outra posição. Nem me dei ao trabalho de tirar as botas. E peguei rapidamente no sono, com vontade de retomar o sonho interrompido.

À minha volta, uma floresta com bandos de macacos, que saltam de galho em galho, recortando-se na abóbada esbranquiçada do céu. Em vez do Sol, uma Lua enorme, cor de prata, espalha uma luz clara de néon. Eu ando de cartucheiras e arma de um lado para o outro, com a cabeça levantada, a ver saltar de galho em galho uma população frenética de pequenos animais. Alguns, pendurados pelas caudas, olham para mim e fazem-me macaquices. Querem brincadeira e desafiam-me, fazendo caretas. Largo a arma e salto para uma árvore. Quando olho para baixo, verifico que estou com as mãos livres e a balançar no ar. Tal como os macacos, consigo balançar-me no ar, suspenso por uma cauda invisível. Não a vejo, mas sinto que um apêndice comprido, de outras eras, me mantém suspenso. Sinto-me livre e com uma enorme agilidade. Por incrível que pareça, percebo tudo quanto me dizem os meus companheiros. Há uma macaquita simpática, de pelo branco e com formas arredondadas, que me desafia para a brincadeira. É simpática e bonita. O seu contacto dá-me um certo prazer. Apesar de mais escura, tem uma pele macia, acetinada, que acaricio suavemente.

Vamos para uma árvore com uma larga copa e grossos ramos. Estamos ternamente encostados um ao outro, a olhar extasiados o disco luminoso da Lua. Subitamente, surgem lá em baixo, por entre as árvores, hordas de pretos armados, que começam a disparar para a copa das árvores...

Acordo bruscamente com o barulho das detonações dos caçadores. Mas o barulho é mesmo real, não é sonho. São tiros que vêm lá de fora. Meio estremunhado, agarro na G3 e saio a correr para o abrigo. A sentinela manda alguns disparos na direcção da entrada do quartel.

— Alferes, andam vultos lá fora. Não são animais.

Poucos segundos depois, chegam outros elementos ao abrigo. Da caserna do lado da pista, saem alguns soldados a correr. Um deles, ainda a atravessar a porta, dispara estupidamente para o ar. Deve estar cheio de medo e nem se lembra que, ao disparar, denuncia a sua posição e pode atingir algum camarada.

— Quantos é que faltam no abrigo? — pergunto em voz baixa.

Responde-me baixo a sentinela:

— Está aqui o Miguel, o Ramos, o Dias, o Alves e o Pedro. Já aqui está todo o pessoal deste abrigo, alferes. O seu plano está a bater certo.

De facto, a lista do pessoal enumerado confere com as minhas instruções do plano de defesa, em caso de ataque. Não me lembra se já anteriormente referi este aspecto, quando abordei o tema do plano de defesa. Mas creio que não, porque as instruções que vou passar a transcrever fazem parte de uma folha de aditamento, cujo conteúdo expliquei a todo o pessoal. Logo na primeira alínea, diz-se:

«1º - Em caso de ataque, logo que a sentinela veja algum vulto, deverá disparar para matar, visando cuidadosamente o alvo. Logo a seguir, deverá disparar sobre o alvo uma rajada curta, que funcionará de defesa e de alarme para todo o pessoal.

No caso de possuir uma granada de mão, desde que tenha a certeza que se trata de vultos estranhos e não de algum animal, deverá utilizá-la, mandando-a para o local onde veja o maior número de vultos.»

A segunda alínea diz respeito exclusivamente ao pessoal que está nas casernas. Diz o seguinte:

«2º - Uma vez dado o alarme, todo o pessoal deverá correr imediatamente, devidamente armado, para os abrigos respectivos, de modo que o quartel fique protegido por todos os lados.

Para evitar erros e hesitações, indicam-se a seguir os abrigos para onde cada um terá de correr (...)». 

Segue-se uma lista ordenada de 12 abrigos com os nomes dos respectivos ocupantes. Está de tal modo organizada, que em cada um há um elemento com maior graduação responsável pelo grupo.

No final da lista, apresenta-se uma regra básica de segurança:

«Depois do por-do-sol todo o indivíduo que for visto para lá do arame deverá ser considerado como suspeito, excepto se se tratar de tropas nossas ou pessoal conhecido.

Caso algum soldado ande fora do quartel e regresse fora de horas, deverá ter o cuidado de avisar a sentinela e de se identificar, para evitar ser alvejado.

Para evitar problemas, aconselha-se que todo o pessoal esteja dentro do aquartelamento antes do anoitecer.»

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