Insurreição no quartel

Da parte da tarde, pouco depois do almoço, tivemos a visita de um grupo de soldados comandados por um furriel. São uma secção do grupo que está destacado na povoação do Quitari, pertencente a uma companhia de um batalhão diferente do nosso. Como a nossa área é excessivamente vasta para uma só companhia, as povoações da Camuanga e do Quitari estão a cargo de uma companhia de outro batalhão, cuja área, mais para o interior de Angola, confina com a nossa.

O nosso batalhão ocupa uma vasta zona, provavelmente maior que algumas províncias da metrópole. A Sul fica o sector de Malanje; a Norte e a Leste, a República do Zaire ex-Congo Belga , separada de Angola pelo rio Cuango; a Oeste, as zonas de Maquela do Zombo, confinando com a fronteira Norte, a Damba e a sede do sector do Uíje, ao qual todos pertencemos, situada na cidade de Uíje ou Carmona.

Fazendo fé na escala do mapa de Angola da minha agenda, a área ocupada pelo nosso batalhão deve ter, aproximadamente, 200 Km de extensão por 150 Km de largura, o que corresponde a 30 mil Km2. E à nossa companhia, a Terceira Companhia do Batalhão de Caçadores 4511, coube precisamente a maior fatia, constituída por toda a área encostada à fronteira, no canto Leste superior de Angola, cuja principal povoação é Quimbele, onde está a sede da companhia.

Estávamos calmamente a jogar às cartas, quando ouvimos uma enorme algazarra na área próxima da entrada, entre o edifício do comando, onde estou instalado com os furriéis, e a caserna do lado da pista. Quase ao mesmo tempo, entra-me um soldado esbaforido pela porta:

— Alferes, venha depressa, antes que haja tiroteio.

— Mas o que é que se passa?

— Um furriel do Quitari está numa grande discussão com dois pretos da secção dele. Não querem cumprir as ordens e ele sacou de uma pistola.

Saí apressado do comando, acompanhado pelos furriéis, que largaram as cartas de qualquer maneira em cima da mesa. De facto, os ânimos estão ao rubro. Dois soldados corpulentos, de cor, insurgiram-se contra as ordens dadas pelo furriel. Não só não as querem cumprir, como avançaram ameaçadores para ele. Sentido-se incapaz de aguentar fisicamente a corpulência daqueles dois mastodontes, sacou da pistola que trazia à cintura e fê-los parar, sob a ameaça da arma.

Soldados meus, que presenciaram a cena e me vêem meter-me de permeio, correm para junto de mim, com receio que suceda alguma desgraça.

— O que é que se passa? — pergunto sob tensão, procurando disfarçar a pilha de nervos e aparentar uma calma que não sinto.

— Meu alferes, pedi a estes dois soldados da minha secção para irem comigo à cantina buscar o reabastecimento, e responderam-me que não era a vez deles. Disse-lhes que não era uma questão de vez, que eram eles que se encontravam perto e que, por isso, os escolhera para carregarmos a viatura e regressarmos antes da noite ao Quitari.

— Alferes, há mais camaradas que não fazem nada...

— O furriel não vos deu uma ordem...

— Deu, mas...

— Mas vocês recusaram-se a cumprir a ordem de um superior.

— Alferes — acrescenta o furriel — sempre que lhes compete fazer alguma coisa, recusam-se sistematicamente. Só têm criado problemas. Vieram doutra zona para o meu grupo, porque provocaram desacatos e estiveram presos. Foram punidos e mandados da Companhia onde estavam para a minha. E nós agora é que temos de os aturar.

— O furriel vai fazer a participação por escrito da ocorrência. Quanto a vós, quero que acalmem e pensem comigo. Já imaginaram o que vos sucederá se tiverem mais outro processo? Arriscam-se a sair de Angola, a vossa terra, e a irem parar à Guiné ou a Moçambique e a levarem com mais dois anos de comissão. É isso que querem?

— Não, alferes. Já tivemos um agravamento de seis meses...

— Bom, vamos então resolver o problema a contento de todos. O furriel vai efectuar a participação por escrito. Mas a participação ficará aqui em meu poder. Vocês vão deixar de causar problemas e passar a cumprir as ordens que vos derem. Só farei seguir o processo se o furriel me voltar a fazer queixa. No final, caso não haja problemas, rasgarei o documento. Estamos entendidos?

— Obrigado, alferes. Pode ter a certeza que vai rasgar o papel.

— Vão então com a viatura junto da cantina para carregarem o reabastecimento. Vai convosco aqui o furriel Teodoro. E, quanto a si — disse, voltando-me para o furriel do Quitari — vai comigo ao meu gabinete redigir a participação. Ficará arquivada desde que não volte a ter problemas. Espero vir a rasgá-la mais tarde! Mas, agora, não comece a sobrecarregar os dois homens como represália. Deverá tratá-los de maneira idêntica à do restante pessoal, para que eles não pensem que os passou a tratar como inimigos. E para acalmarmos os ânimos, vamos beber um uísque com uma gasosa bem gelada. Sabe bem e vai ajudá-lo a recompor-se.

Afinal, não tivemos desfiles e condecorações no dia da independência, mas íamos tendo uma salva de tiros. Os ânimos serenaram e o resto do dia acabou com a reentrada na rotineira monotonia, que se conservou inalterada até à noite de 5 para 6, em que apanhámos o nosso primeiro grande susto nocturno. Mas disto falaremos daqui a pouco.

Agora, vou fazer uma pequena pausa e beber uma «setupe» gelada com uísque. Recordei há pouco o desfecho da insubordinação, que acabou com umas bebidas antes do furriel regressar ao Quitari. E isto fez-me sede. Depois, com as goelas refrescadas, terei de referir, para seguir uma cronologia rigorosa, a correspondência que recebi da Guiné; e só depois recordarei a cena de tiroteio nocturno.

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