Uma carta para a Guiné

No princípio da semana, tive o prazer de receber uma carta de um camarada de Tomar, que foi mobilizado para a Guiné. A tarde de 4 de Dezembro foi passada na esplanada, isto é, no espaço em frente ao edifício do comando. Escrevi ao camarada Melo dos Santos. Foi um momento agradável, que me permitiu recuar no tempo até ao belo período que passei no R.I. 15 de Tomar. Não vou aqui referir a quantidade de recordações que me assaltaram. Para ser breve, vou-me limitar à transcrição de alguns excertos do aerograma que escrevi:

«... A melhor surpresa que tive, no começo desta semana, foi ter recebido carta tua. (...)

Escusado será dizer que a tua carta trouxe uns momentos de boa disposição a toda a malta conhecida. E, a propósito, veio à baila aquela famosa ceia, gravada no 15, em Tomar:

E vós, Cardeal, nunca amastes?

Sim, Eminência, uma donzela

casta e bela;

Mas o pai, aquele estupor,

deu-a a um lavrador ...

Se tivéssemos feito muitos ensaios, a representação desta paródia pornográfica à Ceia dos Cardeais não teria saído com tanta naturalidade. A minha única pena foi ter perdido a cassete com a gravação que tanto nos fez rir nos dias seguintes. Aliás, não sei se perdi a cassete ou se ela me foi subtraída do quarto. Na altura em que a reproduzimos, além das francas gargalhadas que provocou nos ouvintes, despertou desejos de duplicação. E desapareceu-me de um momento para o outro, o que faz pensar que alguém terá entrado no quarto e a terá levado. Felizmente, salvou-se a cassete com a gravação das mornas e coladeras, que registámos no nosso estúdio improvisado. Ainda te lembras dos dias em que fizemos as gravações?

Não haja dúvidas que o nosso camarada cabo-verdiano, o Martinho, toca e canta admiravelmente, especialmente depois de ter ingerido uns bons cálices de anis. Tenho a cassete aqui comigo. Mas, infelizmente, deixei a aparelhagem na metrópole!

Deixemo-nos de memórias passadas. É certo que recordar é viver... mas temos de regressar ao presente.

Estou nesta altura a comandar o destacamento do Alto Zaza, uma vastíssima zona relativamente próxima da fronteira nordeste de Angola, confinante com a República do Zaire, ex-Congo Belga.(...)

O clima é bastante bom. Faz lembrar o Verão de Portugal. A única diferença é que aqui chove frequentemente e de tal modo que as picadas ficam intransitáveis. Muitas vezes até são levadas pelas enxurradas. E quando circulamos por elas, em vez de picada encontramos enormes brechas, que nenhuma viatura consegue vencer. (...)

Para amenizarmos o isolamento, pensei há dias montar uma boîte no quartel. Mas como o gerador avariado só produz luz invisível e mulheres apetitosas não abundam por aqui, perdi o interesse pela iniciativa.

Antes de terminar a carta, isto é, o aerograma, não me posso esquecer do pedido que a malta me fez: mandar um abraço para todo o pessoal que passou pelo 15 de Tomar e está aí contigo na Guiné. Já agora, pergunta-lhes se não querem uma boleia comigo para Coimbra. Apesar de não andar com o Taunus há umas semanas, creio que ainda está em excelente forma para as curvas. E se eu, de braço ao peito e com uma mão o enfiava em sítios estreitos só a conduzir à esquerda, agora com as duas talvez até consiga fazê-lo passar por uma porta, andando de lado em duas rodas.

Vou terminar o aerograma, que já vai longo. Como o Natal está a vinte dias de distância, desejo-te a ti e a todos que esta quadra seja passada da melhor maneira possível.

Um abraço meu e de toda a malta ...»

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