O 1º de Dezembro

E estamos no dia 1 de Dezembro de 1972. É hoje feriado nacional. Comemora-se, aí em Portugal, o dia da Restauração da Independência. É um fim de semana prolongado para a maioria dos portugueses. É um dia de desfiles, medalhas, condecorações e discursos. Aqui, no meio do mato, espero que os macacos que vi na orla da mata saibam da importância deste dia e venham fazer um desfile na nossa parada. É que se eles se esquecerem do facto, ninguém se vai lembrar que é feriado e um dia tão importante. Também não será por isto que o rancho deixará de ser igual ao dos outros dias. De qualquer modo, é um dia importante para mim. Vai ser o dia em que, pela primeira vez, irei carregar no gatilho, digo, no disparador da minha máquina de congelar imagens.

Em frente ao edifício do comando, sobre o monumento erigido pelo grupo que viemos render, coloquei uma bacia de água, um espelho circular duplo, com uma face plana e outra convexa, para mostrar os pormenores, um pincel da barba e a gilete com uma caixa de lâminas novas. Vou deitar abaixo, finalmente, esta longa barba meio preta, meio aloirada, que já vai em mais de quinze dias. Não sinto vestígios dos inchaços na cara e nesta barba não voltarão a penetrar projécteis pretos com asas. Não estou com vontade de repetir a dose de ferroadas.

Depois de meia hora de trabalho difícil e meticuloso, com todo o cuidado para não fazer concorrência ao soldado que corta as peças de carne, tenho a cara sem a densa floresta. Está completamente limpa. A pele, agora a descoberto, está macia e mais branca que o resto da cara, meio tisnada pelo sol angolano e com uma tonalidade muito diferente do bronzeado da praia. Felizmente, a lentidão e os cuidados que tive deram óptimo resultado: nem uma só cortadela!

— O que é que o alferes fez? — perguntam-me espantados os furriéis.

— Mas o que é que se passa? — pergunto surpreendido pela inesperada reacção dos furriéis e soldados, que se juntaram à minha volta e me olham como se nunca me tivessem visto.

— Gostávamos mais de o ver com a barba! Já estávamos habituados a vê-lo com ela. Ficava-lhe bem! Nem parece o mesmo!

— Talvez tenham razão... mas aqui, no meio do mato, sem um bom quarto de banho com chuveiro, uma barba comprida é um foco de porcaria. Eu gosto de limpeza! E a barba grande no mato pode ser um factor de perigo. Já se esqueceram do que sucedeu há dias por ter a barba crescida? Levei mais aguilhoadas na cara do que todo o pessoal junto. E não estou nada interessado em repetir a dose. Dose só se for de marisco ou outro petisco!

Depois do abate florestal e de ter ido com o pessoal à água, para festejar o dia da independência com uma refrescante banhoca no riacho, regressei ao quartel com uma forte vontade de estrear a máquina, cujas instruções estavam já mais que memorizadas. Aliás, não foi difícil reter tudo o que estava no manual de instruções. A maior parte do que lá vem já eu estou farto de saber há anos! E para aproveitar ao máximo a película, desembalei-a e carreguei-a durante a noite, na escuridão total do meu quarto.

A inauguração solene, sem parada, sem discursos, sem medalhas, efectuou-se com três fotografias antes do almoço, em frente ao edifício do comando: a primeira mostrando todo o edifício pré-fabricado, onde passo e terei de passar uma boa parte dos meus dias de desterro; a segunda a mim mesmo, sentado nos degraus da entrada do edifício, de camuflado e com a mascote de um soldado, uma macaquita, sobre os meus ombros; a terceira aos furriéis Rodrigues e Donato, porque os outros foram para o campo de futebol em frente, onde se estava a realizar um renhido jogo entre soldados e nativos.

Como vêem, não podia ter arranjado melhor maneira de festejar o feriado nacional. Quando tirava a fotografia com a macaquita ao ombro, ela ainda me perguntou ao ouvido se não havia desfile na parada. Mas a tropa macacal, aos saltos de galho em galho, decidiu não abandonar a mata e borrifou-se completamente para o dia. Nem um só apareceu! Paciência! Fiquei altamente entristecido por tão solene desprezo! Quando regressar à metrópole, para expiação desta falta, prometo assistir mudo e quedo a um desfile de comemoração, se tiver o azar de me não esquecer desta promessa.

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