Acção Espoleta 9

À noite, depois do jantar, de distribuídas as sentinelas e de um momento de descontracção com os furriéis, em que jogámos um póquer de dados, pu-los a par da actividade para o dia seguinte:

— De acordo com o plano de acção em meu poder, para amanhã, dia 27 de Novembro de 1972, está prevista a Acção Espoleta 9, tendo como objectivo a zona de Quibula Calonge. A acção tem a duração máxima de 24 horas e deverá ser comandada por um alferes ou por um furriel, competindo ao comandante do destacamento elaborar toda a planificação.

Tal como podemos ver no mapa da região, a zona de Quibula Calonge fica na extremidade sul da picada que entronca com a picada do Alto Zaza a Quimbele, na sanzala de Quizacalele. A área é constituída por um aglomerado de quatro sanzalas, a distâncias muito próximas umas das outras: Quipangulo, Quibula Calonge, Capitão e Quiassuca. A distância da área da operação ao Alto Zaza deve andar pelos 10 a 15 quilómetros, pelo que, se a picada estiver transitável, não deverá levar uma hora de viagem.

Como comandante do destacamento do Alto Zaza, entendo que toda a região deverá ser do meu pleno conhecimento, pelo que a acção será comandada por mim. Para não ter de recorrer aos meus registos, qual o furriel que tem tido menos saídas do destacamento?

— Se o alferes vai comandar a acção, eu não me importo de o acompanhar, se os meus camaradas não se importarem — disse o Rodrigues. Entre passar o dia encerrado no destacamento e ir conhecer a região, prefiro a segunda hipótese.

— Eu também não me importo de ir acrescentou o Teodoro.

— Bom, se agora todos querem ir, teremos que tirar à sorte. Iriam dois furriéis se eu não fosse na operação. Mas como vou, só pode ir um comigo.

— O problema é fácil de resolver, alferes — disse o Donato no seu sotaque açoriano. O meu alferes tem aí os dados sobre a mesa. São cinco dados e nós somos quatro. Cada um lança um dado e vai consigo o que tirar a figura de maior valor.

— Essa foi bem sugerida! — disse eu ao mesmo tempo que o Ramalho. Já não morremos hoje acrescentei. Eu e o Ramalho acabámos agora mesmo de ter a mesma ideia e dissemos rigorosamente o mesmo. Peguem então nos dados e lancem-nos, porque antes de passarmos à horizontal ainda temos que planificar a acção de amanhã. Iremos fazê-lo aqui mesmo, em conjunto.

Lançados os dados, o Rodrigues e o Donato tiraram um ás, eliminando os outros dois.

— Afinal parece que os dados estão a bater certo. Foram os dois que manifestaram o desejo de ir na acção e ambos tiraram o valor maior. Mas continuamos sem saber quem vai. Vamos ao desempate.

O momento do sorteio foi de expectativa entre todos, mesmo os que já tinham sido eliminados. Quem iria comigo no dia seguinte?

— Vamos lá, Donato, lance o dado.

— Um rei! Foi pena não ter sido um ás! —exclamou o Donato.

— Isto está mau! — diz o Rodrigues. Seria muita sorte se me saísse agora um ás. Vou dar uma sopradela ao dado. Pode ser que resulte.

— Vá lá, não demores — diz o Donato. Não te adianta soprar. Com sopro ou sem ele, quem manda é a sorte.

— Um ás! — dissemos todos ao mesmo.

— Cuidado com as miúdas, Rodrigues — acrescentei na brincadeira. Sorte ao jogo... Afinal vai o primeiro que manifestou o desejo de me acompanhar. Se fosse supersticioso, diria que os dados se colocaram do lado do mais desejoso.

Fiquemos por aqui na evocação do momento. Não vale a pena prolongar por mais tempo a narrativa. Se dei uma certa ênfase a este pormenor do processo da escolha do furriel foi apenas para vos mostrar que aqui, em pleno mato, aproveitamos as coisas mais ínfimas para nos ajudarem a passar o tempo. E os dados, que me têm acompanhado sempre por toda a parte desde o primeiro ano da universidade, continuam a merecer o dinheiro que custaram. Andam sempre comigo no bolso, mesmo durante as deslocações e as operações na mata. Com eles, temos sempre uma maneira agradável de ocuparmos os tempos livres sem enfado. Sem falar nos óptimos momentos que já me proporcionaram, nos tempos de Coimbra, quando tinha como adversárias algumas das minhas colegas de curso. Ao jogo outros jogos se juntavam, permitindo-nos jogar noutras esferas. Pena é que os meus parceiros de agora não possam transmutar-se nas colegas de então! Bons tempos! Vieram-me agora à lembrança e fizeram-me esquecer, por breves momentos, que estou para aqui enfiado no meio de um continente que não é o meu.

A Acção Espoleta 9 decorreu sem problemas. Tal como previra, a viagem fez-se com relativa facilidade. A picada está razoável e chegámos ao destino em menos de uma hora. Se todas as acções fossem como esta, estaríamos cheios de sorte.

Além de termos contactado com as populações, a nossa grande preocupação foram as crianças e o idosos. Em todas as povoações, os mais carenciados fizeram bicha junto às viaturas. E o enfermeiro, coadjuvado por mim e pelo furriel, não teve um minuto de descanso. Esgotámos os medicamentos que leváramos. Alguns pacientes apresentavam ferimentos e diversas mazelas com mau aspecto, que o enfermeiro desinfectou e polvilhou com um antibiótico no género das sulfamidas. Outros não apresentavam qualquer doença, exceptuando a natural degeneração celular motivada por uma idade avançada. Mas como dizer-lhes que a única doença de que sofrem é o caruncho da idade, a velhice que a todos nos há-de atingir com maior ou menor rapidez? Fomos distribuindo as aspirinas e outros comprimidos inócuos aos que se queixavam de dores. Muitas vezes, o melhor tratamento é o psicológico. E, nestes casos, se não lhes damos qualquer coisa para tomarem, mesmo que não produza qualquer efeito, poderá ser traumatizante.

Pouco depois do meio-dia, percorridas as quatro sanzalas e comidas as rações de combate, dei uma hora de folga ao pessoal. E regressámos ao Alto Zaza, onde chegámos bastante cedo, talvez mesmo bastante antes das dezassete horas.

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