Carta para Luanda a seguir ao duche

Tomei um duche de água morna, debaixo de um bidão colocado sobre a plataforma de madeira e com um ralo de chuveiro no fundo. Bebi uma cola gelada com uísque e sentei-me na mesa junto à porta do edifício de comando para escrever um aerograma para Luanda. A mesa e as cadeiras são as nossas últimas aquisições. Devemo-las a um soldado, que é especialista a trabalhar a madeira. Com as aduelas das pipas de vinho e tábuas dos caixotes, fez uma mobília de categoria. Aqui, encostado ao comando, onde eu e os furrieis estamos instalados, parece uma esplanada de café. Até um banco comprido de aduelas de madeira foi construído pelo soldado habilidoso. E, frequentemente, é uma zona preferida por vários soldados, que se vêm aqui sentar para passarem um pouco de tempo na conversa connosco.

Agora, para que fique também para a posteridade, vou transcrever-vos o curto aerograma que escrevi ao solicitador Rui Moreira, de Luanda.

«Alto Zaza, 27 de Novembro de 1972

Caro Amigo,

Peço desculpa por só agora lhe escrever a agradecer todas as atenções que teve comigo. Infelizmente, mal cheguei a Sanza Pombo, segui imediatamente para Quimbele e daqui para um destacamento no Alto Zaza, donde lhe estou a escrever.

Até ao momento, tudo tem corrido o melhor possível. O trabalho é muito e não me dá tempo sequer para me aborrecer. Além de quarenta e cinco homens sob o meu comando, tenho ainda de abastecer e dar apoio a outros grupos de combate disseminados pelos arredores.

Há cerca de uma semana, desloquei-me a uma povoação a cerca de 60 quilómetros daqui. Lamentei apenas não ter levado uma máquina fotográfica. Perdi cenas encantadoras e carregadas de exotismo, que só muito dificilmente voltarei a encontrar.

Contactei já diversas populações nativas. Em todas tenho sido muito bem recebido. Na povoação de Camutebe, onde a avaria de uma viatura me obrigou a pernoitar, o soba foi imensamente gentil, colocando uma cubata à nossa disposição. Aqui mesmo, durante a manhã do dia seguinte, na companhia de um rancho de miúdos, dei início à minha recolha de vocábulos da língua falada na região o Quimbundo.

Deparei com bastantes crianças doentes, algumas talvez devido à falta de higiene. E lamentei não ser médico e ter insuficiência de medicamentos para as poder tratar.

Segundo uma informação há pouco recebida do Comandante de Companhia, só lá para o fim do próximo mês receberemos o primeiro vencimento em terras de Angola. E lembro-me da previdência da sua insistência, ao obrigar-me a aceitar os dois mil escudos. Estava longe de imaginar que viriam a ser o meu suporte monetário durante todo este tempo! Pode ter a certeza que, assim que chegar o primeiro vencimento, receberá aí em Luanda um vale telegráfico com a quantia que fez o favor de me emprestar.

Vou-me despedir do amigo. Além do aerograma já não ter espaço para mais linhas (é esta a razão de lhe escrever com letra miúda, para caber mais texto), está neste momento um cabo a chamar-me para ir verificar os trabalhos de vedação do quartel com arame farpado. Vão ter de esperar ainda uns minutos que acabe este aerograma. Irei depois ver o trabalho que fizeram. Além de manter o pessoal ocupado, todos os trabalhos de reforço da segurança nunca são demais. Aliás, esta é já a fase final das actividades. Uma das minhas prioridades foi precisamente elaborar um plano minucioso de defesa, reforçar todos os abrigos e agora, para culminar, reforçar toda a cintura envolvente com arame farpado e alguns dispositivos de segurança idealizados por mim, para prevenir qualquer surpresa desagradável durante a noite. Tenciono sair daqui sem baixas e poder voltar a estar consigo, se não antes, pelo menos no final da comissão, quando estiver de regresso a Portugal.

Peço desculpa por mais estas linhas de escrita. Tenho uma tendência enorme para escrever. E quando comunico com pessoas com quem simpatizo, as palavras jorram com facilidade da extremidade da caneta.

Despeço-me agora com um abraço sincero de amizade. Se me quiser escrever e as suas palavras ser-me-ão agradáveis o meu SPM é 6666. É um número fácil de fixar. Bastará o meu nome, Ulisses de Almeida Ribeiro, e a indicação S.P.M. 6666. (...)»

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