O que fazer?

O Donato, que se atirou depois de mim, porque ia no meio do banco, e por sorte não me atingiu, levanta-se assarapantado. No seu sotaque açoriano, é o primeiro a quebrar aquele breve momento, que nos pareceu uma eternidade:

— Alferes Ulisses, o que é que vamos fazer?

Olhei para a viatura, lá no meio da subida, e para as árvores, para avaliar a situação. Pus as engrenagens mentais a trabalhar:

— Por ora, não vamos fazer nada! Vamos ter de esperar. Esperar que a raiva das vespas se dilua. Olhe para a copa das árvores, por cima da viatura, mesmo na direcção do escape.

Toda a malta seguiu as minhas palavras. Lá bem no alto, mesmo no enfiamento do tubo de escape, está uma bola de râguebi escura, pendurada de um galho, tendo a toda a volta uma nuvem de insectos pretos. O vespeiro está mesmo por cima do escape e a fumaça preta das várias aceleradelas irritou os habitantes, que tocaram a rebate e lançaram contra nós aqueles soldados pretos, de corpo esguio, armados de baionetas, que nos atacaram sem dó nem piedade, e contra os quais não há armas eficazes, excepto a debandada geral. Aqui está a razão que levou todo o pessoal a lançar-se de qualquer maneira da camioneta. Como estavam a descoberto, foram os primeiros a serem alcançados pelo exército inimigo. Os que iam na cabina, como a trazíamos coberta com o oleado, para protecção do sol e da chuva, só foram atacados mais tarde, quando os insectos descobriram o acesso pelas janelas. Valeu-nos, a nós que íamos lá dentro, o grito de alarme do soldado que se lembrou de nós e nos avisou para fugirmos do ataque. Caso contrário, teríamos ficado em bem pior estado, à mercê da raiva daquelas malvadas.

Ao fim de cerca de meia hora, que nos pareceu uma eternidade, a fúria vespal amainou.

— E agora, o que é que vamos fazer? — perguntaram-me os soldados.

— Eu não me meto na viatura — acrescentou o condutor. Estou todo picado e já me chega a dose que levei.

— Tenham calma! — gritei ao pessoal, que começou a falar todo ao mesmo tempo e em voz alta. Calem-se e deixem-me pensar. Com esta barulheira não consigo concentrar-me.

A malta serenou. E comecei a minha reflexão em voz alta, para que todos pudessem acompanhar o meu raciocínio:

— O ataque que acabámos de sofrer foi provocado por nós. Fomos nós, com o fumo do escape, que irritámos a colmeia. As vespas nunca atacam ninguém, a menos que se sintam incomodadas ou em perigo.

— Pois sim! — diz o condutor. Eu é que não me meto na viatura. Para a tirar de lá, a fumarada volta a assanhá-las e eu é que me ... Não posso aqui reproduzir a palavra por ele largada, quando não tenho a censura à perna. Mas não será muito difícil adivinhar o que costuma sair em situações de comunicação como esta!

— Tem calma e tento na língua, que o perigo já passou. Não voltam mais a atacar-te.

— Como é que o meu alferes sabe?

— Muito simplesmente porque não voltas mais a incomodá-las.

— Como não? Quando puser o motor a trabalhar levam outra vez com o fumo nas ventas e eu é que me tramo.

— Não levam nada. Porra, vocês não me deixam explicar o que é que se tem de fazer! E desta maneira nunca mais daqui saímos. Daqui a pouco é noite e nós aqui. Vamos a calar e prestar atenção ao que vou dizer.

Em primeiro lugar, vamos para junto da viatura, porque já lá não andam nenhumas vespas. Em seguida, para a viatura não trabalhar em falso, o pessoal vai pegar nas pás e enxadas e vai escavar a parte superior da picada, formando dois carreiros da largura das rodas, até ao cimo da subida. A argila é impermeável, a água não a atravessa. Só está escorregadia na superfície. Tirando a película superior, quero dizer, a camada de cima, ficamos com um piso seco, sobre o qual as rodas se agarram bem e não derrapam. Depois de feito o trabalho, o condutor mete-se na viatura, põe-na a trabalhar e arranca imediatamente, devagar, até ao cimo da subida. Vais ver que chegas lá a cima sem dificuldade e as vespas não te fazem mal.

— Isso é o que o alferes diz, porque não vai lá para dentro.

— Até parece que estás para aí borrado de medo! Se tiveres medo, eu próprio tiro a viatura do sítio em que está e não tenho qualquer problema.

Serenados os ânimos e convencidos pelas minhas palavras, proferidas com firmeza e com absoluta certeza de que tudo iria passar-se desse modo, aproximamo-nos da viatura. Alguns ainda vão olhando para cima, com ar desconfiado, lembrando-se das agulhadas há pouco sofridas. Mas o vespeiro está já tranquilo e a confiança está adquirida. Alguns soldados iniciam o trabalho, sob a orientação do furriel. De repente, um soldado salta para a caixa da berliet:

— Ouve lá, o que é que vais fazer? Quem te autorizou a subir para a viatura?

— Alferes, vou buscar a espingarda.

— Para que é que a queres? Aqui não há turras. E se os houvesse, já há muito nos tinham tramado, quando estávamos todos a monte, estatelados junto ao pontão.

— Não é para os turras; é para estoirar com as vespas.

— Nem penses! Se o fizeres terás problemas comigo! As vespas não fazem mal a ninguém. Apenas se defenderam porque perturbámos o seu sossego. Larga a canhota e salta cá para baixo. Vai ajudar os teus camaradas.

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