Pondo a escrita em dia

Ora cá estou eu outra vez de caneta na mão, para continuar o meu relato. Para nos refrescarmos, temos os copos meio atestados com uísque e setupe. E digo temos porque é mesmo temos e não tenho. É que o furriel Rodrigues também alinhou comigo na bebida. E entre o almoço e a bebida, também ele se fartou de dar ao dedo. Não escreve tantos aerogramas como eu. É muito mais lento. Enquanto a minha caneta desliza com enorme velocidade sobre o asfalto amarelo dos aerogramas, que já fazem um belo monte, ele está muitas vezes de esferográfica no ar, absorto a revolver a massa cinzenta, para de lá arrancar as palavras que vai alinhando na carta. E notei que é mais fino do que eu. Enquanto eu me contento com aerogramas, ele utiliza um bloco de papel de carta, mesmo sabendo que lhe irá atrasar a correspondência. Os aerogramas seguem directamente pelo correio militar, ao passo que ele terá de adquirir os selos em Quimbele, no correio. Para os aerogramas, estes pequenos obstáculos não existem. É só dobrá-los, passar a língua ou o dedo humedecido pela zona com cola e metê-los nas sacas em que transportamos a correspondência. Mas ele lá sabe aquilo que lhe convém!

Está-me o furriel a dizer que comprou muitos selos em Luanda antes de vir para o mato. Como é que ele sabe que estou aqui a falar dele? Muito simplesmente porque acabo de lhe perguntar se tinha selos e a razão de não utilizar os aerogramas. Para a mãe utiliza-os também. Mas esta carta, que lhe está a dar tanto trabalho na procura de inspiração, não é para a mãe; destina-se a uma miúda que conheceu em Lisboa, pouco tempo antes de termos embarcado para Luanda.

Não lhe quis tirar mais nabos da púcara. Se lhe dou corda, começa-me a falar das conquistas e eu tenho mais que fazer. Tenho o ataque que sofri ontem pendurado há já umas linhas. E vocês aí devem estar em pulgas para saberem o que é que nos aconteceu durante a viagem para Quimbele. Para já, podem estar tranquilos, que sobrevivi ao ataque; senão, não estaria agora a escrever-vos. E embora na altura ninguém tivesse tido vontade de rir, a verdade é que ainda hoje, ao almoço, ao recordarmos a aflição de toda a gente e as cenas ocorridas durante o ataque fartámo-nos de rir. Agora achamos-lhe graça! Mas espero que nunca mais tenhamos de passar por situação idêntica, porque ainda tenho alguns vestígios no corpo. Já não me doem, mas ainda me incomodam...

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