Recuperação breve em Quimbele |
O resto deste dia vinte e dois, depois de um bom duche e de um jantar comido com grande prazer na companhia do capitão e dos outros alferes, foi passado em agradável convívio no Briosa Bar. Após um café e uma partida de póquer de dados, o serão foi animado pelo meu relato pormenorizado de todas as peripécias das últimas quarenta e oito horas e pela troca de informações sobre o que fizemos durante os primeiros dias da nossa permanência na região.
O dia seguinte foi totalmente passado em Quimbele. Logo pela manhã, a minha preocupação foi dirigir-me ao edifício de comando para saber o que está a ser feito em relação ao pessoal que ficou em Camutebe. E fi-lo já a meio da manhã. Acordei mais tarde do que o costume. Já tinha passado há muito da hora do pequeno-almoço. No edifício dos oficiais, a messe, além do impedido e de mim, não estava mais ninguém. O impedido arranjou-me o pequeno-almoço, que tomei rapidamente, e saí.
Não me lembro se já vos falei dos edifícios em que está instalada a sede da Terceira Companhia de Caçadores, a que pertenço. Como não tenho a certeza e não estou nada com vontade de rever as cópias a químico dos aerogramas que já vos mandei, vou mesmo falar-vos das instalações. Já que tenho que aqui viver temporariamente e quero que, aí em Portugal, possam também acompanhar através da imaginação as minhas vivências e deambulações por estas vastas e magníficas terras de Angola, só o conseguirei se vos fornecer todos os elementos com um certo pormenor. Ainda que não aprecie muito as descrições através das palavras, que sempre ficam aquém de uma boa imagem, vou procurar dar-vos uma ideia o mais fiel possível do local onde agora me encontro. Mais tarde, quando tiver adquirido a máquina fotográfica, que não me sai da cabeça, mandar-vos-ei fotografias daqui. Por agora, terão de se contentar com fotografias verbais, ou seja, com as minha descrições.
O edifício onde os oficiais têm residência é uma pequena vivenda térrea, de paredes azuis, constituído por dois blocos rectangulares contíguos. No maior, ficam os quartos, com janelas protegidas por persianas brancas com ripinhas de madeira, que nos protegem do calor. O bloco mais pequeno, onde fica a nossa sala de jantar, tem a toda a volta uma varanda coberta, com o telhado suportado por arcos de volta inteira. É no lado voltado para a avenida principal, junto à zona onde as duas secções rectangulares se unem, que fica a escadaria de acesso à entrada principal. O edifício é moderno e agradável. No arco da entrada, ao cimo da escadaria, seria um bom local para tirar uma fotografia de recordação. Mas como a máquina ainda só está em projectos, espero não me esquecer desta ideia.
Do lado de secção rectangular mais pequena, onde temos a sala de jantar, há um acesso em terra que dá para as traseiras do edifício, onde fica a oficina e garagem das viaturas militares. Também deste lado, entre o nosso edifício e um depósito de água, fica outra construção no estilo da nossa, constituída pela escola e casa dos professores primários. São um casal ainda bastante jovem, talvez da minha idade ou um pouco mais velhos. Tive a oportunidade de os cumprimentar quando saía da messe. Conversei um pouco com eles e verifiquei que somos da mesma região. Segundo me disseram, pertencem a uma família da região de Aveiro, de apelido Marado, que o pai talvez conheça. Estavam na hora do recreio, facto que me permitiu estar com eles.
Depois da breve e agradável conversa, por ter encontrado quase conterrâneos, dirijo-me para o edifício do comando, situado do lado da secção rectangular mais larga da messe de oficiais. É uma casa também térrea como todas as edificações da povoação, de secção quase quadrada, tendo a toda a volta um alpendre. A pouco mais de cinquenta metros, no topo da avenida, fica o edifício da administração de Quimbele. Próximo, no lado oposto da avenida, quase em frente à messe, está a casa do administrador.
Chego ao edifício de comando e entro, procurando descobrir onde é o gabinete do capitão. Ainda não conheço muito bem o interior, mas um soldado indica-me a sala, onde está o capitão e o alferes que tem o mesmo quarto onde dormi.
— Eis-nos que chega o Ulisses — diz o capitão, assim que me vê entrar. Finalmente acordou. Já vens com outra cara, apesar de trazeres ainda essa barba indecente!
— Bom dia — foram as minhas primeiras palavras. De facto, pensei no problema da barba quando estava no chuveiro. Mas como não contava ter dormido em Quimbele, não trouxe comigo o estojo da higiene. Tive até de usar um champô que estava na casa de banho. Não sei se é do Vieira ou do capitão. Não quis dar trabalho ao impedido para me ir comprar um frasco à cantina. Além do mais, estava com pressa de vir ter convosco. Espero que não fiquem aborrecidos comigo por o ter usado.
— Deves ter usado o meu — disse o Vieira — porque cheiras a maçãs verdes. É o único que tem este cheiro característico e por sinal bastante agradável.
— Então, o que é que te traz por aqui? — perguntou-me o capitão.
— Venho saber se já trataram do problema da viatura acidentada e do meu pessoal, que ficou no
Camutebe.
— Já! Tínhamos acabado há pouco de reflectir sobre isso, eu e o Vieira. Como neste momento também estamos com problemas de viaturas, o unimogue vai ter de lá ficar por mais algum tempo...
— E o meu pessoal que está no Camutebe? — perguntei bruscamente, cortando as palavras do capitão. Ele é que me preocupa, não é a viatura. Sem ração de combate e sem meios adequados, não devem estar lá muito bem.
— Também já tratámos disso. Já demos ordem pela rádio ao furriel para regressarem ao Alto Zaza. Aliás, logo pela manhã, já aqui estava o radiotelegrafista a transmitir-nos a mensagem do Rodrigues. Ele ligou bem cedo para o Alto Zaza a saber como era. E do Alto Zaza ligaram para aqui. Por isso, não tens que te preocupar. Aproveita o dia para descansar e dar uma volta por Quimbele. Regressas a meio da tarde ao Alto Zaza com a berliet e amanhã voltas cá outra vez. Tens de trazer um grupo de vinte GEs, para participarem numa operação conjunta na zona de Macocola. Mas fica descansado, que não tens de ir nela. Já tiveste acção de sobra nestes últimos dias. Olha, aproveita bem o tempo para recuperares e vai beber por nós um fininho ao Briosa Bar. Tens lá muita companhia. E até pode ser que ainda passemos por lá antes do almoço.
Saio do edifício de comando e desço lentamente a avenida principal, gozando o calor, que não é tão insuportável como o de Luanda, e o maravilhoso azul deste céu, contra o qual se recortam grandes nuvens brancas, fazendo um contraste vivo que raramente se consegue ver aí na metrópole. Passo ao lado da messe, da escola, do depósito da água, da escadaria em frente à igreja. E lembro-me que ainda não entreguei o manual da máquina fotográfica. Atravesso a avenida e vou cumprimentar o dono da loja, dar dois dedos de conversa e uma satisfação pela demora na entrega do libreto. Volto depois a atravessar a avenida e chego finalmente ao Briosa Bar, a meio da descida antes da curva pronunciada para a esquerda que leva à zona baixa da povoação. Peço um fino e sento-me na esplanada, na companhia de alguns soldados e do cabo enfermeiro, que aqui passa o tempo quando não tem clientela na enfermaria, que fica no edifício ao lado do café.
Conversamos, bebemos uns finos, comemos pires de ginguba sem casca, torrada ainda há muito pouco tempo, e a manhã passa-se num instante. E, pelos vistos, os oficiais com quem estive antes de vir para o café tiveram muito que fazer, porque só os volto a encontrar durante o almoço. Possivelmente, terão passado o resto da manhã a planear a acção prevista para o dia seguinte.
Regresso a meio da tarde ao Alto Zaza com a berliet e o pessoal que trouxe comigo e que me acompanhou durante parte da tarde, pouco antes da hora combinada para sairmos.
O regresso ao Alto Zaza fez-se sem problemas. A vida no destacamento tinha entrado já nos seus eixos rotineiros, com toda a gente em segurança.
No dia vinte e quatro, ou seja, ontem precisamente, volto logo pela manhã a Quimbele, para cumprir as ordens que o capitão me deu. E foi um dia que nunca mais esquecerei, pelo ataque invulgar que sofremos na picada, a meio da viagem. Mas disto falaremos a seu tempo, porque por agora vou ter de efectuar uma pequena pausa. Vou interromper o relato que vos estou a fazer para ir à arca frigorífica buscar uma Setupe bem geladinha e um copo com uísque. É que as goelas da minha caneta começam a ficar secas e os dedos só a fazem trabalhar quando a temperatura do motor não está fora dos limites. Portanto, até daqui por uns minutos. Se isto fosse um programa de televisão, colocaria no ar «O programa segue dentro de momentos», acompanhado por uma música suave. A propósito, querem crer que até estes imprevistos da televisão portuguesa me vêm à memória com saudade?
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