Um azar nunca vem só

Eram doze horas quando vejo chegar, imprevistamente, o furriel Rodrigues com três homens. Ninguém dera pela sua chegada. Contávamos com o barulho das viaturas para nos avisarem da chegada dos socorros. Mas isso não acontecera. Entre Cazôa e Camutebe, não muito longe do sítio onde se nos avariara a viatura, o grupo de socorro sofrera um acidente, pelo que ficou o pessoal na picada, tendo o furriel feito o percurso a pé na companhia de dois soldados e do mecânico. Felizmente, apenas um soldado ligeiramente ferido, mas sem nada de gravidade! Pior ficou a viatura. Bastante danificada, tornava-se necessário ir a Quimbele buscar outra munida de guincho para retirar o unimogue da posição crítica em que ficara.

Ao fim de um quarto de hora, o mecânico tinha substituído a correia da ventoinha e o unimogue podia andar sem problemas de gripar o motor. Como eu e os soldados que tínhamos ficado na sanzala já não tínhamos ração de combate e a fome apertava, foi a vez do outro grupo esperar em Camutebe.

Quando passei junto da viatura acidentada, parámos um pouco para apreciar a situação. A viatura estava caída fora da picada e de patas para o ar. Não havia qualquer perigo de a levarem dali. Quem é que quereria uma viatura acidentada? Os terroristas? Só se a levassem às costas. Perante a situação, dei ordens ao cabo que ficara a comandar o grupo que deixasse a viatura e fosse para a sanzala de Camutebe. Sempre estavam mais seguros e a viatura era secundária. O importante é que não lhes acontecesse nada. Para mais, era difícil avaliar quanto tempo iriam ter de ficar por aqui, longe do aquartelamento. De certeza que antes de vinte e quatro horas não conseguiríamos resolver o problema da viatura. De modo que, entre anéis e dedos, ficassem os dedos em segurança.

Eram cerca das treze horas quando cheguei ao destacamento do Alto Zaza. Aí deixei ficar os soldados para recuperarem e destaquei uma secção para seguir comigo para Quimbele, a fim de fazer o relatório pormenorizado dos acontecimentos e requisitar uma viatura com guincho. Como tinha pressa em resolver a situação e recolher o mais depressa possível o pessoal que ficara em Camutebe, segui logo para Quimbele, mesmo sem almoçar. Limitei-me a duas sandes de queijo e uma Seven Up, depois de ter bebido quase de um trago outra bem gelada com uma dose de uísque. A fome era capaz de aguentar por mais uns minutos. Mas durante o percurso entre Camutebe e o Alto Zaza, debaixo da fornalha solar, só pensava numa bebida gelada com uísque que me acabasse com a seca interior. Esta sede foi agravada pelas várias horas sob um sol escaldante e, sobretudo, pelo facto do meu pequeno-almoço ter ficado limitado à bisnaga de leite condensado que me sobrara da ração de combate. De facto, logo pela manhã, como a água do cantil já estava choca, limitei-me a chupar directamente do âmio.

A bebida a que me referi no parágrafo anterior causar-vos-á talvez alguma curiosidade. É uma marca desconhecida aí na metrópole. Quando a bebi pela primeira vez, em Luanda, fez-me lembrar os pirolitos com bolinha que existiam no tempo da minha escola primária, quando vivíamos em Espinho, e cujas esferas de vidro costumávamos ir pedir a uma fábrica de pirolitos. Ficava ao cimo da rua 19, se a memória não me atraiçoa, próximo de uma fábrica de plásticos. Quando bebi pela primeira vez esta limonada ou gasosa angolana, vieram-me à lembrança as imagens da escola primária e dos meus companheiros. E lembrei-me do Alvim, meu companheiro de escola, filho ou neto, já não sei bem, dos donos da fábrica dos pirolitos, que nos guardavam as esferas de vidro das garrafas partidas e que faziam as nossas delícias, pois eram as melhores esferas para os nossos jogos de berlinde.

E já que estou a falar destas gasosas ou limonadas, por sinal bastante agradáveis quando geladas e misturadas com uísque, lembro-me que os soldados, nos primeiros tempos, lhe chamavam «setupe», precisamente porque o rótulo era constituído por um 7 seguido da palavra inglesa «UP», tudo em caracteres bem grandes e grossos. Como os soldados não sabem inglês e seguramente nunca lhes passaria pela cabeça que fosse dado um título inglês em território nacional, passaram a chamar-lhe SETUPE em vez da designação «Seven Up». Devo acrescentar que esta não é a única marca de bebidas que constitui novidade para quem chega da metrópole. Há muitas outras, para meu espanto, totalmente desconhecidas e que, se aí existissem, não deixariam de ter uma boa aceitação. Mas como Angola é um território espantosamente diferente e muito superior a esse minúsculo país, que é Portugal, do qual começo já a sentir algumas saudades, não tenho que ter razões para me espantar.

Deixemos as reflexões e voltemos à viagem. Entre o Alto Zaza e Quimbele, optei por levar a berliet que temos no destacamento. Ser-me-ia muito difícil aguentar mais quatro ou cinco horas de solavancos em cima de um unimogue. Embora a berliet também balance, a sua maior largura e suspensão conferem-lhe uma grande estabilidade, tornando as viagens, mesmo nas piores picadas, mais suportáveis. Mas, mesmo assim, cheguei a Quimbele com um aspecto que não devia ser dos melhores, a avaliar pela reacção do capitão e dos alferes quando me viram chegar. Também não era de admirar. Com uma barba de dois dias, completamente sujo e com um ar de quem já não descansava numa boa cama há quase dois dias... Depois de rapidamente o ter posto ao corrente dos acontecimentos, mandou-me ir tomar um banho e descansar, que alguém haveria de resolver o problema da viatura acidentada.

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