Ida ao Canduto e noite no Camutebe

Eram sete horas e trinta do dia vinte e um quando saí do quartel com duas secções, uma das quais chefiada pelo furriel Rodrigues, e duas viaturas. Teoricamente deveria levar mais pessoal comigo. Mas não o fiz, por necessitar de espaço. A minha saída ficou a dever-se ao facto de me ter sido pedido para levar dez elementos GEs à povoação de Canduto. Esta é uma povoação que fica praticamente nos limites da minha área, relativamente próxima da fronteira com a república do Zaire, a norte de Camutebe. Será fácil ficarem com uma ideia da sua localização se consultarem o esboço que vos desenhei no começo desta série de aerogramas. No cotovelo entre a povoação da Cazôa e Camutebe, há um trilho à esquerda, que leva até próximo da fronteira, passando por duas povoações indígenas. Embora se trate de um trilho, a verdade é que o acesso se faz com relativa facilidade utilizando uma viatura com reduzida largura, como é o caso dos unimogues, capazes de andarem em todo o tipo de terreno.

Saí do Alto Zaza com reduzido número de homens apenas até à povoação da Cabaca. Aqui subiram os dez GEs, devidamente armados, que iam para o Canduto, a fim de aí realizarem uma missão de rotina, comandados pelo chefe Simão. A viagem fez-se sem grandes problemas enquanto circulámos na zona da picada. Quando tomámos o trilho, a deslocação passou a efectuar-se a passo de tartaruga e com grandes precauções. Só chegámos ao destino pelas treze horas, após cinco horas e meia de marcha sem paragens mas com muito solavanco.

A permanência no Canduto foi breve, limitada a uns trinta minutos para podermos descansar e comer de algumas latas das nossas rações de combate. A refeição decorreu na companhia dos GEs e dos miúdos da povoação, com quem repartimos parte dos nossos haveres. Como tinha perto de mim uma miudita de olhos muito vivos, que não se deslocavam de mim e da ração, tive o cuidado de apenas comer metade de cada lata. A outra metade estava destinada à minha jovem e esfomeada companheira. E creio que não fui o único a repartir a refeição, pois as crianças eram várias, o apetite não lhes faltava e ninguém era capaz de comer vendo aqueles olhitos vivos de curiosidade e também com vontade de comer. Não quer isto dizer que os miúdos passem fome, pois nas sanzalas, no meio do mato, as populações têm sempre que comer. Além de muitas frutas exóticas, há a mandioca, que constitui o prato mais importante da alimentação indígena. E com a carne dos animais, especialmente das galinhas que passeiam pela sanzala, fazem-se óptimas fubadas. Mas uma coisa é uma boa fubada, outra é o conteúdo das nossas latas, que eles não estão habituados a comer. E demais a mais, há muito se sabe como é a galinha da vizinha...

Pelas treze e trinta despedimo-nos do grupo de dez elementos. Distribuí o meu pessoal pelas duas viaturas e despedimo-nos da população local, para um regresso lento e cauteloso até à picada. Ao fim de duas horas, quando estávamos a chegar ao entroncamento, avaria-se uma das viaturas. Eram precisamente quinze horas e quarenta e já não tínhamos muitas horas de luz. Mais três e começaria a noite a cobrir-nos.

— O que é que sucedeu? — perguntei ao condutor, que estava a tentar avaliar a situação.

— Uma das correias de transmissão rebentou, devido ao esforço, e não temos connosco nenhuma sobressalente. Se andarmos com a viatura, arriscamo-nos a gripar o motor.

— O que é que acha que se deverá fazer? — perguntou-me o furriel.

— A solução será ir ao Alto Zaza buscar material para substituição. Mas por agora, o melhor é irmos até à povoação de Camutebe. Daqui a pouco é noite. É um risco ficarmos no meio do mato. Conheço o soba e de certeza que nos arranja uma cubata para dormirmos.

— Vamos deixar a viatura abandonada na picada? — perguntou o condutor, preocupado e com receio de haver algum problema maior.

— A viatura da frente aguenta com todos os homens e outra a reboque? — perguntei ao condutor.

— Ia precisamente sugerir isso ao meu alferes — disse o condutor. Se a distância não for muita e andarmos devagar, não devemos ter problemas.

— Está decidido. Daqui à povoação e andando na picada, deveremos chegar sem problemas.

Com bastante cuidado e uma vez mais a passo de tartaruga, mesmo na picada, fomos avançando até à sanzala, onde chegámos ao fim de mais sete horas de viagem. Com o barulho da viatura, em breve tínhamos acordado a aldeia. Vários indígenas tinham saído das cubatas para verem o que se passava. O soba, que se encontrava entre eles, reconheceu-me imediatamente e revelou-se um simpático anfitrião. Pouco depois, tínhamos metade do pessoal devidamente instalado para passar a noite numa cubata. A outra metade seguiu no unimogue operacional para o Alto Zaza, sob o comando do furriel. Era necessário ir buscar um mecânico e trazer o material para a reparação. De mais a mais, se não aparecesse alguém no quartel, poderia dar origem a más interpretações.

Depois de breve serão na conversa com o soba e de ter acabado com as latas que tinham sobrado da ração de combate, passei a primeira noite numa cubata. O chão é de terra batida e no interior não há chuva nem vento. E para me iluminar, tenho a lanterna que providencialmente mandei comprar em Quimbele e que trouxe comigo. E se não a tivesse trazido, tínhamos os faróis da viatura danificada, que estacionámos junto à entrada. Utilizando uma esteira que o soba me emprestou, só sei que dormi muitíssimo bem. Mesmo que o chão fosse de pedra, todos dormiríamos na mesma. Havia mais de dezasseis horas que andávamos aos solavancos em cima das viaturas e tínhamos o corpo moído como se tivéssemos levado uma carga de pancada. A esteira pareceu um colchão de molas. Acordei na manhã seguinte com o barulho do pessoal e a algazarra dos miúdos da sanzala, que nos olhavam com curiosidade.

Apesar de sermos estranhos, a vida na sanzala decorre normalmente, como se há muito ali pertencêssemos. Uma vez mais lamentei não ter comigo uma boa máquina, para prolongar no tempo as imagens que os meus olhos encantados me forneciam. Eram imagens de um mundo diferente, subordinado a outras leis e costumes tão diversos dos que deixei na metrópole.

Previous Home Next