Furriel Rodrigues e R. I. 15 |
O almoço não esteve mau. Os nossos cozinheiros, auxiliados pelos miúdos nativos que aqui dão uma ajuda, em troca de uma recompensa pecuniária no final do mês, mas sobretudo porque sabem que aqui têm uma refeição decente, cozinham muitíssimo bem! Apesar de haver uma certa repetição nas ementas, a verdade é que a comida, talvez ajudada pelo
melhor condimento que é a fome, até se come muito bem e com agrado. O café que fazemos é que não é do melhor. Não pela qualidade do café. Estamos numa região de muito e bom café, mas falta-nos uma boa máquina. Numa próxima ida a Quimbele, quando receber o primeiro vencimento, compro uma máquina de café que dê para fazer as bicas depois do almoço e que dê também para levar na mochila durante as deslocações e
operações na mata. Como trouxe da metrópole uma lamparina a álcool pouco maior que uma lata de graxa das pequenas, que comprei numa casa de ferragens de Coimbra, será fácil fazer as nossas bicas mesmo no meio da mata, durante as operações. Como álcool não nos falta e anda sempre na mochila do enfermeiro em quantidade, não é um bocado deste combustível que nos irá fazer falta nas operações. E como a parte psicológica é talvez a nossa melhor defesa, irei pôr em prática esta medida. Só não me posso esquecer que a primeira prioridade terá de ser para a máquina fotográfica.
Vou parar com estes castelos no ar e retomar a escrita que deixei em suspenso a meio da manhã. Antes do almoço tínhamos voltado a folha; e é preciso não a deixar secar, não vá cair como a das árvores.
Parece-me que não é ainda hoje, ou pelo menos neste preciso momento, que vou retomar o relato dos acontecimentos a partir do dia 21. Quando estava a acabar o parágrafo anterior, veio ter comigo o furriel Rodrigues. Veio sentar-se ao pé de mim. Os colegas estão a jogar as cartas e ele quis aproveitar a minha companhia para, também ele, escrever para Lisboa. A propósito, ainda se lembram deste furriel? É certo que na altura ainda não era furriel...
Talvez já não se recordem, apesar de vo-lo ter apresentado no fim de semana em que estive de oficial de dia e resolveram vir ter comigo a Tomar. Será que já se recordam? Ainda não? Então não me resta senão o ter de vos dar mais uma ajuda. Lembram-se de vos ter dito que, no dia em que parti o pulso, foi ele que veio acudir-me e me levou ao hospital, não me tendo mais largado durante o resto do dia? Revelou-se então um bom elemento e tem-me dado provas, por mais de uma vez, de uma grande amizade. Creio que o melhor será, talvez, fazer uma pequena viagem no tempo. Deixemos por agora o Alto Zaza e recuemos até ao dia 10 de Agosto deste mesmo ano, uma quinta-feira azarenta, apesar de estar um dia radioso de sol e nem sequer ser sexta-feira treze.
Depois de dois dias de campo, em que andámos pelos arredores de Tomar a montar emboscadas uns aos outros, a manhã de quinta-feira estava a ser um dia calmo de instrução na parada do R.I. 15. Céu azul, temperatura amena, porque o sol ainda não estava a pique, tudo fazia pensar que seria um dia agradável e sem imprevistos.
Durante uma boa parte da manhã, estivemos a rever com os soldados as operações dos dois dias de campo e a avaliar o que fizéramos correcto ou errado. Por volta das dez e meia, efectuámos uma pequena pausa e o furriel Rodrigues lembrou-me que era preciso levar as guias a assinar, porque o fim de semana estava à porta e sem ela os soldados não podiam ir a casa. Aproveitei a sugestão e fui ao edifício onde estava a secretaria da companhia.
No passeio cimentado junto ao edifício, anda um soldado com uma vassoura e um balde a lavar o chão. O passeio está encharcado e coberto de espuma de sabão. Quando chego junto à porta da secretaria, procurando escolher um local menos encharcado onde poisar as botas, o tacão de borracha escorrega e caio, ficando sentado. Foi uma queda insignificante, que nunca deixaria adivinhar consequências funestas, quando muito umas gargalhadas pelo inesperado da situação, tanto mais que caí de rabo em cima de uma poça de água. O furriel apercebeu-se e desata a correr:
— Aspirante Ulisses, aleijou-se?
— Não! Foi uma queda insignificante. Caí devagar e fiquei sentado. Apenas me dói muito ligeiramente o pulso, porque bati com a mão no chão. Mas foi devagar. Não houve azar.
— Olhe que não! Foi uma pancada seca.
— Uma pancada molhada, quererá dizer, pois caí em cima da poça de água
— disse eu, procurando levar a situação para a brincadeira.
— Olhe que me parece que o pulso está a ficar inchado.
— Não, isto não é nada! É mais uma pancada a juntar às outras que tenho levado neste últimos tempos... e que sempre aguentei sem problemas, tirando a dor e o inchaço durante alguns dias.
— Não, aspirante Ulisses. Não me parece que seja de deixar passar. O melhor é eu ir buscar o mini e irmos ao hospital militar. Nunca se sabe!
Apesar da dor ser insignificante e o inchaço não me parecer digno de preocupação, não quis contrariar mais a boa vontade que o Rodrigues estava a revelar e acabei por aceder.
Chegado ao hospital militar, em breve o cabo Rodrigues tinha conseguido que os enfermeiros estivessem todos ocupados comigo. Uns minutos depois, chega um dos cabos enfermeiros com a radiografia:
— O meu aspirante fez muito bem em ter vindo ao hospital! Dizia que não era nada e a verdade é que o osso, junto ao pulso, apresenta uma fractura. Vai ter de ser engessado, para não ter problemas. Quinze dias ou um mês ninguém lho tira!
— Isto agora é que vem mesmo em má altura. Amanhã é fim de semana... E como é que vou levar o carro para Coimbra? Transtorna-me a vida... e à malta que vai comigo todos os fins de semana.
— Têm o comboio...
Foi uma surpresa para toda a gente quando, duas horas depois, entrei no R.I. 15 com o braço engessado. Durante o almoço na messe de oficiais, alguns camaradas gozavam comigo. Diziam que fizera de propósito para me livrar do trabalho. Apesar desta manga especial e nada leve, que alguns começaram a autografar, acabei por dar a instrução da parte da tarde, como se nada me tivesse acontecido. Todavia, notei que os cabos milicianos, especialmente o Rodrigues, procuravam dar-me o máximo de apoio, substituindo-me mesmo várias vezes com receio de que me magoasse.
À noite, depois do jantar, experimentei sair do quartel levando o carro. Embora com o braço ao peito, segurava o volante com a ponta dos dedos e, com a mão esquerda, metia as mudanças junto ao volante.
Na sexta-feira à tarde, à saída da porta de armas com o carro e com os camaradas habituais de fim-de-semana, verifico que o sargento de dia olha para mim com os olhos muito arregalados. Não esperava ver-me de braço ao peito e a conduzir com a mão esquerda. E a verdade é que, no tempo em que andei com o braço engessado, embora não participasse directamente nas várias operações de campo, acompanhei sempre os grupos e dei-lhes o apoio possível, levando comigo o carro.
Foi desde esta altura do acidente com o pulso que a amizade entre mim e o furriel Rodrigues se foi consolidando cada vez mais. Agora, aqui no Alto Zaza, embora nada tenha a dizer em relação aos outros
furriéis, verifico que há uma maior ligação entre mim e o Rodrigues, ao ponto de ele, muitas vezes, aproveitar os
tempos livres comigo para recordar os bons momentos vividos em Lisboa, tendo-me contado, frequentes vezes, as aventuras que teve com algumas miúdas.
Depois disto tudo, já devem ter ficado com uma melhor ideia de quem é o furriel Rodrigues. Mas se isto ainda não chegou para avivar a vossa memória, à falta de retrato para vos mandar, passo a dar-vos, em palavras, uma ideia do seu aspecto. Aproveitem bem a minha descrição e ponham a imaginação a funcionar, que talvez o consigam visualizar.
O furriel Rodrigues é o que se pode considerar um alfacinha de gema, indivíduo jovial, sempre bem disposto e habituado a lidar, desde muito cedo, com as miúdas, ou não fosse filho único e educado pela mamã solteira, dona de uma pensão, que lhe deu todos os mimos e dinheiro para a gasolina e vida lisboeta, a quem nunca terão faltado hóspedes femininos atraentes e por ele atraídos, se é que não foi o contrário. É que o Rodrigues, além de jovem e sempre com dinheiro na carteira, com carro desde os dezoito anos, é uma figura simpática. Está sempre bem disposto e com saídas prontas para todas as situações. E quando tem curvas apetitosas por perto, tem sempre palavras adequadas, capazes de fazer suspirar as mais ariscas. Fisicamente, é bem constituído, mas não gordo. Deverá ter uns dez ou quinze centímetros menos do que eu, o que significa que andará pelo metro e setenta de altura. Fora do serviço, anda sempre bem vestido e levemente perfumado. Nunca se sabe quando poderá surgir uma miúda jeitosa... E como ele não gosta nada de deixar o elemento feminino por mãos alheias, não quer correr o risco de lhes cair no desagrado. A juntar ao seu charme masculino, é bom conversador e, se preciso for, consegue animar uma reunião, bastando-lhe ter à mão uma viola. Apaixonado por toda a música moderna, toca e canta razoavelmente, especialmente as melodias dos Beatles, de quem é um fã e possui a colecção completa de discos.
Chega de falar do Rodrigues. É altura de voltar ao presente. Se me deixo arrastar pelas digressões, nunca mais acabo o relato dos acontecimentos da semana. A propósito, quem é que se queixava das digressões? Lembrei-me agora do Garrett e das suas célebres viagens. Creio que era ele que se lamentava, dizendo que as digressões eram a sua perdição. E parece-me que estou a padecer do mesmo mal. |
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