Uma questão de convenção: a parada

 
 

Logo pela manhã de segunda-feira, durante o momento de convívio do pequeno-almoço, aproveitei para pôr os furriéis a par das actividades previstas para este dia:

— Temos neste momento o plano de defesa elaborado e com todo o pessoal distribuído. Cada furriel está responsável pela segurança de um sector, de acordo com este plano. Em caso de ataque nocturno, cada um correrá para o abrigo de que é responsável, de acordo com esta planta.

Os furriéis observaram com atenção a planta do quartel e o mapa de distribuição do pessoal, para saberem com quem ficavam nos abrigos. Tiradas todas as dúvidas, continuei com a minha exposição:

— Importa agora que todo o pessoal tome conhecimento deste plano, para saber as funções que lhe competem em caso de perigo. De modo que o furriel de serviço, depois do pequeno-almoço, reúne toda a gente na parada.

— Em que parada, Alferes Ulisses? — perguntou o furriel Ramalho. Nós não estamos mais em Tomar ou Santa Margarida, nem tão pouco no Grafanil. Aqui é mato.

Em todos os locais existe uma parada. A parada é a zona em frente ao comando, a vasta zona asfaltada ou cimentada entre os edifícios das companhias. Aqui não temos nada disso, isto é, não temos é área cimentada, mas temos idêntica estrutura à dos quartéis tradicionais. Não temos um edifício de comando? Não temos duas casernas, uma de cada lado? E o que é que temos entre estes edifícios e o barracão do refeitório?

O alferes chama edifícios a estes barracões pré-fabricados? — aproveitou o Donato para dar um certo apoio ao outro furriel.

Claro que sim. Tudo aquilo que é construído, erguido pelo trabalho humano, é uma edificação. Estas construções rectangulares pré-fabricadas são edifícios. E queira Deus que possamos continuar sempre em edifícios como estes! Tomara muito gente dos bairros pobres da nossa terra dispor de casas pré-fabricadas como estas em que estamos. Bem divididas e com casa de banho, dariam uma óptima moradia numa zona de praia. Mas estamos a fugir ao que interessa. Entre os edifícios, temos um espaço óptimo para formar o pessoal. Além da sombra das árvores, fica protegido de olhares indiscretos. É um local amplo e agradável, que daria para construir, se tivéssemos cimento e material, um excelente campo para voleibol ou basquetebol e que poderia servir, simultaneamente, de local de formatura. E se não existisse este espaço excelente, tínhamos a área em frente ao nosso edifício. Formar o pessoal em frente ao comando não seria também má ideia: era só passarmos a porta e tínhamos logo todo o pessoal na frente. Mas está decidido: depois do pequeno-almoço, o furriel de serviço forma todo o pessoal na parada. Já sabem onde é a parada?

O espaço entre os três edifícios? — perguntaram em uníssono os furriéis.

Exactamente. E está estabelecida a convenção: a parada, no Alto Zaza, é a zona abrigada pelas árvores, entre os três edifícios. Mas não vos disse quais são as actividades para hoje. Deixem-me acabar o que tenho para dizer, para podermos tomar o pequeno-almoço em sossego.

Estou mesmo a ver quais vão ser as actividades! — diz o furriel Rodrigues.

> Como é que podem estar mesmo a ver, se ainda não me deixaram acabar?

Vai ser dar a conhecer o plano de defesa, que acabou de nos mostrar!

Não seria muito difícil de descobrir, Rodrigues. Mas não é só isso. Depois de dar a conhecer o plano a toda a gente, é necessário que cada um se inteire das condições do abrigo que lhe está destinado, que conheça bem com quem vai ficar e, para aumentar a segurança própria e de toda a gente, que melhore as condições do abrigo.

O resto do pequeno-almoço decorreu sem mais interrupções, condimentado apenas pelas conversas habituais em situações similares.

Por volta das oito e meia era chamado por um soldado:

Meu alferes, o furriel Rodrigues manda dizer que o pessoal já está formado na parada.

Obrigado! Diz ao furriel que dentro de dois minutos lá estarei.

Vesti-me convenientemente, pois em regra, devido ao calor, trazemos o vestuário reduzido ao mínimo. Coloquei a boina e dirigi-me à parada, onde todo o grupo me foi apresentado pelo furriel de serviço.

Armas pousadas no chão e com toda a gente à vontade, comecei a minha prelecção a todo o grupo:

Hoje é o nosso quarto dia de permanência neste destacamento em que estamos entregues a nós próprios. Somos, ao todo, quarenta e seis elementos, longe de casa, de familiares e de amigos. Temos na nossa frente dois anos de comissão. E estou certo, tenho a certeza absoluta que todos os que aqui se encontram vão querer regressar sãos e salvos a suas casas. Para que isto possa vir a acontecer, teremos de contar connosco e com a divina providência...

Quando cheguei a esta parte do discurso, vieram-me à lembrança as palavras que registei num dos aerogramas que vós aí, em Portugal, já devereis ter recebido. E como as frases escritas nesse aerograma estavam a bailar-me na mente, bem visíveis como se as houvera acabado de escrever, tratei de aproveitar a cábula mental, para valorizar o meu discurso.

... e como a providência divina só funciona plenamente se nós a ajudarmos, cumpre-me, tenho a obrigação de vos dar a conhecer o plano que elaborei para nossa segurança.

Abri a minha pasta de documentação e retirei o plano elaborado em papel quadriculado com todos os constituintes do grupo de combate. Indiquei primeiro os responsáveis por cada conjunto e, em seguida, os abrigos e procedimentos em caso de ataque, não só o que fazer, se o ataque ocorrer durante a noite e o pessoal estiver a dormir, mas também os cuidados a ter ao abandonar as casernas, ao correr para os abrigos e, depois, durante o decurso do ataque.

Agora, vão-me todos acompanhar para vermos os abrigos que terão de ocupar. Não é necessário ir em formatura. À medida que visitarmos cada abrigo, eu volto a repetir os nomes dos elementos responsáveis pela sua defesa. Esses elementos ficarão no local e tratarão de observar, com toda a atenção, as características e o grau de segurança. Aliás, durante a nossa passagem, verificaremos o estado em que se encontra. Depois, cada grupo trata de ir à arrecadação requisitar o material e procede aos melhoramentos que acharmos indispensáveis. Depois desta actividade, que irá ocupar-vos a manhã inteira, tenho a lembrar-vos que o ditado que diz que as armas não se limpam em tempo de guerra está totalmente certo. Por isso, aproveitem para efectuar uma verificação e limpeza da vossa canhota. Depois de mim e dos vossos colegas, é a vossa maior amiga. Uma G3 bem afinada é a nossa defesa em momentos de aperto. E quando digo uma G3, incluo também o restante armamento que vos está distribuído. Refiro-me aos especialistas responsáveis pelos morteiros, metralhadoras pesadas, lança-granadas, etc. Se alguém tiver alguma pergunta a fazer, podem-na pôr agora ou daqui a pouco, quando percorrermos os abrigos. Depois de mandar destroçar, têm dois minutos para ir guardar as armas: um minuto para ir e o outro para voltar. Vêm ter comigo aqui, para irmos ver os abrigos que vos estão distribuídos.

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