Manhγ na Mutamba




Tal como ontem, passei praticamente a manhã em Luanda, a tratar de problemas relacionados com a Companhia. Voltou-me a calhar o mesmo condutor do dia anterior, com quem me dei muitíssimo bem, e voltei a ter de andar toda a manhã a percorrer a cidade para tratar de problemas da Companhia. Como já na véspera efectuara percursos e tarefas idênticos, os meus camaradas sacudiram a água dos capotes com o argumento de que já conhecia melhor do que eles a cidade e que daria conta das incumbências com maior rapidez. Não opus resistência aos argumentos, tanto mais que a ideia de andar pela cidade, longe do ambiente do Grafanil, não me desagradava mesmo nada.

Já no centro da cidade, estou neste momento a reviver todos os factos como se tivesse recuado numa máquina do tempo. Estou agora precisamente na Praça de Luanda, mais conhecida por Mutamba. Se não tivesse reparado numa tabuleta afixada na parede de um edifício, nem chegaria a saber o seu nome oficial. Para toda a gente, o verdadeiro nome é Mutamba. Creio mesmo ter ouvido há pouco na rádio uma música qualquer de um cantor, cujo nome desconheço, em que, entre outros, se faz referência a este local. E já que aqui estou, vou pedir um pequeno favor ao meu condutor, enquanto não chega a hora de tratarmos da barriguinha.

— Zé Manel — assim se chama o condutor com quem tenho andado —, importa-se de parar por uns minutos na Mutamba? Necessito de ir àquele edifício ao lado da Fazenda Pública. É aquele ali, com um enorme reclame a uma companhia de seguros. Foi-me ontem dado um recado de um solicitador de Luanda para que o contactasse hoje, sem falta. E é precisamente aquele edifício que corresponde às referências que me foram dadas.

— Vou parar durante um bocado junto da paragem dos machimbombos, ao lado da escadaria de acesso à zona ajardinada, e espero pelo meu alferes.

— Junto de quê? — perguntei eu intrigado, sem perceber o que ele me queria dizer.

— Ali, na paragem dos autocarros. Os machimbombos são os autocarros. É assim que a malta de cá os chama.

Salto do jipão. Atravesso a praça em direcção do moderno e grande edifício. Reflicto um pouco acerca do novo vocábulo que acabo de aprender e registo alguns pormenores visuais sobre o edifício em frente: no telhado, dois enormes anúncios a duas marcas de cigarros angolanos, ostentando uma das embalagens as velas de um barco vogando sobre um fundo azul, por cima das quatro letras da marca, que evocará certamente a maravilhosa baía de Luanda; por baixo, um reclame circular a uma marca de produtos eléctricos, com letras vermelhas; e, em grandes letras, a toda a altura do edifício, os nomes de uma companhia de seguros e de uma firma que deverá ser do ramo automóvel.

Entro no edifício e procuro uma tabuleta com o nome do solicitador Rui Moreira. Como não encontro nenhuma e na entrada há várias pessoas, sou informado por uma delas do local do escritório. Subo as escadas até ao primeiro andar. Dou com a porta do escritório, bem identificada com uma placa com o nome da pessoa que procuro. Bato à porta e recebo um «Pode entrar», a que obedeço prontamente empurrando a porta.

Lá dentro, sentado a uma secretária, um indivíduo de cor, com ar simpático e bastante novo. Apresento-me. Cumprimento a pessoa que tenho na frente e que me convida para sentar. E tenho, pouco depois, explicada a razão do telefonema que recebera.

— Sou muito amigo do seu primo de Águeda. Foi no escritório dele que efectuei o meu estágio, quando acabei o curso de Direito, e desde então tenho-o na maior estima e consideração. Há dias, recebi dele uma carta dizendo-me que um primo fora mobilizado para Angola, integrado no Batalhão de Caçadores 4511, e que deveria embarcar para aqui no princípio desta semana. Telefonei para o Grafanil. O oficial de dia confirmou-me a vossa chegada. E, pelos vistos, não se esqueceram de lhe dar o meu recado.

A conversa prolonga-se por uns minutos. Pouco antes de terminada a breve entrevista, o meu interlocutor pergunta-me:

— Trouxe dinheiro suficiente para as despesas imprevistas durante a permanência em Luanda?

Respondo-lhe afirmativamente. Todavia, sem me dar qualquer hipótese de recusa, pega na carteira e retira duas notas de mil escudos que me entrega:

— Por precaução, empresto-lhe estes dois mil escudos. Pode ter alguma situação imprevista e precisar de dinheiro. Não aceito qualquer recusa. E antes de nos despedirmos, está desde já convidado para vir passar o fim da tarde comigo. Jantamos num restaurante da Ilha e passaremos uns momentos agradáveis de conversa. Vai-me dar muito prazer a sua companhia. Vai-me ajudar a recordar os bons momentos que passei em Portugal.

Despeço-me e saio. Olho para o relógio e acelero o passo. Sem dar por isso, tinha passado quase meia hora... e o infeliz do condutor lá fora pendurado, à minha espera!

— Desculpe lá o frete que lhe preguei. Quase meia hora aqui a secar!

— Não tem importância, meu alferes. Estive entretido a apreciar aquelas duas cabritas.

— O quê?!

— Aquelas duas cabritas que estão na paragem.

— Que cabritas? — pergunto intrigado. Não vejo lá cabritas nenhumas.

— Aquelas duas miúdas gostosas, alferes.

De facto, duas belas miúdas de cor, onde corria sangue de branco, destacavam-se na paragem do autocarro. O garrido dos tecidos e a justeza dos vestidos realçava ainda mais as formas esculturais daqueles dois belos corpos, que não necessitavam do bronzeado solar.

— Tens bom gosto! Aquelas harmoniosas formas são de facto uma boa ajuda para passar o tempo. E, por falar em tempo, já não temos tempo de tratar de mais nada. São horas de almoçar e as máquinas começam a precisar de combustível. Onde é que havemos de ir?

— O meu alferes, ontem, não almoçou bem? Eu aconselhava voltarmos ao mesmo local. É barato, come-se bem... e a mim facilita-me a vida. Não tenho de andar à procura de local para deixar a viatura. Fica mesmo debaixo de olho.

Lá voltámos ao restaurante no posto da Shell e, como ontem, comemos muitíssimo bem e por um preço acessível. Como o prato do dia era uma feijoada à maneira da metrópole, nem tivemos dificuldade na escolha.



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