Em pleno mato, mas ainda em Luanda

Alto Zaza, 22 de Novembro de 1972

Devem estar espantados por receber uma carta com a mesma data da anterior. Mas, se quiserem voltar a pegar nela, poderão verificar que termina abruptamente com a evocação do jantar e serão na companhia do Capitão S. C e esposa, não havendo aquela fórmula de despedida com que habitualmente se terminam as cartas. A ausência deste pormenor deve-se ao facto de que, quando menos se espera, o meu diálogo convosco é bruscamente interrompido por acontecimentos imprevistos. Os momentos de amena cavaqueira só podem verificar-se quando há disponibilidade e disposição. Fui imprevistamente interrompido e fechei os aerogramas, aproveitando o facto de ter dado por concluído o relato relativamente ao dia que evoquei. Por outro lado, tinha também a esperança de poder voltar a dispor de mais alguns momentos de descanso para reatar a conversa. A minha previsão saiu certa. Todas as tarefas estão cumpridas por hoje. Já todo o pessoal jantou. As sentinelas estão distribuídas no seus postos. Nas camaratas, os soldados ocupam o tempo da melhor maneira. Há-os que, neste momento, estão a fazer precisamente o mesmo que eu. As famílias, as namoradas ou as esposas, que ficaram na Metrópole, não são esquecidas e receberão em breve notícias daqueles que se encontram longe. Outros, menos dados a escritas, ou porque também já fizeram o mesmo, encontram-se na conversa uns com os outros. Há-os que ocupam o tempo a jogar às cartas ou a contar anedotas. E outros há também que dormem, enquanto não lhes chega a vez de irem render as sentinelas.

Aqui, no edifício rectangular onde tenho o quarto e o gabinete de trabalho, ao lado da sala onde fazemos as refeições e onde se encontram as camas dos furrieis, conversa-se, lê-se ou joga-se. Possivelmente, os furrieis encontram-se a ler ou a dormir, pois que, à excepção do sussurro do vento e das folhas das árvores, lá fora, quase não há barulho.

Neste momento, estou bem instalado na minha cama. Sobre os joelhos, tenho uma prancheta de madeira que me serve de secretária. E sob a luz viva e quase silenciosa do petromax, que ilumina as folhas amarelas deste aerograma, vou fazendo deslizar a esfera da minha caneta. De vez em quando interrompo a escrita e verifico se o químico continua a escrever bem, para que o meu duplicado da correspondência fique legível.

Feita a apresentação dos referentes situacionais que me envolvem, vou retomar o relato do aerograma anterior, que deixei em suspenso.

Vamos agora deixar que a imaginação nos recupere os factos passados e recuemos até ao dia 10 de Novembro, o último que passei em Luanda antes de arrancarmos cá para o norte de Angola. Procurarei ser breve no registo destes elementos, eliminando muitos dos eventuais diálogos que a minha memória me irá seguramente restituir, apesar do lapso de tempo já decorrido. Se não o fizer, arrisco-me a nunca mais pôr em dia a correspondência. E será da maior vantagem começar a relatar-vos as ocorrências na zona onde agora me encontro, quase em cima dos acontecimentos, sem ter de fazer grandes esforços de memória para reconstituir casos há muito passados.