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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

VIII

SISTEMAS DE DECANTAÇÃO

 

B) VISITA AO LAGAR DE SOUSELAS

Foi em Agosto de 1969 que iniciámos o trabalho de campo, após alguns meses de pesquisa bibliográfica e de leitura, para aquisição dos primeiros conhecimentos no campo oleícola e elaboração de um inquérito por correspondência. E a primeira localidade visitada foi Souselas, a onze quilómetros ao norte da cidade de Coimbra. Servida por comboio e estrada, ocupa uma zona bastante indus­trial. A toda a volta da povoação, além de aglomerados fabris, estendem-se campos sobre campos, onde a oliveira ocupa um lugar de destaque. Aqui e além, apenas uma ou outra figueira, encostada à linfa vivificante de algum riacho ainda sem vestígios de poluição, estende para o céu a sua verde copa, onde despontam alguns frutos ainda verdes.

Desta primeira visita nasceu um longo manuscrito. Foram registadas as impressões de um primeiro contacto com a sabedo­ria popular e a visita a um extinto lagar oleícola, que permitiu uma viagem ao tempo em que ainda laborava, graças às minuciosas informações prestadas pelo dono. Destinado a sair como artigo de um jornal, sob o título Por terras de Portugal, acabou esse manuscrito por ficar arquivado, juntamente com o elevado número de inquéritos posteriormente realizados em toda a metade norte de Portugal.

Agora, volvidos largos anos e já noutro século, vamo-nos socorrer de alguns excertos desse longo texto. Após alguns breves aspectos relacionados com o extinto lagar de Souselas, iremos ver, na companhia do Senhor Evaristo Pacheco Rodrigues, como se efectuava o sangrar das tarefas.

A casa do informador foi-nos indicada por um rapaz novo, quando pedimos a uma velhota, que, à porta de casa, espiava cheia de curiosidade o estranho que por ali andava:

– Ó Manel, Manel... chega cá. Está aqui um senhor da cidade que quer saber uma coisa.

E surgiu o tal rapaz, que nos indicou a casa do dono do lagar:

– O senhor vê aquela fonte lá em baixo? Em frente, mora o senhor Evaristo Pacheco, que lhe poderá mostrar o lagar.

De facto, poucos minutos depois, lá íamos com o Senhor Evaristo a caminho do objectivo. As chaves a tilintar, penduradas numa ampla argola metálica, pareciam querer acompanhar a nossa conversa, ajudando a quebrar o fosso natural entre desconhecidos e convidando-nos a uma certa familiaridade.

O lagar ficava fora da povoação, dela distante uns quinhentos metros, no lugar do Pereiro. Construído há mais de cento e cinquenta anos, ficava em pleno campo. Um enorme portão dava para a estrada. À nossa direita, um riacho cortava o silêncio quente daquela manhã de Agosto, fazendo-nos adivinhar que seria ele a força motora de tão antigo engenho oleícola.

Rodada com ruído metálico a grossa chave numa porta lateral e desalojado um elevado número de aranhas, entrámos na penumbra do local. Dirigimo-nos para o largo portão de acesso. Retirámos as pesadas trancas de ferro e abrimos as duas portas, deixando que a luz de uma luminosa manhã rompesse as trevas de mais de dois anos. E foi com uma certa emoção e curiosidade que pudemos admirar, pela primeira vez, com os nossos próprios olhos, um dos muitos locais onde, outrora, os nossos antepassa­dos extraiam o azeite por processos tradicionais.

As explicações que o Senhor Evaristo nos forneceu não podiam ser mais minuciosas e precisas. Dir-se-ia que estava a reviver os bons tempos em que o lagar estava no apogeu da sua laboração. Em breve, tinha-nos contagiado. E de tal modo que, sem darmos por isso, estávamos também a reviver o bulício de uma actividade passada, há muitos anos extinta.

Já não estamos no Verão. Lá fora é noite cerrada. E apesar do frio de um Dezembro chuvoso, reina uma animação fora do vulgar naquele lagar. Uns tantos jovens doutores de Coimbra resolveram fazer uma lagarada, aproveitando o convite de um colega de Souselas. A algazarra é muita: um misto de conversas entrecruzadas e de gargalhadas sonoras. Enquanto a bacalhoada não está pronta, alguns jovens entretêm-se a torrar enormes fatias de pão na fornalha da caldeira, que mergulham em seguida no azeite tépido das tarefas para, pouco depois, devorarem tudo com visíveis sinais de prazer.

Mas vamos deixar esta juventude irrequieta divertir-se e aproximemo-nos do mestre e do moço, que estão envolvidos num operação delicada e de grande responsabilidade.

Junto de uma tarefa de barro, de onde se eleva um leve vapor e um cheiro a azeite novo, o mestre dá uma ordem ao moço:

Vamos ver a altura.

Com um movimento pendular, o mestre começa a cortar o azeite com o auxílio de uma fina vareta de marmeleiro.  Mexendo-a suavemente de um lado para o outro, vai-a baixando lentamente. Enquanto o líquido é só azeite, a vara desliza docemente sem qualquer atrito. Aquele deslizar suave é repentinamente quebrado. Quando chega ao nível da água, a maior densidade opõe uma ligeira resistência ao avanço da vareta, indicando ao mestre a altura a que se encontra a zona de separação dos dois líquidos: água e azeite. É o momento de começar. O mestre dá a ordem ao moço para que empurre o torniquete ou espicha da tarefa. E a água-ruça começa a correr lentamente, ao mesmo tempo que a superfície lisa e dourada do azeite vai baixando.

Tapa. – diz subitamente o mestre, ao mesmo tempo que toca nas costas do moço. Acabara de tocar com a ponta da vara no colo da tarefa, pelo que o moço prontamente largou a espicha. Sob o efeito da pressão dos líquidos, esta obstrui o orifício da tarefa, impedindo a saída da água.

Acabáramos de assistir à operação de sangrar a tarefa que, segundo o Senhor Evaristo, é anterior ao caldeamento ou escaldar do azeite e nada tem que ver com o caldeamento ou escaldar das seiras. Enquanto o caldeamento das seiras se destina a permitir uma maior fluidez da massa e melhor libertação do azeite durante as prensagens, agora procura-se facilitar, também por meio do calor da água a ferver, a purificação do azeite.

E novamente, graças às palavras do nosso informa­dor, começamos a assistir e a registar esta nova actividade da responsabilidade do mestre, que, de regador na mão, devidamente munido de um crivo, distribui uniformemente por toda a tarefa água a ferver. Quando vê que a quantidade de água é suficiente, mistura tudo muito bem com a varinha. E assistimos a uma operação bizarra. Num silêncio quase religioso, o mestre do lagar descobre-se. Todos os presentes imitam o seu gesto, pelo menos aqueles que têm a cabeça coberta. Os outros mantêm-se atentos à cerimó­nia. Em seguida, com um gesto solene, o mestre traça uma cruz no azeite e tapa a tarefa com uma grande tampa circular de madeira. E todos voltam a cobrir-se. Está quebrado o silêncio e recomeçam as conversas.

Ao fim de doze horas de repouso, ainda segundo o Senhor Evaristo, o azeite está separado e pronto a ser despejado nas vasilhas, para ser levado para casa do dono.

Deixamos aqui a evocação resultante de uma visita a um lagar. Foi o primeiro em que entrámos com olhos de observador e onde a força da imaginação, auxiliada pelas palavras do informa­dor, nos permitiu ver tudo em funcionamento, apesar de há muito ter deixado de laborar. Só meses depois, no pino do inverno, pudemos assistir a todas as actividades dos lagares tradicionais, que tivemos ainda a sorte de poder visitar em laboração em diversas povoações do norte de Portugal e que hoje já não existem.

 

 

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