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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

III

O moinho

 

MOINHOS DE RODA

Antes de iniciarmos o estudo deste tipo, importa ver o que se entende por moinho de roda.

 

 
  Figura 20: Roda da água feita de madeira (Ameoso do Senhor, P. 300, Alvares, Góis, dist. de Coimbra.  

Quando tratámos dos diversos nomes do lagar, foi feita uma transcrição de Frei Domingos Vieira(4), que convém relembrar. Segundo este Autor, a azenha é uma «espécie de moinho movido por uma corrente de água, que lhe cai perpendicularmente sobre a roda». E acrescenta, um pouco mais adiante: «...a azenha é como o moinho, movida por água, com a diferença que aquela mói com roda, e este com rodízio; na azenha a roda está fora da água que lhe cai em cima [o sublinhado é nosso]; o moinho é nas margens do rio e a azenha anda com qualquer riacho

O Autor estabelece entre azenha e moinho uma distinção que reside no facto de a primeira ser movida por uma roda, enquanto o segundo é accionado por meio de um rodízio. No campo olivícola, o chamado moinho de roda condiz com a definição dada para azenha. Somente não nos é possível empregar o termo azenha, em virtude de ele se aplicar também aos lagares puxados por animais. Pelo contrário, a expressão moinho de roda, além de não apresentar sentidos variáveis, permite-nos caracterizar desde logo este tipo de moinho.

A definição que dele podemos dar é a de que se trata de um moinho cuja força motriz é produzida pela água que, caindo perpendicularmente sobre uma roda vertical,  a faz girar,  accionando todo o conjunto. Compõe-se essencialmente de uma roda hidráulica de ferro ou de madeira, situada dentro ou fora do lagar, de um sistema de transmissão, que faz andar a galga ou galgas dentro do moinho propriamente dito, e de um sistema de conduta para a água, sem a qual o lagar não poderia trabalhar.

Feita a apresentação deste tipo de moinho, analisemos pormenorizadamente cada uma das partes que o compõem.

 

 
  Figura 21: Tipo de roda da água encontrado no lagar da Mata, P. 297, Vila Nova do Ceira, Góis, dist. de Coimbra.  

a) - RODA: O nome dado à roda que acciona todo o conjunto varia de região para região. O povo conhece-a frequentemente pelas expressões roda da água (Braga, P. 34; Bragança, P. 100; Guarda, P. 226), roda hidráulica (Viseu, P. 188), roda de fora (Braga, P. 28; Coimbra, P. 253, 300, 302, 304), roda exterior (Castelo Branco, P. 305), roda de balanço (Coimbra. P. 255), roda de peso (Guarda, P. 206, 207) ou, simplesmente, roda (Aveiro, P. 120; Coimbra, P. 258, 294).

Como se vê, encontramos nada mais do que sete expressões diferentes para o mesmo objecto, na metade norte do País.

Roda da água e roda hidráulica são, no fundo, a mesma expressão, com a única diferença de que a primeira é mais do domínio popular, enquanto a segunda é estritamente técnica. A sua explicação reside, logicamente, no facto de ser a água que faz mover a roda.

Roda de fora e roda exterior são também duas expressões idênticas entre si. O que se disse em relação às duas anteriores aplica-se também a estas. A sua origem está relacionada com a situação da roda, normalmente no exterior do lagar.

Roda de balanço e roda de peso parecem ter uma explicação comum; pelo menos em relação à segunda, a sua origem reside no facto de a roda trabalhar devido ao peso que a água exerce dentro dos cubos. Segundo as informações prestadas por um informador, no lagar da Quinta da Romeira, P. 206, no distrito da Guarda, o movimento da roda de peso pode ser prejudicado pela excessiva abundância de água:

«(...) quando a água da corrente era maior, que lhe dava, por exemplo, pelo meio dos raios, a roda diminuía de velocidade, e então chamávamos nós pejar. (...) Pejar era diminuir de velocidade. Quer dizer que a enchente estava a crescer e, nessa altura, a velocidade diminuía, porque a queda da água, o caudal da água impatava (sic) o funcionamento da roda hidráulica...». É interessante notar que este mesmo informador emprega simultaneamente as expressões roda de peso e roda hidráulica, tendo mesmo a noção de que a primeira é que é a popular. Ouçamos um pequeno fragmento da conversa travada com ele:

«– Como é que este lagar era accionado?

– Com queda d'água.

– Era conhecida assim?

– Chamam-lhe roda de peso.

– Mas porquê?

– Talvez um nome poveiro, com certeza. Pá hidráulica é qu'é o termo próprio. Nós é que dizemos a roda de peso. E por vezes pejava...».

Construída de madeira ou ferro, as suas dimensões variam muito, quer quanto ao diâmetro, quer quanto à largura. O máximo de largura que encontrámos foi de cerca de oitenta centímetros, no lagar de Vila Cortez da Serra, P. 226, no distrito da Guarda. Feita de madeira, ficava no interior do lagar, sendo a água trazida por meio de uma conduta, que a ia buscar a um açude do ribeiro.

Quando situadas no exterior do lagar, as rodas de madeira apresentam normalmente uma pequena cobertura, que as protege do sol e da chuva, à semelhança do documentado na figura 20. À primeira vista, parece ser isto um absurdo; tem, no entanto, uma certa razão de ser. Como todos sabem, o lagar funciona apenas cerca de dois a três meses por ano. Só na altura da laboração ou lagaragem as comportas são abertas, caindo-lhe então a água nos cubos. Sem funcionar a maior parte do tempo, o sol, secando-lhe demasiado a madeira, faria com que ela estalasse e se fendesse. Em dias de chuva, a água, acumulando-se nos cubos, faria trabalhar inutilmente e com prejuízo a roda. Daí o serem frequentemente cobertas.

 

 
  Figura 22: Tipo de roda da água de um lagar do distrito de Coimbra, P. 303.  

As rodas de ferro apresentam substancial vantagem em relação às de madeira, pois resistem melhor à acção erosiva do tempo. Por este motivo são cada vez mais frequentes, em detrimento das de madeira, hoje raras e com tendência a desaparecerem completamente.

De uma maneira geral, as rodas compõem-se de um eixo, apoiado sobre mancais (Braga, P. 28) de bronze, ferro ou madeira, de quatro ou mais pares de raios, e de umas concavidades chamadas copos (Aveiro, P. 120, 159; Braga, P. 28) ou cubos (Coimbra, P. 300; Guarda, P. 207). A água que, caindo nos cubos, faz accionar a roda, é trazida normalmente de um açude por meio de uma conduta própria, designada pelos termos caleira ou caleiro (Braga, P. 28, e Coimbra, P. 300, respectivamente), badarel i (Coimbra, P. 261) e levada (Castelo Branco, P. 305; Coimbra, P. 303).

A roda de madeira documentada na figura 20 é composta por um eixo de secção quadrangular, de quatro pares de raios paralelos, que seguram o bordo exterior, e de vários cubos, formados por pequenas tábuas dispostas obliquamente em relação aos raios da roda, e fixas aos lados do bordo. A água desce por uma caleira fixa de madeira, cujo caudal incide perpendicularmente sobre os cubos.

No caso do extinto lagar das Três Aldeias, P. 303, representado nas figuras 2 e 22, a água era trazida de grande distância por meio de uma conduta de cimento, de secção em U, apoiada sobre um pilar feito de tijolos. A inclinação e distância do cimo à extremidade inferior eram consideráveis, a fim de imprimirem ao pequeníssimo caudal de água velocidade suficiente para fazer girar a roda. Em contrapartida, o sistema usado no lagar da Mata, P. 297, representado nas figuras 21 e 23, é completamen­te diferente. A água é trazida por uma conduta terminada por uma caleira móvel de madeira e apoiada numa prancha, sobre a qual desliza. Como a inclinação não é nenhuma e a altura dela à roda é praticamente quase nula, necessita de um elevado caudal de água para ter a força necessária para fazer girar a roda. Disso é bastante elucidativa a figura 23, que nos mostra a roda em pleno funcionamento. Na margem direita, um dos empregados do lagar lubrifica o eixo, operação que tem de repetir de tempos a tempos.

Os sistemas usados para fazer trabalhar ou parar os moinhos são bastante engenhosos. O povo resolveu este problema técnico de maneira bastante simples, adoptando um rudimentar sistema de alavancas, ou uma pequena vara móvel presa à caleira, que pode manobrar do interior do lagar. De uma maneira geral, podemos encontrar dois sistemas.

 

 
  Figura 23: Aspecto da roda da água em pleno trabalho. Um moço do lagar lubrifica o veio de ferro com uma almotolia de folha de flandres. Sobre uma prancha de madeira perpendicular à roda, a caleira do mesmo material que do interior é empurrada para o lado, desviando o caudal e parando a roda. (Mata, P. 297, Vila Nova do Ceira, Góis, dist. de Coimbra)  

O primeiro sistema, documentado pelas figuras 21 e 23, é formado pela própria caleira. Fixa no ponto A (ver figura 21) e apoiada, na extremidade, em uma prancha de madeira, sobre a qual desliza, está presa a duas tábuas oblíquas, firmes por uma terceira, horizontal, e móveis entre si. A uma delas, está presa uma vara que atravessa a parede do lagar e termina numa espécie de argola. Quando querem parar o moinho, empurram a vara, obrigando a caleira a deslizar para o lado de fora; e a água passa a cair ao lado da roda, sobre as pedras que se vêem na gravura.

O segundo sistema, que as figuras 20 e 22 documentam, consiste numa caleira suplementar móvel que, accionada por uma alavanca – o chama­do pejadoiro (P. 300) –, se vai interpor entre a saída da conduta e a roda, desviando a água para o lado.

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(4) – FREI DOMINGOS VIEIRA, op. cit., pág. 632.

 

 

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