Sobre a qualidade da água na Ria de Aveiro


Aristides Hall - In: "BOLETIM DA ADERAV"", N.º 3 e 4, 1980 e 1981, pp. 17-21 e 12 -14

 

 

 

1 - A RIA DE AVEIRO COMO ESTUÁRIO

Do ponto de vista topográfico, a Ria de Aveiro é aquilo a que habitualmente se chama um estuário de barra. Como tal, é caracterizado pela existência de uma restinga arenosa, estrei­ta, comprida e baixa, que separa o mar de uma laguna interior. A boca do estuário que, como é típico, historicamente se deslocou de sitio ao longo da restinga, teve que ser artificialmente fixada e é, em alguma medida, artificialmente mantida através de dragagens.

Dada a intrínseca instabilidade da faixa costeira, é possível  abrirem-se,  em qualquer altura, novas bocas para o mar, o que começou a acontecer nos últimos invernos a sul da Costa Nova. As obras que ai estão em curso eliminaram, aparente­mente, o perigo imediato de ruptura, mas há razões para duvidar da sua estabilidade a longo prazo. Situação paralela se tem observado na Torreira e na região de Esmoriz, onde as autori­dades locais reclamam obras urgentes de  estabilização da costa.  

No lado interior da restinga espraia-se uma laguna, que também tipicamente tem fundos pequenos e correntes, que são fortes na boca do estuário e que genericamente são fracos em todo o resto da laguna. Nesta desaguam vários cursos de água, que drenam a vertente ociden­tal da zona montanhosa que se estende  desde  a  região de Arouca ao Bussaco e a extensa plataforma litoral, que vai de Ovar até à Tocha. Uma representação esquemática da região da Ria de Aveiro é apresentada na Figura.

Representação esquemática da região da Ria de Aveiro.

 

Sendo o Vouga o único rio com caudais de inverno apreciáveis, só ele afecta significativa­mente a topografia do fundo. Na Foz de todos os outros rios e na restante área da laguna afas­tada da boca para o mar, o fenómeno de sedimentação parece dominar o de arrastamento me­cânico. Na região da boca do estuário, onde as correntes de maré são muito fortes, a topo­grafia do fundo é determinada pela grandeza e direcção des­sas correntes, pela cunha da maré e pelas características do mar na região costeira. Havendo aqui um transporte sólido im­portante no sentido norte-sul, esse fenómeno tem tido efeitos notáveis na topografia da boca do estuário, mesmo após as obras de engenharia civil que a fixaram artificialmente, criando dificuldades de navegação às embarcações que demandam o porto de Aveiro. Essas dificul­dades aumentam quando ocor­rem certas condições de mar, que fomentam o assoreamento nas vizinhanças do canal de en­trada. O transporte sólido ao longo da costa, associado ao pequeno declive do fundo do mar nesta região, dá origem à formação de um banco de areia, longo e estreito, no prolonga­mento do molhe norte, consti­tuindo um obstáculo adicional ao bom funcionamento do porto (Fig. 21). Estes exemplos dão substância à  afirmação feita acima de que a restinga de um estuário de barra é instável e que qualquer acção humana que interfira com a sua formação natural é susceptível de causar alterações topográficas relativa­mente profundas e frequente­mente imprevisíveis.

Esquema topográfico da boca do estuário da Barra de Aveiro.

A Ria de Aveiro, como qual­quer estuário, é uma região onde ocorrem variações muito acen­tuadas nos valores de alguns parâmetros de  qualidade da água e onde têm lugar fenómenos físico-químicos de grande importância, os quais ocorrem na coluna liquida, nos sedimen­tos e ainda na superfície de con­tacto desses dois meios. Entre os parâmetros sujeitos a maio­res gradientes ao longo do es­tuário encontram-se a salini­dade, o pH, o potencial redox, e as concentrações de nutrientes, de matéria orgânica e de ele­mentos vestigiais.

Relevância especial têm as variações de salinidade que, por sua vez, traduzem alterações profundas na composição química do meio liquido. Essas alterações resultam de serem muito diferentes as proporções relativas dos elementos na água do mar e na água dos rios e de o processo de mistura ser em geral  muito  complexo. Essa complexidade, de resto, está na base de uma classificação de estuários baseada na sua estrutura salina, segundo a qual a Ria de Aveiro talvez possa ser con­siderada um estuário parcial­mente misturado com fluxos de maré muito grandes em com­paração com o caudal dos rios. E diz-se talvez, porque a magreza e o rigor dos dados expe­rimentais existentes não permi­tem ainda fazer uma apreciação mais realista. Basta dizer que nenhum dos rios afluentes tem os seus caudais permanente­mente medidos e que o campo das correntes só foi parcial­mente medido no início da década de 50.

Duas consequências impor­tantes estão associadas à variação de salinidade que ocorre no estuário. Uma é a profunda alte­ração que sofre a força iónica; a outra é a formação de solu­ções sobressaturadas relativa­mente a alguns compostos. As alterações de força iónica estão na base de um conjunto extenso de fenómenos típicos de estuá­rios: são coloides que floculam e se depositam; são complexos que se destroem e que dão ori­gem a outros complexos ou a precipitados ou ainda que liber­tam os elementos que contêm, os quais podem vir a ser fixados pela biota ou pelas superfícies inertes; são precipitados, quer em suspensão quer depositados no fundo, que se dissolvem; são gradientes de concentração que se criam na água intersticial dos sedimentos dando origem a trocas de massa na interface fundo-coluna líquida; são trocas iónicas que ocorrem à superfície das partículas, ocupando ou li­bertando centros activos dos quais se libertam ou aos quais se ligam elementos essenciais ou biocidas; são moléculas orgâ­nicas complexas, que floculam e, finalmente, se depositam, en­riquecendo os sedimentos na sua fracção volátil e conferindo­-lhe condições favoráveis ao aumento da mobilidade de cer­tos componentes, nomeada­mente de iões metálicos pesa­dos; enfim,  poder-se-ia dar muitos outros exemplos.

A formação de soluções so­bressaturadas é particularmente importante com os hidróxidos de ferro e de magnésio. Estes sais, dada a sua natureza floculenta e a sua elevada tensão superfi­cial, absorvem da solução quan­tidades apreciáveis de outros elementos, especialmente  os mais pesados, e de compostos, especialmente os mais comple­xos,  que, desta forma, são arrastados para o fundo. Por outro lado, uma pequena altera­ção do pH e ou da força iónica, pode de novo solubilizar esses precipitados e lançar na coluna líquida os componentes que dela haviam sido removidos.

Já se disse que nos estuá­rios ocorrem grandes flutuações de pH, salinidade e potencial redox. Essas flutuações são induzidas, entre outros factores como vento, topografia e tem­peratura, pelos movimentos das marés e pelos regimes de des­carga dos rios. Elas são pois movimentos periódicos a várias coordenadas, onde aparecem traduzidas a hora do dia, o dia do mês e a estação do ano. E como essas flutuações afectam o grau de mistura e a força iónica das águas dos estuários, é fácil entender que nelas haja, como  efectivamente  há,  um grande dinamismo, o qual se tra­duz não só pela variação no tempo da predominância de cada fenómeno, mas também pela va­riação geográfica do local onde ele ocorre. Daí que em estuá­rios com grande tempo de resi­dência, como é o caso da Ria de Aveiro, haja uma permanente alteração da topografia dos fundos e das margens, alteração essa que pode ser exageradamente hipertrofiada se interven­ções antropogénicas tiverem por efeito, como tantas vezes têm, desequilibrar o ritmo natural de evolução do estuário. Por exem­plo: a implantação dos pilares de uma ponte pode desviar uma corrente de tal forma que ela passe a atacar uma margem.

Têm-se vindo a referir até aqui aspectos relativos ao am­biente abiótico de estuários. E começou-se por eles para pôr em evidência a importância que os factores físicos, químicos e geoquímicos têm na biologia. Parece ser claro do que ficou dito que os estuários são meios bastante desfavoráveis à vida, havendo apenas um número limi­tado de espécies capazes de suportar os rigores desses am­bientes. Apesar disso, os estuá­rios são partes muito importan­tes do ecossistema costeiro, de­sempenhando papel de relevo em certas fases da vida de espécies de grande valor comer­cial. E se é certo que o número de espécies é limitado, o mesmo se não passa com o número de indivíduos de cada espécie, que pode ser muito significativo. Os estuários são, por isso, a sede de pescarias muitas vezes prósperas e têm condições muito favoráveis para a prática de aquacultura. Mas sendo os es­tuários ecossistemas sujeitos a intenso uso económico, esse uso põe muitas vezes em perigo a saúde da biota e a produtivi­dade  biológica. Na Ria de Aveiro, essa competição entre os interesses biológicos e os interesses económicos começa a dar sinais de rotura. Tratar-se-ão, mais adiante, dois aspectos dessa competição. São eles biota contra efluentes domésticos e biota contra efluentes in­dustriais.

Entretanto, não gostaria de deixar de fazer uma referência breve às trocas de massa que têm lugar na superfície da laguna. Além das trocas gasosas que estão na mente de todos (O2 CO2), a superfície das águas naturais recebe directamente da atmosfera, seja na chuva, seja nas poeiras, quantidades apre­ciáveis de resíduos de toda a espécie, tanto naturais como sintéticos. Metais, pesticidas, hidrocarbonetos, todos eles entram na água directamente da atmosfera. Mas se é verdade que, em áreas grandes, as massas entradas por essa via podem ser muito importantes, (no Mar do Norte, por exemplo, os metais poluentes entrados da atmosfera excedem a contribuição do rio Reno), em áreas pe­quenas como a Ria de Aveiro julga-se que essa contribuição é des­tituída de significado, tanto mais que os ventos dominantes são de proveniência oceânica.

 

2 -IMPACTO DOS EFLUENTES URBANOS SOBRE A RIA DE AVEIRO

Desde sempre que as popu­lações ribeirinhas lançaram os seus efluentes nas massas de água que lhes passavam ou es­tavam à porta. E enquanto a população se manteve em níveis manejáveis, os ecossistemas fo­ram sendo capazes de absorver as cargas que sobre eles eram lançadas, não havendo conse­quências  nefastas  aparentes para a biota. Houve, sim, conse­quências desastrosas para a hu­manidade, em resultado da pro­pagação de doenças contagiosas transmitidas com intervenção da água, ou seja, usando uma terminologia hoje muito vulgarizada, havia poluição microbiológica, mas não havia poluição bio­lógica  nem  química.  Mas a partir dos princípios da revolução industrial, a situação mu­dou radicalmente para pior, porque a acumulação de milhares de pessoas em áreas muito pe­quenas veio originar caudais e cargas de poluentes que exce­diam a capacidade de assimilação dos ecossistemas.

A característica dominante dum efluente doméstico ou urbano é a presença de cen­tenas de mg/I de matérias que são biologicamente degradáveis, sendo transformadas principal­mente em HO2, CO2 e biomassa dos microorganismos depuradores. Para que essa transforma­ção se processe normalmente, é necessário haver oxigénio dis­solvido na água em quantidade suficiente. Se isso acontece, os microorganismos reproduzem­-se, eliminam a matéria dissol­vida no efluente, morrem, depo­sitam-se no fundo, juntando-se lá às outras partículas sedimen­táveis lançadas directamente na água, e aí se inicia a sua de­composição. Nos estuários, como o oxigénio disponível nos sedimentos é geralmente muito pouco, essa decomposição dá-se em condições anaeróbias com produção de gases que são tóxicos e têm maus cheiros e com a formação  sedimen­tos pretos esteticamente inde­sejáveis. Estes efeitos, contudo, só se notam quando os sedi­mentos ficam a descoberto. Mas quando a quantidade de oxigénio dissolvido na água é insu­ficiente pare promover a bioxidação da matéria orgânica dis­solvida no efluente, a situação piora consideravelmente. Nesse caso, a decomposição é feita anaerobicamente na própria massa líquida, resultando daí um acréscimo significativo na pro­dução de gases de odor objectável,  a destruição do valor estético da água, que passa a ter um aspecto repelente, e a produção de maiores quantida­des de sedimentos orgânicos, que resultam também da floculação de macromoléculas e não apenas da precipitação de mi­croorganismos.  Esta  situação torna-se caótica quando a água receptora tem pequeno volume e uma circulação reduzida como é típico nos canais dos estuá­rios do tipo barra. Pois é exacta­mente essa a situação que pre­sentemente existe em Aveiro.

A cidade é servida por uma rede de esgotos, na sua maior parte antiga, que escoa directa­mente para o Canal das Pirâmi­des e para o Canal de S. Roque[i]. O primeiro, que recebe a maior parte do efluente, renova a sua água apenas pela acção das ma­rés; o segundo recebe uma certa contribuição de água que vem dos esteiros do Grupo do Norte. Em consequência desta situação, os canais têm uma camada de sedimentos orgânicos com metros de espessura, que ficam a descoberto na maré-baixa. Nesse altura, os canais são autênticos esgotos a céu aberto. Mesmo na maré-cheia, a água permanece desoxigenada a profundidades superiores a 20 cm, pelo que as fermentações  anaeróbias  são permanentes.

Cerca de 20% da população é servida por uma rede de esgo­tos de construção mais recente, que drena para uma estação de tratamento por leitos percloradores. A estação, cuja construção foi iniciada há cerca de 20 anos e só recentemente foi posta a funcionar, tem erros de concepção e foi mal dimensio­nada para tratar, como se pre­tende, todo o efluente da ci­dade. Presentemente, não dispõe de um clarificador secundário, despejando toda a biomassa libertada dos leitos percloradores no esteiro de S. Tiago, que desagua na Lagoa do Paraíso. Esta lagoa, que é uma excelente massa de água com um potencial estético, recreativo e para a aquacultura muito elevado e que presentemente ainda tem em parte um fundo arenoso, está ­pois em risco de se tornar, a curto prazo, noutro lamaçal co­berto de águas eutrofizadas.

Mas  os  problemas  dos efluentes urbanos não se ci­rcunscrevem a Aveiro e aos seus canais. Uma população de perto de 200 mil habitantes reside nos 8 concelhos que bordejam a Ria. Os seus efluentes, directa ou indirectamente, acabam por entregar à Ria a quase totalidade do nitrogénio excretado e ainda uma fracção do aplicado na agri­cultura. E como os sedimentos devem conter quantidades apre­ciáveis de fósforo, está-se em presença de condições favoráveis à eutrofização da Ria, eutro­fização que já é evidente por todo o lado, salvo nos canais de correntes mais fortes. Na ver­dade, não só é a turbidez ele­vada, mas principalmente é es­pesso e quase contínuo o manto de macrófitos fixos e flutuan­tes. Esse manto torna já impra­ticável a navegação em grande número de canais.  Está em curso a execução de um pro­jecto de investigação que visa quantificar a produção dos macrófitos.  No  entanto,  parece evidente que, pelo menos em largas áreas da Ria, o seu ritmo de crescimento é tal que não será economicamente possível controlá-lo usando meios mecâ­nicos de apanha, manuais ou não. Parece estar-se na presença de uma situação onde só uma alteração físico-química do ecos­sistema poderá ser eficiente. Um vasto campo está aí aberto ao engenho dos investigadores portugueses.

De todos os efluentes urba­nos produzidos na região ribei­rinha da Ria só recebem trata­mento os correspondentes a 11 000 pessoas de Ovar e a 7 500 de Aveiro e esse tratamento é pouco eficiente. A curto prazo, espera-se ampliar esse trata­mento às populações de Estarreja e Vagos e à totalidade da de Aveiro. No entanto, como nenhuma das estações existentes ou previstas contempla a remoção de nutrientes, não será de esperar uma melhoria muito significativa na qualidade da água, nomeadamente na turbi­dez, transparência e macrófitos, nem na dos sedimentos que continuarão a acumular os res­tos da produtividade primária e secundária do ecossistema. Há ­metodologias eficientes de re­moção de nutrientes baseadas na cultura de algas e de pei­xes. As condições naturais são propícias. Parece pois de acon­selhar um esforço no sentido de se encontrarem soluções para o problema, que sejam exequíveis e  ambientalmente  aceitáveis. Esse é um domínio onde se jus­tificaria  uma  intervenção da JNICT e da SEA.

Enquanto essas intervenções não tiverem lugar e não forem implementadas as medidas que os estudos revelarem mais acon­selháveis, continuar-se-á a assistir a uma deterioração crescente da qualidade da água em certas zonas relativamente localizadas da Ria. São esses zonas que se assinalam na Figura. 

Representação esquemática da região da Ria de Aveiro assinalando-se certas zonas onde se verifica uma deterioração crescente da qualidade da água.

Adicionalmente haverá ainda uma con­tribuição para a eutrofização geral da Ria dada pelas fontes dispersas de nutrientes, que é difícil de quantificar, cuja impor­tância variará de local para local em função das características do campo de correntes, da topo­grafia do fundo e dos caudais dessas fontes.  

 

3-IMPACTO DOS EFLUENTES INDUSTRIAlS NA RIA

O distrito de Aveiro ocupa um lugar destacado no panora­ma industrial português. Apesar disso, o número de grandes uni­dades industriais localizadas no distrito é relativamente pequeno, sendo a maioria das existentes de dimensões pequenas e médias. Em termos de efluentes, isto significa que a maioria das in­dústrias funciona como fontes dispersas relativamente à Ria, quase outro tanto se passando relativamente aos cursos de água mais importantes. E ao nível dos pequenos ribeiros que os impactos ecológicos causados pe­las indústrias de pequenas e médias dimensões são muitas vezes dramáticos.

Nas vizinhanças imediatas da Ria há, contudo, três unidades industriais de dimensões apreciá­veis, cujos efluentes se suspeita que estejam a ter um efeito im­portante no seu ecossistema. E trata-se apenas de uma suspeita, porque, ao contrário do que já acontece por esse mundo fora, neste país não se é informado nem nos termos em que essas indústrias foram autorizadas a fazer descargas nas águas públi­cas, nem dos resultados das análises que obrigatoriamente deve­riam ser feitas com periodicidade preestabelecida. O que um mem­bro do público consegue saber é o que lhe é cochichado à mesa do café ou que, por artes mais ou menos detectivescas, vai ob­tendo daqui e dali.

Das três indústrias atrás refe­ridas, uma é alimentar, a Nestlé, localizada em Avanca e descar­regando para o rio Gonde; e as outras duas são químicas, uma sendo a fábrica de pasta de pa­pel da Portucel, em Cacia, que descarrega no Vouga, e a outra o parque industrial de Estarreja, envolvendo a produção de ferti­lizantes, soda, anilina e outros produtos diversos, que descarrega algures no esteiro de Estarreja; e ainda a produção de plásticos, cujos efluentes são enviados para o canal de Ovar. Além disso, chega à Ria, via Rio Vouga, uma carga poluente apreciável, que é descarregada no rio Caima pela fábrica de pasta de papel da Caima Pulp Company.

Deixarei de lado a fábrica da Nestlé por duas razões: a pri­meira é que, tratando-se de uma indústria alimentar de lacticínios, a perturbação que porventura estiver a causar na Ria será devida a CBO e, eventualmente, a variações de pH, questões que, em termos de estações de trata­mento, são fáceis de resolver. O problema, se existir, elimina-se pela simples aplicação das leis, não se prevendo problemas grandes, nem técnicos nem eco­nómicos. A segunda razão é que não consegui obter quaisquer informações quantitativas quanto ao funcionamento dessa unidade fabril, bem como de outras de menor dimensão existentes na zona.

A fábrica de pasta e de pa­pel de Cacia fez já correr rios de tinta e os problemas que le­vanta têm preocupado os suces­sivos SEA, aparentemente sem grandes resultados. Tudo o que se conseguiu obter até agora foi a promessa de que a fábrica porá em funcionamento, a curto prazo, um sistema primário de tratamento de efluentes líquidos. Os benefícios a colher desse esforço podem resumir-se no se­guinte: uma melhor uniformização na qualidade do efluente, remoção de cerca de 90 por cento das partículas suspensas e, talvez, um melhor controlo do pH e da temperatura com que o efluente é descarregado. Em termos de Ria, isso virá a traduzir-se numa redução não superior a 35 por cento no CBO oriundo do efluente e no bene­fício estético que resulta da redução dos flutuantes e da turbidez.

Isso, no entanto, é muito pouco. É que os componentes mais tóxicos dos efluentes são os dissolvidos e não os suspensos e esses vão continuar a cau­sar os mesmos estragos que agora provocam. Um efluente de uma fábrica de pasta pelo método do sulfato, que adicionalmente tam­bém produz papel branco, tem um efluente líquido muito com­plexo, onde existem, por ordem decrescente de toxicidade para os peixes, as seguintes classes de compostos: ácidos resínicos, áci­dos resínicos clorados, ácidos gordos insaturados, clorofenois, álcoois diterpénicos, juvabionas (compostos que mimificam cer­tas hormonas), vários compostos acídicos saturados, vários álcoois alquílicos e aromáticos e variadíssimos produtos da decompo­sição da liguina. Além destes, existem muitos outros compos­tos orgânicos e inorgânicos de toxicidade pequena ou nula como, por exemplo, sulfatos e sódio. Os dois últimos apare­cem geralmente em concentra­ções inferiores às que têm na água do mar, pelo que não cau­sam perturbações em ambientes estuarinos. Os restantes componentes, em conjunto e isoladamente, levantam problemas de toxicidade aguda e crónica não apenas para os peixes, mas tam­bém para outras formas de vida que existam tanto na coluna líquida como nos sedimentos. Nestes aumenta muito o car­bono e enxofre orgânicos e o pH varia apreciavelmente. Essas alterações, em ambientes ióticos, podem fazer-se sentir até 5 km do ponto de descarga. Num rio como o Vouga, esses efeitos devem provavelmente fa­zer-se sentir até à zona de dilui­ção directa causada pela cunha da maré, ou seja, até jusante do Parrachil. Estas alterações nas características dos sedimentos vêm a traduzir-se pelo desapa­recimento total de macro-invertebrados nas vizinhanças imediatas da descarga seguida, à me­dida que a distância aumenta, de redução do seu índice de di­versidade. Este está directamente relacionado com o teor do en­xofre total e do carbono orgâ­nico nos sedimentos.

As bactérias são elementos da biota mais sensíveis ao efluen­te. A influência deste tem sido observada em ambientes lóticos até distâncias de duas dezenas de km. Se igual persistência exis­tir em zonas lagunares, isso pode significar que toda a zona norte da Ria até à ponte da Varela deve estar perturbada. O fitoplancton e o perifiton sofrem reduções, de actividades fotossintética em efluente diluído 100 vezes e, em alguns casos mesmo 10 000 vezes. O zooplancton re­duz a sua capacidade de filtra­ção sob a acção do efluente, ficando essa capacidade comple­tamente inibida para concentra­ções entre 5 e 10 por cento; além disso, a inibição torna-se permanente para exposições pro­longadas. Para os peixes a sensi­bilidade varia com as espécies. O 96h LD50 varia entre 21 e 24 por cento de efluente, mas reduções no ritmo de cresci­mento já ocorrem a diluições de 6 por cento. Os compostos individuais que são tóxicos va­riam com a espécie, mas um que é comum a todas as espécies é o ácido dehidroabiético, cuja vida média é de 21 anos nos sedimentos de 1,5 meses da água. Outros compostos como fenol, guaiacol e aromáticos clorados são bioacumuláveis e conferem cheiros e paladares desagradáveis, que tornam o peixe impróprio para consumo, uma queixa que já se ouve com frequência aos pes­cadores da Torreira. A reacção dos peixes ao encontrarem o efluente é a de o evitarem, o que poderá ter efeitos desastro­sos para as espécies migratórias que pretenderem subir o rio Vouga.

Pensa-se que o que ficou dito permite avaliar o perigo que a descarga da fábrica de Cacia pode representar para a biota da Ria. Não creio ser possível, neste momento, afirmar-se qual o impacto que o efluente está efectivamente a ter sobre o ecossistema lagunar. Não se conhe­cem estudos que tenham procu­rado avaliar esse impacto. Não se conhecem também quaisquer estudos de toxicidade que te­nham sido feitos com o próprio efluente da fábrica sobre os ani­mais lagunares. E a toxicidade desse efluente pode ser bastante diferente da que está descrita para efluentes de outras fábricas semelhantes, mas que laboram espécies silvícolas diferentes, já que a toxicidade do efluente depende da composição da ma­deira usada na fábrica.

Quem percorre a Ria na zona do delta do Vouga não tem dú­vidas de que o efluente da fábrica está a ter um efeito nocivo; mas essa impressão é meramente qua­litativa e resulta da observação do impacto do efluente sobre a qualidade da água quanto ao seu uso para recreio e amenidade paisagística. A cor, cheiro e aspecto da água, das margens, dos fundos e da vegetação estão pro­fundamente degradados e isso, só por si, numa região turística como Aveiro, justificaria que as autoridades procurassem obter a cooperação da Portucel por forma a conseguir-se a imple­mentação do conjunto de medi­das indispensáveis à eliminação dos aspectos mais chocantes do impacto do efluente. Isso aca­bará por passar necessariamente pela instalação de alguma espé­cie de tratamento secundário para o efluente, tratamento esse que, dadas as características da região, e a abundância de ter­reno, poderá eventualmente vir a realizar-se sem necessidade de Investimentos incomportáveis pa­ra a economia da empresa e da nação.

Mas não são os aspectos es­téticos os argumentos de maior força em favor do tratamento secundário do efluente. O dese­quilíbrio ecológico causado na Ria e no Vouga é sem dúvida um factor de muito maior peso. Urge identificar os componentes do efluente que têm maior toxi­cidade e estudar os seus meca­nismos de degradação. Será com base nos resultados desse estudo que se deverá projectar a esta­ção de tratamento. Só assim se optimizará a relação custos-benefícios do empreendimento, opti­mização essa que será indescul­pável que não seja atingida. Te­mos presentemente reunidas em Aveiro algumas das condições necessárias para a realização do estudo referido. Existe uma Uni­versidade com pessoal qualifi­cado, existe algum equipamento, conhece-se a metodologia. Só falta um catalisador que faça surgir os meios materiais que não existem e que faça nascer nas pessoas a motivação que lhes falta para lançar as mãos à obra. Um dos órgãos regionais com responsabilidade na gestão do ambiente poderia facilmente tornar-se nesse catalisador.

Os problemas associados com o efluente do parque industrial de Estarreja são um tanto dife­rentes dos de Cacia. As indústrias mais importantes instaladas no parque produzem nitratos, sulfa­tos, soda cáustica, cloro, plásti­cos e aromáticos substituídos. O parque tem, em alguns pontos, tratamentos parciais de alguns efluentes, que vão do simples ajuste de pH, feito manualmente, aos sistemas mais complexos de remoção de orgânicos residuais através de colunas de carvão activado. O conjunto de trata­mentos, porém, é descoordenado e incompleto, resultando daí um efluente industrial de qualidade muito variável. Para essa variabilidade contribui tam­bém a água de escorrimento su­perficial de todo o parque, que é misturada ao efluente indus­trial e provoca variações de cau­dal, habitualmente da ordem dos 50 cm3 /h, que facilmente atin­gem os 100 por cento.

O efluente não é caracterizado com regularidade. Há um conjunto de análises pouco signi­ficativas que são feitas mensal­mente pelas fábricas e que, apa­rentemente, não são lidas por ninguém, embora sejam enviadas à autoridade licenciadora do lançamento, neste caso a Direc­ção Hidráulica do Mondego.

Uma vez que os sulfatos são sintetizados a partir da pirite, será de esperar que o efluente seja rico em metais pesados diversos, como cobre, chumbo e zinco, e em não metais tóxicos como o arsénio. Será de esperar também concentrações elevadas de sulfatos, nitratos, amoníaco e moléculas orgânicas diversas, desde o cloreto de vinilo aos aro­máticos substituídos. Será ainda de esperar quantidades apreciá­veis de hipocloritos e variações bruscas e grandes de pH, muito embora, dada a predominância das instalações da Quimigal, o pH tenda a ser habitualmente baixo.

Com um tal panorama, pode perspectivar-se o impacto que esse efluente possa ter na Ria. O efluente é rico em metais pe­sados e a Ria tem sedimentos ricos em matéria orgânica. Os metais serão pois complexados por essa matéria orgânica e arras­tados para o fundo com a sua floculação. Mas o efluente será frequentemente ácido e a hidró­lise da matéria orgânica será cata­lisada em meio ácido. Dessa forma será liberta para a solu­ção uma parte dos metais pesa­dos que, entretanto, tiverem sido complexados. Quer no fun­do, quer na coluna líquida, os metais podem ser acumulados pela biota, onde causarão os efei­tos típicos da poluição metálica. Pode, além disso, ser ainda ini­ciado um processo de amplificação biológica de que as popula­ções ribeirinhas poderão even­tualmente estar já a ser vítimas. Aí está um campo que vale a pena investigar. Mas pior do que o processo descrito acima é um outro que tem uma grande pro­babilidade de acontecer. Já se disse que o esteiro de Estarreja recebe efluentes urbanos. A quantidade de matéria orgânica existente no fundo deve ser grande e a probabilidade de ocorrerem reacções anaeróbias nos sedimentos será muito ele­vada. Tais condições são muito favoráveis para a formação de compostos alquílicos de alguns metais, nomeadamente o Hg e o Pb. Esses compostos têm a pro­priedade de atravessar muito facilmente as membranas biológicas, pelo que se acumulam rapi­damente nos tecidos dos seres vivos presentes, particularmente dos que vivem no fundo e se alimentam filtrando a água, que é o caso de muitos moluscos, alguns dos quais são directamente comidos pelo homem. Foi uma situação semelhante a esta que originou o desastre de Minamata.

Há ainda um outro problema que vale a pena referir. O efluen­te deve conter produtos orgâni­cos sintéticos diversos. Esses pro­dutos, além de efeitos de toxici­dade directa, tanto aguda como crónica, são frequentemente bio­acumuláveis e originam palada­res e aromas desagradáveis, pon­do assim em risco tanto a saúde como o valor comercial das pes­carias da região.

Finalmente, talvez valha a pena referir também os efeitos que poderá ter o nitrogénio transportado no efluente. A concentração de amoníaco deve andar pelas centenas de mg/l e a de nitratos pelos milhares. Como se sabe, o amoníaco é extremamente tóxico para toda a biota e, em especial, para os peixes, sendo os limites tolerados da ordem de 1 mg/l. Os ni­tratos são, como já se disse, fac­tores determinantes da eutrofi­zação da Ria. Lançar despreocupadamente num canal de pe­quena circulação centenas ou milhares de mg/l de nitratos e andar paralelamente a tentar manter esse canal livre de ma­crófitos é um exemplo acabado de incoerência.

ARISTIDES HALL



[i] Importa referir que esta situação já não se verifica, estando actualmente a cidade de Aveiro dotada de um novo sistema de esgotos. (Projecto SIMRIA – abrange os concelhos de Aveiro, Ovar, Ílhavo, Murtosa)

 

Aveiro

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2001