No dobrar constante do tempo, um século a outro segue; e os
acontecimentos de maior ou menor importância que em
qualquer deles ocorreram vão desaparecendo da memória
dos vivos e caminharão, depressa, para o total
esquecimento se não houver documentos que os registem e
possam, mais tarde, desenterrados da poeira dos
arquivos, permitir às gerações seguintes conhecê-los
e relacioná-los entre si.
Assim é que, no estudo que há três anos venho fazendo
sobre o passado de Aveiro, estudo que tenho limitado ao
exame do registo paroquial da freguesia de Nossa Senhora
da Apresentacão, mas que agora, mercê de circunstâncias
várias, vou estendendo às restantes freguesias que
havia na vila desde os fins da século XVI, fui
surpreendido, de maneira chocante, pelo número
extremamente elevado de óbitos, principalmente de crianças
com idade inferior a dez anos, particularmente nos anos
de 1680, 1692, 1700, 1749, 1766, 1793 e 1799.
Ora, tal facto tinha uma causa que sendo-me desconhecida
muito desejava desvendar.
Recorri, por isso, a outras fontes de informação que
pudessem esclarecer-me o mistério.
Comecei por consultar as «Efemérides Aveirenses», trabalho
interessante e valioso que o saudoso António Cristo nos
legou poucos anos antes da sua morte prematura.
Nelas encontrei referência a determinados acontecimentos
cujo desenrolar deve ter íntima ligação com o facto a
que acima aludo. Marques Gomes, Pinho Leal e outros,
igualmente os referem, dando maior desenvolvimento à
sua descrição.
E, porque aqueles autores me fizeram crer que, durante os séculos
XVII e XVIII, Aveiro passou por uma crise sem
precedentes na sua milenária história, decidi levar
mais longe o meu estudo.
Sei bem que as linhas que vão seguir-se, súmula de quanto
li, não darão conhecimento novo a uns tantos que ao
assunto têm dedicado anos de trabalho intenso e
persistente.
Mas elas são como que um grito de alma que não posso
reprimir, calando, dentro de mim, a dor que senti ao
conhecer todo o infortúnio que suportou a terra que, em
1939, me acolheu com tanta franqueza e simpatia e à
qual hoje me prendem laços afectivos que só comigo
desaparecerão.
Que me perdoem, pois, os estudiosos se julgarem que vou meter
foice em seara alheia.
I
DO ALTO DA CAPELA DO SENHOR DAS BARROCAS
Em dia que não sei precisar, mas que julgo ser um, dos
366 de 1940, por força de um serviço de observação
geodésica que me foi solicitado, vi-me no ponto mais
alto da velha capela do Senhor das Barrocas, junção
dos oito vértices opostos às bases das oito faces
triangulares isósceles que formam o seu telhado,
ponta onde havia sido colocado um pequeno marco que
servia de ponto trigonométrico.
|
|
E, ou fosse porque acusasse um pouco de cansaço ocasionado
pela ascensão um tanto difícil, direi até perigosa,
feita por uma escada tosca de madeira encostada ao
telhado da capela, ou fosse o feitiço absorvente da
paisagem, o que é certo é que só muito depois de ter
chegado, iniciei o trabalho que ali me levou.
Lá do alto, a 18 ou 20 metros acima da chão, o horizonte é
largo, de algumas dezenas de quilómetros, seja qual for
o sentido para onde se olhe.
Porém, naquele instante, a minha atenção fixou-se nas
maravilhas da faixa costeira, desde o cabo Mondego às
planuras onde se adivinha Ovar.
|
E, durante não sei quanto tempo, ali estive, mudo e
contemplativo, sem conseguir despegar o meu olhar do
admirável cenário que a meus pés se desdobrava, como
que querendo encher os meus olhos daquela beleza
extasiante e linda sem igual.
O deslumbramento que senti foi tal que hoje, volvidos quase
trinta anos, ainda está em mim com a mesma intensidade
e o mesmo encantamento de então.
Vejo ainda hoje a poalha de ouro que recobria a paisagem,
acentuando o verde dos campos, avivando o
branco das areias e do casario, a alvura
imaculada do sal o azul das águas e do céu.
A beleza do espectáculo dominava-me, quase fazendo-me
duvidar da realidade que se me deparava para me julgar
perante um sonho lindo como jamais tinha sonhado.
Aqui, é o sol a espelhar-se nas águas dos canais que sulcam
a campina e nas águas das marinhas e viveiros piscícolas,
como em espelho estilhaçado, que mão trémula de velho
avozinho sustentasse.
Ali, é a magia de incontestáveis cones de sal alvejando
numa extensão larga, a perder de vista quais noivos
felizes, ajoelhados no templo imenso da Natureza a
pedirem ao Criador bênçãos para o noivado que vão
fazer.
Por toda a parte, velas enfunadas de barquinhos, que se
adivinham por se não verem, deslizando lentos pelos
canais, fazendo lembrar pombas brancas que esvoaçam
mansas rentes ao chão.
E tudo isto é, afinal, a Laguna ou Ria de Aveiro que, com as
suas ilhas e ilhotas e o emaranhado dos seus inúmeros
canais, se estende desde Ovar até Mira, em todo o
esplendor da sua ímpar beleza.
Mas... -
sempre o eterno «mas» nas coisas falíveis deste
mundo falível -
o que hoje é beleza já foi horror, o que hoje atrai,
ontem repeliu, o que hoje é vida renascida, já foi
morte.
Diz um rifão popular que não há bela sem senão, nem rosa
sem ter espinhos. E o rifão que é síntese de uma ciência
que o povo aprendeu na dura e, por vezes, dolorosa
experiência da vida, tem neste caso a sua melhor
confirmação.
II
UM PASSADO SEM HISTÓRIA OU COM POUCA HISTÓRIA
Aveiro sem a sua laguna era, noutro tempo, janela aberta
através da qual a sua gente olhava nostálgica a
imensidão do mar...
Mas um dia essa janela fechou-se; e, entre o mar e a terra,
surgiu a Ria que havia de ser, na fase final da sua
formação, ferro em brasa que penetraria profundamente
na sua carne, dilacerando-a, ulcerando-a,
martirizando-a, enfim.
Seria que o mar para castigar a ousadia dos que, numa
insignificante casca de noz que uma vela fazia correr
sobre as ondas, já nesses recuados tempos, se atreviam
a desafiar as suas fúrias?
Bondava que ele tivesse, só que fosse uma alma vegetativa, e
eu diria que sim.
Do livro de Vidal de La Blache «Princípios de Geografia
Humana» do qual acabo de ler o capitulo IV -
O Mar -
capítulo que reputo o mais sugestivo de toda a obra,
extraio o seguinte:
«Durante o longo tempo,
a familiaridade com o mar foi apenas privilégio
de grupos restritos. Não se pode falar de uma atracção
geral que o mar havia exercido sobre as populações
humanas: somente algumas costas se mostram atractivas.
De todas as atracções a mais poderosa para a humanidade
primitiva foi provavelmente a exercida pela pesca. Os
recursos alimentares do mar foram a isca que levou, esse
terrenho que é o homem, a lançar-se ao elemento
diferente daquele onde se havia estabelecido e do qual
se tornara o inquilino e, por assim dizer, o comensal».
Depois da leitura da transcrição supra, fio bem que Aveiro
e os seus pescadores andaram juntos desde a meninice de
ambos.
Não quero, com isto, dizer que lá em 985 tivessem
acompanhado os 35 barcos vikings do comando de Eric, o
Vermelho, que a tradição diz terem, nesse ano,
desembarcado
na Gronelândia, e que, em determinado momento, deles
se tivessem separado em demanda da Terra Nova para
pescar bacalhau.
Não... A navegação estava ainda muito atrasada; e, com os
escassos meios de que dispunham, os pouquíssimos
conhecimentos náuticos que possuíam e, sobretudo, as
terríficas lendas que povoavam a sua imaginação,
eles, ao irem para o mar, navegavam sempre à vista de
terra.
Apesar disso, o seu arrojo era a admiração de todos e a
fama de pescadores valentes vinha-lhes já dos tempos de
D. Fernando e D. João I.
Assim, porque não admitir que os pescadores aveirenses,
Iogo que lhes foi possível, fossem os primeiros a
velejar para a Terra Nova, depois de descoberta, à
busca de bacalhau, como aliás afirma o Pe. Carvalho da
Costa a páginas 117, Tomo II da sua Corografia
Portugueza?
Diz Pinheiro Chagas na sua História de Portugal,
volume III, página 117: «A ser verdade o que o Pe. Cordeiro
declara na sua História Insular, já em 1463, um dos
membros da família Cortereal, João Vas Cortereal,
encontrara uma ilha que não era outra senão a conhecida
actualmente pelo nome de Terra Nova e a que ele chamou
Terra dos Bacalhaus».
Baseado, contudo, no silêncio de Damião de Góis ao falar
dos Cortereais, estranha aquele autor que este não
aludisse a tão significativa descoberta.
Daqui o pôr em dúvida a veracidade da afirmação do Pe.
Cordeiro.
Seja, porém, como for: ou descoberta em 1463, por João Vaz
Cortereal ou, posteriormente, por seu filho, o
infortunado Gaspar Cortereal, Marques Gomes em O
Distrito de Aveiro dá como certo que, em 1504,
alguns bretões e normandos que aportaram naquela ilha,
já lá encontraram colónias de pescadores de Aveiro e
Viana do Minho.
III
O LITORAL LUSITANO ENTRE DOURO E MONDEGO NO SÉCULO X
No século X, desde Espinho ao Cabo Mondego, o
Atlântico banhava Esmoriz, Ovar, Estarreja,
Aveiro,
Ílhavo, Vagos e Mira formando o litoral uma baía de pequena
reentrância.
|
Entre Cacia e Angeja desembocava um vasto estuário no qual
desaguavam os rios Vouga, Águeda e Cértima e onde as
marés do Oceano entravam livremente, alimentando de água
salgada as inúmeras marinhas que nos recôncavos das
suas margens existiam numerosas, nomeadamente em
Alquerubim e Eixo, às quais documentos da época fazem
referência frequente.
Esse estuário, cujo leito era, certamente de cota bastante
inferior à que hoje tem o rio Vouga, era limitado do
lado Norte pelas encostas onde se situam Angeja, S. João
de Loure, Pinheiro e Alquerubim: e, cortando o Vouga na
altura de Fontinha, encontrava, pelo Poente, o esporão
de Travassô, seguindo pelo sopé da sua vertente Sul,
até à altura de Cabanões e Óis da Ribeira onde
recebia as águas do Águeda.
Depois seguia pelo sopé da encosta Poente do esporão Óis
da Ribeira-Piedade até à foz do Cértima, na actual
Pateira de Fermentelos; e contornando a povoação
pelo Norte e Noroeste completava-se o fundo do estuário.
|
Pelo Sudoeste era ele limitado pelas encostas Leste do alto
de Mamodeiro, pelas de Requeixo, Eirol e Eixo e,
continuando na direcção Noroeste, atingia Cacia.
Esta, de uma maneira geral, a linha do antigo litoral,
linha que Nery Delgado e Paul Choffaf, no seu mapa geológico
de Portugal apresenta como linha divisória entre os
terrenos antigos e as terras de aluvião, formadas
posteriormente.
Nessa época já bastante distante, o mar era mistério
insondável que atemorizava os mais audaciosos: por
isso, os poucos e pequenos barcos que havia para troca e
venda de produtos seguiam a sua viagem, de porto a
porto, sem nunca perderem a terra de vista.
Talvez, por isso, nessa época, a pesca atraiu pouco a gente
desta região ribeirinha, que dava preferência à
fabricação do sal e à agricultura.
Ovar, Aveiro e, segundo reza a tradição, Ílhavo, foram
centros salineiros de primeira ordem e, como eram portos
de mar, por eles saíam os seus produtos que eram postos
à venda noutros pontos do pais.
«É do ano de 959 -
diz o Dr. Rocha Madail, na Nota Preliminar da sua
colectânea de Documentos Históricos,
comemorativa do Milenário
de Aveiro -
«a doação com que iniciamos a colectânea: esse,
precisamente, o mais antigo documento em que o nome de
Aveiro, alatinado em Alauario, se encontra
exarado autenticando irrefragavelmente a existência do
lugar à data».
Ora, nem nesse documento, nem ainda nos que se lhe seguiram há
qualquer referência que se prenda com a existência da
laguna, nessa época, sendo mesmo de crer que a linha do
litoral que acima se indicou, ainda se mantivesse ao
tempo da fundação da nacionalidade.
IV
O NOVO LITORAL
Vários documentos existem, contudo, que levam a situar, por
volta do século X o início da sedimentação operada
sob a acção dos agentes naturais, que havia de
transformar a baía existente na laguna de Aveiro e nos
vastos areais de Mira. As narrações que registam o
fenómeno permitem segui-lo, no seu evoluir constante
ao longo dos nove séculos que ele durou.
Partindo de Esmoriz para Sul um novo litoral começou, então,
a formar-se e o cordão de areias que o definia começou
a diferenciar-se, embora lentamente, do litoral antigo.
Assim. por volta de 1200, já a barra vinha fixar-se por
altura do ponto onde hoje é Torreira e aí se manteve
durante quase todo o século XIII.
Mas, a acção dos agentes externos não pára: o mar, por um
lado e os rios Antuã, Vouga, Águeda, Cértima e Boco
que desaguavam na baía, pelo outro, não cessam de
lançar o produto do seu desgaste na incipiente laguna e
no estuário, cujo fundo se vai alteando para cota cada
vez mais elevada.
É a sedimentação lenta mas constante que no século XIV
há-de fazer aflorar à superfície das águas as
extensas lezírias, onde hoje se levantam Pardilhó,
Bunheiro, Pardelhas e Murtosa, além de várias ilhas
que então se formaram.
E para melhor elucidação da maneira como o fenómeno
evolui, transcrevo o que diz António do Nascimento
Leitão, a páginas 38 de «Aveiro e a sua Laguna»:
|
|
«Na laguna de Aveiro actuam de fora para dentro os factores
que mais concorrem para o seu assoreamento: os ventos
fortes e frequentes e as marés. Os ventos, como se
sabe, além de soprarem as dunas, levantam as vagas
-
os agentes de pressão máxima nas ablações afectas
aos grandes temporais. As marés além de lhe trazerem
areias submarinas, têm ainda a propriedade, de na enchente,
apressarem as precipitações fluviais, no seu contacto
com a água doce, não as arrastando consigo na vazante,
visto que os materiais mais leves se afastam para os
lados da corrente, aonde a velocidade é menor ou mesmo
nula nalguns recôncavos».
Prestado este esclarecimento, continuamos a narrar o fenómeno:
mas, frise-se desde já que, em Março de 1234, data da
doação de Esgueira «com seus termos novos e velhos»,
feita pela Infanta D. Teresa, filha de D. Sancho I, ao
Mosteiro de Lorvão (Doc. XXXIX da Colectânea de Rocha
Madail), não se alude ainda a lezírias ou ilhas que já
houvesse nesse tempo.
Foi até com base neste documento e noutros igualmente
coevos que em 1537 o tribunal competente, no pleito
entre D. Jorge de Lencastre, duque de Coimbra e o
Mosteiro de Lorvão, lavrou sentença judicial a favor
do primeiro, dando-lhe a posse da Ilha do Monte Farinha
que aquele Mosteiro reivindicava para si.
Esta ilha só veio a formar-se em data posterior, talvez no século
XIV.
É também no século XIV que se forma a ilha da Testada que
logo no princípio do século seguinte, por carta de D.
João I, de 17 de Maio de 1407, foi doada ao
meirinho-mor da comarca entre Douro e Minho, prior Dom
Frei Álvaro Gonçalves Camelo (Rocha Madail -
obra cit. Doc.
LXXX).
Mas, enquanto tudo isto se passa, o cordão dunar continua o
seu avanço para Sul, atingindo, no século XV, a região
perto da qual hoje se situa a ermida de Nossa Senhora
das Areias, onde a barra se veio fixar durante algum
tempo.
Entretanto, no ponto onde presentemente existem as Gafanhas,
começaram a acumular-se detritos fluviais e marítimos
que dunas de areias, cuja formação aumentava
rapidamente, limitavam pelo Poente.
No final do século XV o cordão dunar, que formava o novo
litoral, situava-se já por alturas de Costa Nova do
Prado, fazendo-se a entrada na laguna pelo canal, agora
existente, entre a duna do litoral e as grandes dunas da
Gafanha.
V
AVEIRO CENTRO MERCANTIL E MARÍTIMO
Com a marcha para sul do cordão litoral, o crescente
assoreamento da laguna em formação e a consequente
sedimentação operada até à altura onde hoje se ergue
a Murtosa, Ovar perdeu o seu porto e as suas marinhas,
declinando totalmente a sua antiga importância como
centro salineiro e mercantil.
A maré alta da fortuna transferiu-se, então, para Aveiro
que, por assim dizer, com a rapidez do relâmpago se
transformou num centro mercantil e marítimo de primeira
grandeza «no meio de uma vasta e próspera região agrícola,
salineira e piscatória».
A sua população, amálgama de gente, vinda dos quatro
cantos do continente português e que aqui se fixava,
subiu extraordinariamente, atingindo os 14 000
habitantes no alvorecer do século XVI. Também neste século
os seus 100 navios de alto bordo (naus e galeões, quase
todos aqui construídos, segundo Pinho Leal) mantinham
um intenso comércio com a África, a Índia e o Brasil,
recentemente descobertos. Todos os anos armava 50 a 60
caravelas para a pesca do bacalhau nos bancos da Terra
Nova.
O símbolo da riqueza e da prosperidade era «o rico de
Aveiro» nome por que era conhecido João Nunes Cardoso,
casado com D. Isabel da Costa Corte Real que, além de
abastado proprietário de várias terras, possuía
bastantes embarcações que anualmente iam à pesca do
bacalhau.
Além de tudo, o porto de Aveiro era demandado por mais de
100 navios, na sua maioria estrangeiros, que aqui vinham
trazer e comerciar os seus produtos.
|
Foi, sem dúvida, esta a idade de oiro de Aveiro e de
toda a região de que era centro.
Mas... não há mal que sempre dure, nem bem que não acabe:
e esta prosperidade e esta riqueza porque o fenómeno
natural, a que vimos aludindo, lha trouxe, o mesmo lha
havia de levar, uma vez que ele não suspendia o seu
avanço para sul.
Os primeiros sintomas de crise vieram no final deste século.
|
Efectivamente, no tempestuoso inverno de 1575, o cordão
litoral continuou a sua marcha para sul, ultrapassando
as dunas da Gafanha e um violento temporal entulhou a
barra com as areias, não podendo sair, conforme diz
Pinho Leal -
nem sequer um iate; os campos tornaram-se alagadiços e
estéreis, impossibilitando durante muito tempo os
trabalhos agrícolas.
Esta crise, porém, foi passageira e três anos depois,
quando o inditoso D. Sebastião quis fazer reviver os
tempos épicos dos seus antepassados, Aveiro ainda pode
contribuir com um regular número de navios que havia de
levar a Marrocos a fina flor da fidalguia de Portugal.
Em 1584 a barra continuava ainda por alturas da Costa Nova,
muito embora o cordão litoral continuasse a sua
progressão para Sul.
Porém, a sua instabilidade era grande e havia necessidade de
frequentemente mudar os sinais que a balizavam.
Mau grado tão inquietante sintoma, as estatísticas oficiais
registam, de 1619 a 1624, a entrada no porto de mais de
60 navios estrangeiros, em média, por ano.
Mas, em 1643, a barra desaparece da Costa Nova para surgir na
Vagueira; e, 40 anos depois, em 1685, ainda mais para
Sul, na Quinta do Inglês.
A navegação é cada vez mais difícil, e desde aquele ano
até 1700 a média anual de navios entrados no porto
baixou para 14.
Tal facto alarmou a população que, temendo maior crise,
levou a Câmara Municipal a mandar vir dois engenheiros
hidráulicos holandeses que tendo estudado, durante mais
de um ano o magno problema da barra concluíram que a
solução seria fechar a barra, ao tempo na Vagueira, e
abrir uma nova em S. Jacinto.
Tal solução, pelas despesas avultadas a que obrigava e
pelas dificuldades na sua execução que necessariamente
surgiriam, foi julgada inviável e, por isso, posta de
parte.
VI
A CATÁSTROFE
De 1720 a 1736 as estatísticas acusam um tráfego marítimo,
apenas de 12 navios por ano.
Entretanto o fenómeno natural continua o seu avanço para
sul e nos meados do século XVIII a barra atingiu os
areais de Mira, vindo a fechar-se completamente em
1757.
Surge, então, a ideia de tentar melhorar a barra, fixando-a
e desobstruindo-a, mesmo no local onde agora se situava:
mas todos os esforços resultaram em insucessos.
As grandes enchentes da Ria continuavam a encharcar os
campos e a inundar a parte baixa de Aveiro, que se
conservava imersa durante muitos meses do ano, agravando
as condições higiénicas existentes, ao tempo já tão
precárias.
E como os poderes públicos de então não adoptassem
quaisquer medidas tendentes a debelar o mal ou, pelo
menos, a minorá-lo, o capitão-mor de Ílhavo, João de
Sousa Ribeiro, aproveitando uma cheia, no rigoroso
inverno de 1757, solicitou e, por aviso régio de 27 de
Janeiro desse ano, foi-lhe concedida autorização
para, à sua custa, abrir um regueirão na Vagueira,
onde em 1648 a barra já estivera, a fim de fazer escoar
as águas para o mar (Arquivo de Aveiro, VoI. 1, pág.
223-224).
A tentativa foi coroada de êxito e as águas ao passarem, em
turbilhão pela abertura feita, não só a alargaram,
como a aprofundaram, formando-se uma nova barra que se
manteve até 1765 e permitiu que os navios entrassem no
porto com relativa facilidade.
Durante este período de 8 anos houve um tráfego de 10
navios em 1761 e de 36 em 1765.
Mas em 1771 a nova barra desapareceu da Vagueira para vaguear
pelos areais de Mira.
Em 1777, o engenheiro inglês Elsden faz tentativa de abrir
uma nova barra no local aproximado, onde hoje está: porém,
foi mais uma tentativa que se frustrou.
Em 1780, o hidráulico italiano Isappé foi encarregado de
fazer nova tentativa de fixar a barra, uma vez mais, na
Vagueira: mas ao fim de três anos de porfiados esforços
esperava-o o insucesso.
Em 24 de Abril de 1784, a Câmara Municipal queixava-se de
que o «comércio estava totalmente desvanecido por
falta de capacidade da barra» (Arquivo de Aveiro, VoI.
1, pág. 228).
Em 1787, a barra que, nessa época, estava nos areais de Mira
uma vez mais se fechou completamente, facto que, como
sempre, trouxe consigo a enchente da laguna e, como
consequência desta, a submersão das ilhas e campos
marginais e a inundação da parte baixa de Aveiro.
A Câmara Municipal, fazendo-se eco de uma população
faminta e já esgotada de tanto sofrer pede à Rainha D.
Maria I, em 1 de Março de 1788, providências para
minorar tanta vicissitude (Arquivo de Aveiro, Vol. 1, pág.
229).
Esta determinou, desde Iogo, ao marechal de campo Luís António
de Valleré que elaborasse um projecto para
prosseguimento das obras; mas, afinal, tudo em vão:
dali nada saiu!
Já sem esperança de vir a conseguir para a sua terra uma
barra que desse acesso ao porto a qualquer navio que o
demandasse, a Câmara Municipal, em 5 de Maio de 1791,
decidiu apresentar a Sua Majestade sobre a grande precisão
de um canal ou «desaguadouro» por onde saíssem para o
mar as imensas águas que se juntavam na Ria e aqui se
demoravam (Arquivo de Aveiro, VoI. 1, pág. 229) e
permitisse a entrada na laguna a barcos de pequeno
calado.
O canal ou «desaguadouro» seria localizado onde hoje se
situa a Ermida de Nossa Senhora das Areias; mas o mar
nem sequer permitiu que a tentativa chegasse ao fim,
pois que, as areias removidas durante um dia de trabalho
penoso, eram na noite seguinte substituídas por nova
quantidade por ele lançada.
Em 1794 a barra continuava fechada e as enchentes da laguna e
suas consequentes inundações continuavam a causar
prejuízos enormes à agricultura e, o que é pior, a
aumentar a insalubridade do clima.
Face a tão grave situação, a Câmara Municipal, em 16 de
Abril desse ano, encarregou o Dr. Manuel Joaquim Negrão
de conseguir do Príncipe Regente, mais tarde D. João
VI, as providências necessárias para prosseguimento
das obras de abertura de uma barra nova (Arquivo de
Aveiro, VoI. 1, pp. 229).
a) - Sonho que se desfaz
Pelo que anteriormente foi dito, vê-se bem que, desde o
começo ao fim, o século XVIII deve ter sido um
pesadelo para Aveiro que viu a sua barra caminhar cada
vez mais para Sul, deixando atrás de si um cortejo de
trágicas consequências que culminou na fome e na dor;
e levando consigo um sem número de esperanças que
durante algum tempo muita gente teve de ver a barra
abrir novamente e naturalmente por si, no mesmo local
onde já estivera e tão próspera e rica fizera a região
na Costa Nova.
Mas não... O destino parecia comprazer-se em martirizar
esta pobre gente que o sofrimento de um século havia
quase esgotado.
E como se não bastasse ter de assistir à ruína total da
agricultura da extensa região ribeirinha, à queda da
indústria piscatória, já a do alto bordo, já a longínqua
nos bancos da Terra Nova e à derrocada do comércio com
as nossas possessões de África, Índia e Brasil,
Aveiro, durante todo este século, ia suportar novo
golpe, sem dúvida, mais duro e mais cruel que nenhum
dos já sofridos: a morte dos seus filhos provocada
pelas péssimas condições higiénicas existentes em
virtude da estagnação das águas da laguna.
A imagem deste Aveiro, triste, desolado e ferido pelo luto,
traz ao meu espírito a lembrança da Níobe infeliz
que, antes de ficar totalmente petrificada, passeava a
sua dor imensa, por entre os cadáveres, ainda
insepultos de todos os seus filhos que a ira desumana de
Latona havia roubado ao seu carinho de mãe.
Na verdade, a morte entrou em todos os lares, ceifando vidas
sem conto, principalmente de crianças de idade inferior
a 10 anos.
Bem o provam os números que a seguir se apresentam, extraídos
do registo paroquial da freguesia de Nossa Senhora da
Apresentação durante todo o século XVIII, período de
maior agudeza na mortalidade infantil e de que houve um
primeiro rebate nas duas últimas décadas do século
XVII.
Dos 690 lares que, durante aquele século, habitaram na
freguesia considerada, foram atingidos pela morte de um
ou mais filhos 544; e só o não foram 146, ou seja,
78,8 % dos primeiros e 21,2 % dos segundos.
O número de crianças falecidas em cada lar é o que consta
do quadro seguinte:
O número de lares indicados corresponde somente ao dos que
foram constituídos durante o século XVIII.
O número total de crianças falecidas desde 1700 a 1799 é
de 1 230, sendo: do
sexo masculino 655; do sexo feminino 575.
A diferença de cinquenta neste número e o de 1180 que o
quadro anterior apresenta é proveniente da supressão
de algumas crianças de lares constituídos antes de
1700, ou de crianças filhas de pais não casados.
Não é de estranhar também que o número de crianças
falecidas do sexo masculino seja bastante mais elevado
que as do sexo feminino, porquanto, nesta freguesia, em
5683 nascimentos registei 3028 crianças do sexo
masculino, número este superior ao das do sexo feminino
em 373.
b) - A população
Difícil me foi, na verdade, encontrar o seu quantitativo
nos anos que seria para desejar conhecê-lo.
No entanto, depois de algumas buscas infrutíferas, achei
casualmente, num relatório oficial que consultava, os
seguintes números que, embora não satisfaçam
completamente, algum tanto vêm facilitar este trabalho.
No começo do século XVI, Aveiro tinha 14 000 habitantes: em
1685, 10000: em 1736, apenas 5300: em 1767 cerca de 4400
e em 1797 estava reduzida a 3500!
Por outro lado, o Rev.0 Pe. João Gaspar em «A
Diocese de Aveiro» informa que no ano de 1572 por
mandado do Bispo de Coimbra, D. Frei João Soares, foi
elaborado um rol das pessoas de comunhão que havia na
freguesia de S. Miguel, a única, ao tempo, existente,
na vila, o qual acusava a existência de 11 365 pessoas.
Juntando a este número o das crianças que não eram de
comunhão e que avalio em 700, obter-se-á, como população
provável de Aveiro, no ano de 1572, 12065 ou seja, em números
redondos, 12 100 habitantes.
Com os quantitativos que acima se apresentam formar-se-á o
quadro seguinte:
É deveras confrangedora a queda vertiginosa que a
população sofreu no período que vai de 1685 e 1797
que o quadro põe em evidência.
Tal decréscimo teve uma causa, como é óbvio, e essa foi a
formação da laguna que trouxe consigo a instabilidade
da barra, e sobretudo a insalubridade do clima.
Na verdade, o errar da barra desde Esmoriz a Mira, trouxe
consequências imediatas, a partir do final do século
XVII, uma parte da população, principalmente a que
aqui antes se havia estabelecido, abandonar Aveiro para
se instalar em terras próximas da barra e a
insalubridade do clima que não só fez sair muitas famílias,
naturais da vila, para outras terras onde as condições
climatéricas fossem melhores, mas ainda vitimou um
sem número de crianças àquelas que, não podendo ou não
querendo sair, aqui ficaram.
A mortalidade nas crianças era apavorante, como se pode ver
no quadro que a seguir se apresenta, extraído do
registo paroquial da já mencionada freguesia de Nossa
Senhora da Apresentação.
A média das quatro décadas, anteriores à primeira que no
quadro se menciona, dá como percentagem de óbitos de
crianças em relação à totalidade deles, apenas 7,1
%.
Comparemos agora a totalidade dos óbitos com a natalidade,
no mesmo período de tempo, cujos elementos vão
reunidos no quadro seguinte:
Debrucemo-nos uns momentos sobre os dados acima apresentados.
Na coluna dos nascimentos nota-se uma queda acentuada da década
de 1690/99 para a de 1700/709, queda que mantém um
quantitativo, mais ou menos constante, até ao final do
século. Os quantitativos das duas primeiras são
aproximadamente os mesmos das décadas anteriores a
1680.
Numa palavra, a queda brusca da população, acusada no
quadro número 3 deve ter-se dado no fim do século XVII,
princípio do século XVIII. Esta suposição é
sobejamente confirmada, pelo gráfico, detalhado por
anos, que a seguir se apresenta:
O seu exame permite-nos ver que até 1695 o número de
nascimentos oscila entre 35 e 60 com mais valores próximos
de 60 que de 35; pelo contrário, a partir daquele ano,
o valor mais elevado é de 35 e o mínimo 20, tendo os
valores intermédios maior tendência para se
aproximarem do limite mínimo que do máximo.
Quer dizer, a partir de 1685, uma boa parte da população,
deve, na verdade, ter abandonado Aveiro, ou porque
pressentisse o próximo estalar de maior tragédia, ou
porque, principalmente os pescadores, tivessem conveniência
em estar o mais próximo possível da barra que, cada
vez mais, caminhava para sul.
Vejamos, agora, a coluna dos óbitos do Quadro n.0 3.
Com ela passa-se uma coisa idêntica à que foi dita em relação
à natalidade. As duas primeiras décadas, de 1680 a
1700, acusam valores extremamente elevados, em relação
aos das décadas do século XVIII, cuja média anual é
de 27 óbitos, muito embora houvesse neste século anos
excepcionalmente maus, como o de 1700 com 75, e o de
1749 com 78, para não falar noutros.
Quer dizer, o êxodo da população que julgamos ter-se dado
no final do século XVII e princípio do século XVIII,
dedução baseada na natalidade, é mais uma vez
confirmada pelos óbitos ocorridos na mesma época,
facto que o gráfico n.0 1 põe bem em evidência.
Ora, parece à primeira vista que a quebra brusca, quer de
nascimentos quer de óbitos, seguida de valores,
mais ou menos constantes até ao final do século XVIII,
seriam indício de uma melhoria na situação grave
porque passava a população de Aveiro ou, pelo menos,
que a crise se não tinha agravado.
Mas não... a população ia diminuindo a olhos vistos e a
constância dos números outra coisa não significa que
não seja agravamento da crise.
Senão vejamos: na década de 1730/1739 houve, na freguesia
considerada, 233 óbitos, isto é 4,4 % da totalidade
da população de Aveiro, em 1736; em 1767, ano em que a
população era de 4400, a percentagem dos óbitos na década
de 1760/1769 foi de 5 % e, finalmente, na década de
1790/1799, com a população reduzida, em 1797, apenas a
3500 habitantes, a percentagem dos óbitos ocorridos
durante essa década subiu para 8,8 %.
Vê-se, pois, sob o ponto de vista sanitário, quão grave
era a situação que a população de Aveiro tinha de
enfrentar na segunda metade e, sobretudo, no final desse
fatídico século XVIII.
c) - Incidências sobre a vida económica
Os males descritos anteriormente, cuja causa se deve atribuir
exclusivamente à instabilidade da barra, não se
circunscrevem apenas à desastrosa incidência sobre a
população, mas foram mais longe, eles também afectaram
grandemente a vida económica de toda a região
ribeirinha, especialmente a de Aveiro.
Com as dificuldades, sempre crescentes, de navegação,
originadas na instabilidade da barra e seu constante
assoreamento que ocasionava, frequentemente
inacessibilidade total aos navios, o tráfego marítimo
foi diminuindo havendo, durante todo o século XVIII,
uma média anual de 2,4 navios entrados no porto!
Assim, como podia manter-se um comércio que, nos séculos XV
e XVI, era intenso e progressivo? Necessariamente ele
havia de tornar-se precário e decadente. Mas, se a
decadência e a ruína do comércio gerava pobreza, a
impossibilidade da pesca, quer a de alto bordo. quer a
longínqua, na Terra Nova, originava pobreza e fome e
ambas juntas a doença e a morte.
Aveiro, sob este aspecto, nos fins do século XVIII, era uma
cidade de pobres, de famintos e de doentes, que
arrastavam a sua dor pelas ruas quase desertas.
E, para a desgraça ser total, as espécies ricas que no mar
se criam, desapareceram da laguna, deixando de
interessar economicamente a pesca na Ria.
Até o moliço, de largo emprego na adubação dos terrenos
agricultáveis, não só escasseou como, por falta de
salinidade das águas, perdeu muito das suas qualidades
como adubo.
As marinhas de sal, na sua maior parte submersas durante
quase todo o ano, tinham uma produção diminuta ou
nula. declinando assustadoramente a exploração
salineira que era, sem dúvida, uma importantíssima
fonte de riqueza de Aveiro, se não a maior.
Também a construção naval não escapou à crise geral. Ela
que, nos séculos XV e XVI, se apresentava bastante
florescente e esperançosa, viu a sua actividade
reduzida à insignificância.
VII
DA MORTE À RESSURREIÇÃO
No princípio do século XIX, a crise tinha chegado ao seu
auge e a miséria era geral.
Os clamores desta pobre gente, tão provada pelo infortúnio
que durava havia já dois longos séculos, foram
finalmente ouvidos pelos poderes públicos.
Na treva de tão lenta agonia para muitos começou, então, a
bruxulear uma ténue luz de esperança, ao saberem que o
Príncipe Regente D. João, por aviso de 2 de Janeiro de
1802, havia encarregado os engenheiros, coronel Reinaldo
Oudinot e capitão Luís Gomes de Carvalho, ao tempo
dirigindo as obras da barra do Douro, de elaborar um
projecto para abertura e estabilização da barra
de Aveiro. Porém, não obstante ser esta a tentativa
mais séria que até então ia ser levada a efeito, em
virtude dos autores do projecto terem à sua disposição
os necessários meios para a sua execução, uns
tantos houve que descriam da sua eficiência. É que,
depois de tanta ilusão desfeita e de tantos insucessos
sofridos, o pessimismo, qual escalracho que se não
desarreigava do seu ser, levou-os a duvidar e a julgar
mesmo inútil mais esta tentativa, caso ela viesse um
dia a realizar-se.
Em 6 de Março desse ano o projecto foi enviado ao Governo
para aprovação.
Tinha sido dado, finalmente, o primeiro passo para pôr termo
ao livre divagar da barro sob a acção dos agentes
naturais e, com ele, a esperança de um chamamento à
vida ressuscitada que permitisse olhar com mais confiança
o futuro.
Em 28 de Janeiro de 1805 o projecto é aprovado e, em 15 de
Março desse ano, dá-se início à obra que havia de
permitir o escoamento das águas putrefactas da Ria.
Em 9 de Março de 1806, faz-se uma primeira tentativa de
abertura da nova barra, infelizmente sem êxito.
Em 28 de Fevereiro de 1807 faz-se nova tentativa; mas, logo
na madrugada do dia seguinte, a barra fechou-se mais uma
vez.
Até que, em 3 de Abril de 1808, ela foi aberta e agora
com todo o êxito!...
Mas deixemos que fale Miguel Joaquim Pereira da Silva que
subscreveu o auto de abertura da barra feito em 15 de
Abril:
«As águas que cobriam as ruas da praça desta cidade e os
bairros do Alboi e da Praia, baixaram três palmos de
altura dentro de 24 horas e outro tanto em o seguinte
espaço e em menos de 3 dias já não havia águas pelas
ruas e toda a cidade ficou respirando melhor ar por
estas providências com que o Céu se dignou socorrê-la
e a seus habitantes com esta grande Obra da Barra.»
E da forma como se operou a abertura da nova barra, ouçamos
agora o que diz o distinto marinheiro Silvério da Rocha
e Cunha:
«Às sete horas da tarde (de 3 de Abril de 1808) -
em segredo, acompanhado por Verney, pelo marinheiro Cláudio
e poucas pessoas mais, arrancam a pequena barragem de
estacas e fachinas que defendia o resto da duna na
Cabeça do molhe cortam a areia com pás e enxadas e Luís
Gomes, abrindo um pequeno sulco com o bico da bota no frágil
obstáculo que separava a ria do mar, dá passagem à
onda avassaladora da vazante para a conquista da libertação
económica de Aveiro, depois de uma opressão que
durava 60 anos.»
A treva dissipou-se, finalmente: o tempo escampou e uma
aurora refulgente e bela nasceu então, espargindo
sobre Aveiro uma lufada de esperança embora as feridas
abertas, já na sua população, já em toda a sua vida
económica, fossem extremamente profundas e
desencorajantes.
Na verdade, a partir do dia 3 de Abril de 1808, Aveiro podia,
com razão, entoar aleluias pela vida renascida que
nessa data inesquecível começava.
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