A Laguna: Vida, Morte e Ressurreição de Aveiro


Coronel Diamantino Antunes do Amaral - In: "AVEIRO E O SEU DISTRITO", N.º 6, 1968, pp.34-46

 

 

 

No dobrar constante do tempo, um século a outro segue; e os acontecimentos de maior ou menor importância que em qualquer deles ocorreram vão desapa­recendo da memória dos vivos e caminharão, depressa, para o total esquecimento se não houver documentos que os registem e possam, mais tarde, desenterrados da poeira dos arquivos, permitir às gerações seguintes conhecê-los e relacioná-los entre si.

Assim é que, no estudo que há três anos venho fazendo sobre o passado de Aveiro, estudo que tenho limitado ao exame do registo paroquial da freguesia de Nossa Senhora da Apresentacão, mas que agora, mercê de circunstâncias várias, vou estendendo às res­tantes freguesias que havia na vila desde os fins da século XVI, fui surpreendido, de maneira chocante, pelo número extremamente elevado de óbitos, principalmente de crianças com idade inferior a dez anos, particularmente nos anos de 1680, 1692, 1700, 1749, 1766, 1793 e 1799.

Ora, tal facto tinha uma causa que sendo-me des­conhecida muito desejava desvendar.

Recorri, por isso, a outras fontes de informação que pudessem esclarecer-me o mistério.

Comecei por consultar as «Efemérides Aveirenses», trabalho interessante e valioso que o saudoso António Cristo nos legou poucos anos antes da sua morte prematura.

Nelas encontrei referência a determinados aconte­cimentos cujo desenrolar deve ter íntima ligação com o facto a que acima aludo. Marques Gomes, Pinho Leal e outros, igualmente os referem, dando maior desenvolvimento à sua descrição.

E, porque aqueles autores me fizeram crer que, durante os séculos XVII e XVIII, Aveiro passou por uma crise sem precedentes na sua milenária história, decidi levar mais longe o meu estudo.

Sei bem que as linhas que vão seguir-se, súmula de quanto li, não darão conhecimento novo a uns tantos que ao assunto têm dedicado anos de trabalho intenso e persistente.

Mas elas são como que um grito de alma que não posso reprimir, calando, dentro de mim, a dor que senti ao conhecer todo o infortúnio que suportou a terra que, em 1939, me acolheu com tanta franqueza e simpatia e à qual hoje me prendem laços afectivos que só comigo desaparecerão.

Que me perdoem, pois, os estudiosos se julgarem que vou meter foice em seara alheia.  

I

DO ALTO DA CAPELA DO SENHOR DAS BARROCAS

  Em dia que não sei precisar, mas que julgo ser um, dos 366 de 1940, por força de um serviço de observação geodésica que me foi solicitado, vi-me no ponto mais alto da velha capela do Senhor das Barrocas, junção dos oito vértices opostos às bases das oito faces trian­gulares isósceles que formam o seu telhado, ponta onde havia sido colocado um pequeno marco que servia de ponto trigonométrico.  

... Do ponto mais alto da velha capela do Senhor das Barrocas.

E, ou fosse porque acusasse um pouco de cansaço ocasionado pela ascensão um tanto difícil, direi até perigosa, feita por uma escada tosca de madeira encostada ao telhado da capela, ou fosse o feitiço absorvente da paisagem, o que é certo é que só muito depois de ter chegado, iniciei o trabalho que ali me levou.

Lá do alto, a 18 ou 20 metros acima da chão, o horizonte é largo, de algumas dezenas de quilómetros, seja qual for o sentido para onde se olhe.  

Porém, naquele instante, a minha atenção fixou-se nas maravilhas da faixa costeira, desde o cabo Mondego às planuras onde se adivinha Ovar.  

E, durante não sei quanto tempo, ali estive, mudo e contemplativo, sem conseguir despegar o meu olhar do admirável cenário que a meus pés se desdobrava, como que querendo encher os meus olhos daquela beleza extasiante e linda sem igual.

O deslumbramento que senti foi tal que hoje, volvidos quase trinta anos, ainda está em mim com a mesma intensidade e o mesmo encantamento de então.

Vejo ainda hoje a poalha de ouro que recobria a paisagem, acentuando o verde dos campos, avivando o branco das areias e do casario, a alvura imaculada do sal o azul das águas e do céu.

A beleza do espectáculo dominava-me, quase fa­zendo-me duvidar da realidade que se me deparava para me julgar perante um sonho lindo como jamais tinha sonhado.

Aqui, é o sol a espelhar-se nas águas dos canais que sulcam a campina e nas águas das marinhas e viveiros piscícolas, como em espelho estilhaçado, que mão trémula de velho avozinho sustentasse.

Ali, é a magia de incontestáveis cones de sal alve­jando numa extensão larga, a perder de vista quais noivos felizes, ajoelhados no templo imenso da Natu­reza a pedirem ao Criador bênçãos para o noivado que vão fazer.

Por toda a parte, velas enfunadas de barquinhos, que se adivinham por se não verem, deslizando lentos pelos canais, fazendo lembrar pombas brancas que esvoaçam mansas rentes ao chão.

E tudo isto é, afinal, a Laguna ou Ria de Aveiro que, com as suas ilhas e ilhotas e o emaranhado dos seus inúmeros canais, se estende desde Ovar até Mira, em todo o esplendor da sua ímpar beleza.

Mas... - sempre o eterno «mas» nas coisas falí­veis deste mundo falível - o que hoje é beleza já foi horror, o que hoje atrai, ontem repeliu, o que hoje é vida renascida, já foi morte.

Diz um rifão popular que não há bela sem senão, nem rosa sem ter espinhos. E o rifão que é síntese de uma ciência que o povo aprendeu na dura e, por vezes, dolorosa experiência da vida, tem neste caso a sua melhor confirmação.

 

II

UM PASSADO SEM HISTÓRIA OU COM POUCA HISTÓRIA

  Aveiro sem a sua laguna era, noutro tempo, janela aberta através da qual a sua gente olhava nostálgica a imensidão do mar...

Mas um dia essa janela fechou-se; e, entre o mar e a terra, surgiu a Ria que havia de ser, na fase final da sua formação, ferro em brasa que penetraria pro­fundamente na sua carne, dilacerando-a, ulcerando-a, martirizando-a, enfim.

Seria que o mar para castigar a ousadia dos que, numa insignificante casca de noz que uma vela fazia correr sobre as ondas, já nesses recuados tempos, se atreviam a desafiar as suas fúrias?

Bondava que ele tivesse, só que fosse uma alma vegetativa, e eu diria que sim.

Do livro de Vidal de La Blache «Princípios de Geo­grafia Humana» do qual acabo de ler o capitulo IV - O Mar - capítulo que reputo o mais sugestivo de toda a obra, extraio o seguinte:

«Durante o longo tempo,  a familiaridade com o mar foi apenas privilégio de grupos restritos. Não se pode falar de uma atracção geral que o mar havia exercido sobre as populações humanas: somente algumas costas se mostram atractivas.

De todas as atracções a mais poderosa para a humanidade primitiva foi provavelmente a exer­cida pela pesca. Os recursos alimentares do mar foram a isca que levou, esse terrenho que é o homem, a lançar-se ao elemento diferente daquele onde se havia estabelecido e do qual se tornara o inquilino e, por assim dizer, o comensal».

Depois da leitura da transcrição supra, fio bem que Aveiro e os seus pescadores andaram juntos desde a meninice de ambos.

Não quero, com isto, dizer que lá em 985 tivessem acompanhado os 35 barcos vikings do comando de Eric, o Vermelho, que a tradição diz terem, nesse ano, desembarcado na Gronelândia, e que, em determinado mo­mento, deles se tivessem separado em demanda da Terra Nova para pescar bacalhau.

Não... A navegação estava ainda muito atrasada; e, com os escassos meios de que dispunham, os pouquís­simos conhecimentos náuticos que possuíam e, sobre­tudo, as terríficas lendas que povoavam a sua imaginação, eles, ao irem para o mar, navegavam sempre à vista de terra.

Apesar disso, o seu arrojo era a admiração de todos e a fama de pescadores valentes vinha-lhes já dos tempos de D. Fernando e D. João I.

Assim, porque não admitir que os pescadores avei­renses, Iogo que lhes foi possível, fossem os primeiros a velejar para a Terra Nova, depois de descoberta, à busca de bacalhau, como aliás afirma o Pe. Carvalho da Costa a páginas 117, Tomo II da sua Corografia Portugueza?

Diz Pinheiro Chagas na sua História de Portugal, volume III, página 117: «A ser verdade o que o Pe. Cor­deiro declara na sua História Insular, já em 1463, um dos membros da família Cortereal, João Vas Cortereal, encontrara uma ilha que não era outra senão a conhe­cida actualmente pelo nome de Terra Nova e a que ele chamou Terra dos Bacalhaus».

Baseado, contudo, no silêncio de Damião de Góis ao falar dos Cortereais, estranha aquele autor que este não aludisse a tão significativa descoberta.

Daqui o pôr em dúvida a veracidade da afirmação do Pe. Cordeiro.

Seja, porém, como for: ou descoberta em 1463, por João Vaz Cortereal ou, posteriormente, por seu filho, o infortunado Gaspar Cortereal, Marques Gomes em O Distrito de Aveiro dá como certo que, em 1504, alguns bretões e normandos que aportaram naquela ilha, já lá encontraram colónias de pescadores de Aveiro e Viana do Minho.

 

III

O LITORAL LUSITANO ENTRE DOURO E MONDEGO NO SÉCULO X

No século X, desde Espinho ao Cabo Mondego, o Atlântico banhava Esmoriz, Ovar, Estarreja, Aveiro, Ílhavo, Vagos e Mira formando o litoral uma baía de pequena reentrância.  

O litoral entre Espinho e o Cabo Mondego na época da fundação da Nacionalidade.

Entre Cacia e Angeja desembocava um vasto estuá­rio no qual desaguavam os rios Vouga, Águeda e Cér­tima e onde as marés do Oceano entravam livremente, alimentando de água salgada as inúmeras marinhas que nos recôncavos das suas margens existiam nume­rosas, nomeadamente em Alquerubim e Eixo, às quais documentos da época fazem referência frequente.

Esse estuário, cujo leito era, certamente de cota bastante inferior à que hoje tem o rio Vouga, era limi­tado do lado Norte pelas encostas onde se situam Angeja, S. João de Loure, Pinheiro e Alquerubim: e, cortando o Vouga na altura de Fontinha, encontrava, pelo Poente, o esporão de Travassô, seguindo pelo sopé da sua vertente Sul, até à altura de Cabanões e Óis da Ribeira onde recebia as águas do Águeda.  

Depois seguia pelo sopé da encosta Poente do esporão Óis da Ribeira-Piedade até à foz do Cértima, na actual Pateira de Fermentelos; e contornando a po­voação pelo Norte e Noroeste completava-se o fundo do estuário.  

Pelo Sudoeste era ele limitado pelas encostas Leste do alto de Mamodeiro, pelas de Requeixo, Eirol e Eixo e, continuando na direcção Noroeste, atingia Cacia.  

Esta, de uma maneira geral, a linha do antigo litoral, linha que Nery Delgado e Paul Choffaf, no seu mapa geológico de Portugal apresenta como linha divisória entre os terrenos antigos e as terras de aluvião, formadas posteriormente.

Nessa época já bastante distante, o mar era mis­tério insondável que atemorizava os mais audaciosos: por isso, os poucos e pequenos barcos que havia para troca e venda de produtos seguiam a sua viagem, de porto a porto, sem nunca perderem a terra de vista.

Talvez, por isso, nessa época, a pesca atraiu pouco a gente desta região ribeirinha, que dava preferência à fabricação do sal e à agricultura.

Ovar, Aveiro e, segundo reza a tradição, Ílhavo, foram centros salineiros de primeira ordem e, como eram portos de mar, por eles saíam os seus produtos que eram postos à venda noutros pontos do pais.

«É do ano de 959 - diz o Dr. Rocha Madail, na Nota Preliminar da sua colectânea de Documentos Históricos, comemorativa do  Milenário de Aveiro - «a doação com que iniciamos a colectânea: esse, precisamente, o mais antigo documento em que o nome de Aveiro, alatinado em Alauario, se encontra exarado autenticando irrefragavelmente a existência do lugar à data».

Ora, nem nesse documento, nem ainda nos que se lhe seguiram há qualquer referência que se prenda com a existência da laguna, nessa época, sendo mesmo de crer que a linha do litoral que acima se indicou, ainda se mantivesse ao tempo da fundação da nacio­nalidade.

 

IV

O NOVO LITORAL

Vários documentos existem, contudo, que levam a situar, por volta do século X o início da sedimentação operada sob a acção dos agentes naturais, que havia de transformar a baía existente na laguna de Aveiro e nos vastos areais de Mira. As narrações que regis­tam o fenómeno permitem segui-lo, no seu evoluir cons­tante ao longo dos nove séculos que ele durou.

Partindo de Esmoriz para Sul um novo litoral começou, então, a formar-se e o cordão de areias que o definia começou a diferenciar-se, embora lentamente, do litoral antigo.

Assim. por volta de 1200, já a barra vinha fixar-se por altura do ponto onde hoje é Torreira e aí se man­teve durante quase todo o século XIII.

Mas, a acção dos agentes externos não pára: o mar, por um lado e os rios Antuã, Vouga, Águeda, Cértima e Boco que desaguavam na baía, pelo outro, não ces­sam de lançar o produto do seu desgaste na incipiente laguna e no estuário, cujo fundo se vai alteando para cota cada vez mais elevada.

É a sedimentação lenta mas constante que no sé­culo XIV há-de fazer aflorar à superfície das águas as extensas lezírias, onde hoje se levantam Pardilhó, Bunheiro, Pardelhas e Murtosa, além de várias ilhas que então se formaram.

E para melhor elucidação da maneira como o fenó­meno evolui, transcrevo o que diz António do Nasci­mento Leitão, a páginas 38 de «Aveiro e a sua Laguna»:

Situação da Barra em várias épocas.

  «Na laguna de Aveiro actuam de fora para dentro os factores que mais concorrem para o seu assoreamento: os ventos fortes e frequentes e as marés. Os ventos, como se sabe, além de soprarem as dunas, levantam as vagas - os agentes de pressão máxima nas ablações afectas aos grandes temporais. As marés além de lhe trazerem areias submarinas, têm ainda a propriedade, de na en­chente, apressarem as precipitações fluviais, no seu contacto com a água doce, não as arrastando consigo na vazante, visto que os materiais mais leves se afastam para os lados da corrente, aonde a velocidade é menor ou mesmo nula nalguns recôncavos».

Prestado este esclarecimento, continuamos a narrar o fenómeno: mas, frise-se desde já que, em Março de 1234, data da doação de Esgueira «com seus termos novos e velhos», feita pela Infanta D. Teresa, filha de D. Sancho I, ao Mosteiro de Lorvão (Doc. XXXIX da Colectânea de Rocha Madail), não se alude ainda a lezírias ou ilhas que já houvesse nesse tempo.

Foi até com base neste documento e noutros igual­mente coevos que em 1537 o tribunal competente, no pleito entre D. Jorge de Lencastre, duque de Coimbra e o Mosteiro de Lorvão, lavrou sentença judicial a favor do primeiro, dando-lhe a posse da Ilha do Monte Fari­nha que aquele Mosteiro reivindicava para si.

Esta ilha só veio a formar-se em data posterior, talvez no século XIV.

É também no século XIV que se forma a ilha da Testada que logo no princípio do século seguinte, por carta de D. João I, de 17 de Maio de 1407, foi doada ao meirinho-mor da comarca entre Douro e Minho, prior Dom Frei Álvaro Gonçalves Camelo (Rocha Madail - obra cit. Doc. LXXX).


É com arte e beleza, tragédia e glória, que o marnoto esculpe os cristais de sal.

Mas, enquanto tudo isto se passa, o cordão dunar continua o seu avanço para Sul, atingindo, no século XV, a região perto da qual hoje se situa a ermida de Nossa Senhora das Areias, onde a barra se veio fixar durante algum tempo.

Entretanto, no ponto onde presentemente existem as Gafanhas, começaram a acumular-se detritos fluviais e marítimos que dunas de areias, cuja formação aumentava rapidamente, limitavam pelo Poente.

No final do século XV o cordão dunar, que formava o novo litoral, situava-se já por alturas de Costa Nova do Prado, fazendo-se a entrada na laguna pelo canal, agora existente, entre a duna do litoral e as grandes dunas da Gafanha.

V

AVEIRO CENTRO MERCANTIL E MARÍTIMO

  Com a marcha para sul do cordão litoral, o cres­cente assoreamento da laguna em formação e a con­sequente sedimentação operada até à altura onde hoje se ergue a Murtosa, Ovar perdeu o seu porto e as suas marinhas, declinando totalmente a sua antiga impor­tância como centro salineiro e mercantil.

A maré alta da fortuna transferiu-se, então, para Aveiro que, por assim dizer, com a rapidez do relâm­pago se transformou num centro mercantil e marítimo de primeira grandeza «no meio de uma vasta e próspera região agrícola, salineira e piscatória».

A sua população, amálgama de gente, vinda dos quatro cantos do continente português e que aqui se fixava, subiu extraordinariamente, atingindo os 14 000 habitantes no alvorecer do século XVI. Também neste século os seus 100 navios de alto bordo (naus e galeões, quase todos aqui construídos, segundo Pinho Leal) man­tinham um intenso comércio com a África, a Índia e o Brasil, recentemente descobertos. Todos os anos armava 50 a 60 caravelas para a pesca do bacalhau nos bancos da Terra Nova.

O símbolo da riqueza e da prosperidade era «o rico de Aveiro» nome por que era conhecido João Nunes Cardoso, casado com D. Isabel da Costa Corte Real que, além de abastado proprietário de várias terras, possuía bastantes embarcações que anualmente iam à pesca do bacalhau.

Além de tudo, o porto de Aveiro era demandado por mais de 100 navios, na sua maioria estrangeiros, que aqui vinham trazer e comerciar os seus produtos.  

Capela de Nossa Senhora das Areias.


Foi, sem dúvida, esta a idade de oiro de Aveiro e de toda a região de que era centro.

Mas... não há mal que sempre dure, nem bem que não acabe: e esta prosperidade e esta riqueza porque o fenómeno natural, a que vimos aludindo, lha trouxe, o mesmo lha havia de levar, uma vez que ele não suspendia o seu avanço para sul.

Os primeiros sintomas de crise vieram no final deste século.

 

Efectivamente, no tempestuoso inverno de 1575, o cordão litoral continuou a sua marcha para sul, ultrapassando as dunas da Gafanha e um violento temporal entulhou a barra com as areias, não podendo sair, conforme diz Pinho Leal - nem sequer um iate; os campos tornaram-se alagadiços e estéreis, impossibili­tando durante muito tempo os trabalhos agrícolas.

Esta crise, porém, foi passageira e três anos depois, quando o inditoso D. Sebastião quis fazer reviver os tempos épicos dos seus antepassados, Aveiro ainda pode contribuir com um regular número de navios que havia de levar a Marrocos a fina flor da fidalguia de Portugal.

Em 1584 a barra continuava ainda por alturas da Costa Nova, muito embora o cordão litoral continuasse a sua progressão para Sul.

Porém, a sua instabilidade era grande e havia necessidade de frequentemente mudar os sinais que a balizavam.

Mau grado tão inquietante sintoma, as estatísticas oficiais registam, de 1619 a 1624, a entrada no porto de mais de 60 navios estrangeiros, em média, por ano.

Mas, em 1643, a barra desaparece da Costa Nova para surgir na Vagueira; e, 40 anos depois, em 1685, ainda mais para Sul, na Quinta do Inglês.

A navegação é cada vez mais difícil, e desde aquele ano até 1700 a média anual de navios entrados no porto baixou para 14.

Tal facto alarmou a população que, temendo maior crise, levou a Câmara Municipal a mandar vir dois engenheiros hidráulicos holandeses que tendo estudado, durante mais de um ano o magno problema da barra concluíram que a solução seria fechar a barra, ao tempo na Vagueira, e abrir uma nova em S. Jacinto.

Tal solução, pelas despesas avultadas a que obri­gava e pelas dificuldades na sua execução que neces­sariamente surgiriam, foi julgada inviável e, por isso, posta de parte.

 

VI

A CATÁSTROFE

De 1720 a 1736 as estatísticas acusam um tráfego marítimo, apenas de 12 navios por ano.

Entretanto o fenómeno natural continua o seu avanço para sul e nos meados do século XVIII a barra atingiu os areais de Mira, vindo a fechar-se comple­tamente em 1757.  

Ilha do Monte Farinha.

Surge, então, a ideia de tentar melhorar a barra, fixando-a e desobstruindo-a, mesmo no local onde agora se situava: mas todos os esforços resultaram em insucessos.

As grandes enchentes da Ria continuavam a enchar­car os campos e a inundar a parte baixa de Aveiro, que se conservava imersa durante muitos meses do ano, agravando as condições higiénicas existentes, ao tempo já tão precárias.

E como os poderes públicos de então não adop­tassem quaisquer medidas tendentes a debelar o mal ou, pelo menos, a minorá-lo, o capitão-mor de Ílhavo, João de Sousa Ribeiro, aproveitando uma cheia, no rigoroso inverno de 1757, solicitou e, por aviso régio de 27 de Janeiro desse ano, foi-lhe concedida autori­zação para, à sua custa, abrir um regueirão na Va­gueira, onde em 1648 a barra já estivera, a fim de fazer escoar as águas para o mar (Arquivo de Aveiro, VoI. 1, pág. 223-224).

A tentativa foi coroada de êxito e as águas ao passarem, em turbilhão pela abertura feita, não só a alargaram, como a aprofundaram, formando-se uma nova barra que se manteve até 1765 e permitiu que os navios entrassem no porto com relativa facilidade.

Durante este período de 8 anos houve um tráfego de 10 navios em 1761 e de 36 em 1765.

Mas em 1771 a nova barra desapareceu da Vagueira para vaguear pelos areais de Mira.

Em 1777, o engenheiro inglês Elsden faz tentativa de abrir uma nova barra no local aproximado, onde hoje está: porém, foi mais uma tentativa que se frustrou.

Em 1780, o hidráulico italiano Isappé foi encarre­gado de fazer nova tentativa de fixar a barra, uma vez mais, na Vagueira: mas ao fim de três anos de porfiados esforços esperava-o o insucesso.

Em 24 de Abril de 1784, a Câmara Municipal quei­xava-se de que o «comércio estava totalmente desvanecido por falta de capacidade da barra» (Arquivo de Aveiro, VoI. 1, pág. 228).

Em 1787, a barra que, nessa época, estava nos areais de Mira uma vez mais se fechou completamente, facto que, como sempre, trouxe consigo a enchente da laguna e, como consequência desta, a submersão das ilhas e campos marginais e a inundação da parte baixa de Aveiro.

A Câmara Municipal, fazendo-se eco de uma popu­lação faminta e já esgotada de tanto sofrer pede à Rainha D. Maria I, em 1 de Março de 1788, providências para minorar tanta vicissitude (Arquivo de Aveiro, Vol. 1, pág. 229).

Esta determinou, desde Iogo, ao marechal de campo Luís António de Valleré que elaborasse um projecto para prosseguimento das obras; mas, afinal, tudo em vão: dali nada saiu!

Já sem esperança de vir a conseguir para a sua terra uma barra que desse acesso ao porto a qualquer navio que o demandasse, a Câmara Municipal, em 5 de Maio de 1791, decidiu apresentar a Sua Majestade sobre a grande precisão de um canal ou «desaguadouro» por onde saíssem para o mar as imensas águas que se juntavam na Ria e aqui se demoravam (Arquivo de Aveiro, VoI. 1, pág. 229) e permitisse a entrada na laguna a barcos de pequeno calado.

O canal ou «desaguadouro» seria localizado onde hoje se situa a Ermida de Nossa Senhora das Areias; mas o mar nem sequer permitiu que a tentativa chegasse ao fim, pois que, as areias removidas durante um dia de trabalho penoso, eram na noite seguinte substituídas por nova quantidade por ele lançada.

Em 1794 a barra continuava fechada e as enchentes da laguna e suas consequentes inundações continuavam a causar prejuízos enormes à agricultura e, o que é pior, a aumentar a insalubridade do clima.

Face a tão grave situação, a Câmara Municipal, em 16 de Abril desse ano, encarregou o Dr. Manuel Joaquim Negrão de conseguir do Príncipe Regente, mais tarde D. João VI, as providências necessárias para prosseguimento das obras de abertura de uma barra nova (Arquivo de Aveiro, VoI. 1, pp. 229).

 

     a) - Sonho que se desfaz

  Pelo que anteriormente foi dito, vê-se bem que, desde o começo ao fim, o século XVIII deve ter sido um pesadelo para Aveiro que viu a sua barra caminhar cada vez mais para Sul, deixando atrás de si um cortejo de trágicas consequências que culminou na fome e na dor; e levando consigo um sem número de espe­ranças que durante algum tempo muita gente teve de ver a barra abrir novamente e naturalmente por si, no mesmo local onde já estivera e tão próspera e rica fizera a região na Costa Nova.

Mas não... O destino parecia comprazer-se em mar­tirizar esta pobre gente que o sofrimento de um século havia quase esgotado.

E como se não bastasse ter de assistir à ruína total da agricultura da extensa região ribeirinha, à queda da indústria piscatória, já a do alto bordo, já a lon­gínqua nos bancos da Terra Nova e à derrocada do comércio com as nossas possessões de África, Índia e Brasil, Aveiro, durante todo este século, ia suportar novo golpe, sem dúvida, mais duro e mais cruel que nenhum dos já sofridos: a morte dos seus filhos pro­vocada pelas péssimas condições higiénicas existentes em virtude da estagnação das águas da laguna.

A imagem deste Aveiro, triste, desolado e ferido pelo luto, traz ao meu espírito a lembrança da Níobe infeliz que, antes de ficar totalmente petrificada, passeava a sua dor imensa, por entre os cadáveres, ainda insepultos de todos os seus filhos que a ira desumana de Latona havia roubado ao seu carinho de mãe.

Na verdade, a morte entrou em todos os lares, ceifando vidas sem conto, principalmente de crianças de idade inferior a 10 anos.

Bem o provam os números que a seguir se apre­sentam, extraídos do registo paroquial da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação durante todo o século XVIII, período de maior agudeza na mortalidade infantil e de que houve um primeiro rebate nas duas últimas décadas do século XVII.

Dos 690 lares que, durante aquele século, habitaram na freguesia considerada, foram atingidos pela morte de um ou mais filhos 544; e só o não foram 146, ou seja, 78,8 % dos primeiros e 21,2 % dos segundos.

O número de crianças falecidas em cada lar é o que consta do quadro seguinte:  

O número de lares indicados corresponde somente ao dos que foram constituídos durante o século XVIII.

O número total de crianças falecidas desde 1700 a 1799 é de 1 230, sendo:  do sexo masculino 655; do sexo feminino 575.

A diferença de cinquenta neste número e o de 1180 que o quadro anterior apresenta é proveniente da supressão de algumas crianças de lares constituídos antes de 1700, ou de crianças filhas de pais não casados.

Não é de estranhar também que o número de crian­ças falecidas do sexo masculino seja bastante mais elevado que as do sexo feminino, porquanto, nesta freguesia, em 5683 nascimentos registei 3028 crianças do sexo masculino, número este superior ao das do sexo feminino em 373.

 

     b) - A população

Difícil me foi, na verdade, encontrar o seu quan­titativo nos anos que seria para desejar conhecê-lo.

No entanto, depois de algumas buscas infrutíferas, achei casualmente, num relatório oficial que consultava, os seguintes números que, embora não satisfaçam completamente, algum tanto vêm facilitar este trabalho.

No começo do século XVI, Aveiro tinha 14 000 habitantes: em 1685, 10000: em 1736, apenas 5300: em 1767 cerca de 4400 e em 1797 estava reduzida a 3500!

Por outro lado, o Rev.0 Pe. João Gaspar em «A Dio­cese de Aveiro» informa que no ano de 1572 por man­dado do Bispo de Coimbra, D. Frei João Soares, foi elaborado um rol das pessoas de comunhão que havia na freguesia de S. Miguel, a única, ao tempo, existente, na vila, o qual acusava a existência de 11 365 pessoas.

Juntando a este número o das crianças que não eram de comunhão e que avalio em 700, obter-se-á, como população provável de Aveiro, no ano de 1572, 12065 ou seja, em números redondos, 12 100 habitantes.

Com os quantitativos que acima se apresentam formar-se-á o quadro seguinte:

É deveras confrangedora a queda vertiginosa que a população sofreu no período que vai de 1685 e 1797 que o quadro põe em evidência.

Tal decréscimo teve uma causa, como é óbvio, e essa foi a formação da laguna que trouxe consigo a instabilidade da barra, e sobretudo a insalubridade do clima.

Na verdade, o errar da barra desde Esmoriz a Mira, trouxe consequências imediatas, a partir do final do século XVII, uma parte da população, principalmente a que aqui antes se havia estabelecido, abandonar Aveiro para se instalar em terras próximas da barra e a insalubridade do clima que não só fez sair muitas famílias, naturais da vila, para outras terras onde as condições climatéricas fossem melhores, mas ainda viti­mou um sem número de crianças àquelas que, não podendo ou não querendo sair, aqui ficaram.

A mortalidade nas crianças era apavorante, como se pode ver no quadro que a seguir se apresenta, extraído do registo paroquial da já mencionada fregue­sia de Nossa Senhora da Apresentação.

A média das quatro décadas, anteriores à primeira que no quadro se menciona, dá como percentagem de óbitos de crianças em relação à totalidade deles, apenas 7,1 %.

Comparemos agora a totalidade dos óbitos com a natalidade, no mesmo período de tempo, cujos elementos vão reunidos no quadro seguinte:

Debrucemo-nos uns momentos sobre os dados acima apresentados.

Na coluna dos nascimentos nota-se uma queda acentuada da década de 1690/99 para a de 1700/709, queda que mantém um quantitativo, mais ou menos constante, até ao final do século. Os quantitativos das duas primeiras são aproximadamente os mesmos das décadas anteriores a 1680.

Numa palavra, a queda brusca da população, acusada no quadro número 3 deve ter-se dado no fim do século XVII, princípio do século XVIII. Esta suposição é sobejamente confirmada, pelo gráfico, detalhado por anos, que a seguir se apresenta:

O seu exame permite-nos ver que até 1695 o número de nascimentos oscila entre 35 e 60 com mais valores próximos de 60 que de 35; pelo contrário, a partir daquele ano, o valor mais elevado é de 35 e o mínimo 20, tendo os valores intermédios maior tendência para se aproximarem do limite mínimo que do máximo.

Quer dizer, a partir de 1685, uma boa parte da população, deve, na verdade, ter abandonado Aveiro, ou porque pressentisse o próximo estalar de maior tragédia, ou porque, principalmente os pescadores, tives­sem conveniência em estar o mais próximo possível da barra que, cada vez mais, caminhava para sul.

Vejamos, agora, a coluna dos óbitos do Quadro n.0 3.

Com ela passa-se uma coisa idêntica à que foi dita em relação à natalidade. As duas primeiras décadas, de 1680 a 1700, acusam valores extremamente elevados, em relação aos das décadas do século XVIII, cuja média anual é de 27 óbitos, muito embora houvesse neste século anos excepcionalmente maus, como o de 1700 com 75, e o de 1749 com 78, para não falar noutros.

Quer dizer, o êxodo da população que julgamos ter-se dado no final do século XVII e princípio do sé­culo XVIII, dedução baseada na natalidade, é mais uma vez confirmada pelos óbitos ocorridos na mesma época, facto que o gráfico n.0 1 põe bem em evidência.

Ora, parece à primeira vista que a quebra brusca, quer de  nascimentos quer de óbitos, seguida de valores, mais ou menos constantes até ao final do século XVIII, seriam indício de uma melhoria na situação grave porque passava a população de Aveiro ou, pelo menos, que a crise se não tinha agravado.

Mas não... a população ia diminuindo a olhos vistos e a constância dos números outra coisa não significa que não seja agravamento da crise.

Senão vejamos: na década de 1730/1739 houve, na freguesia considerada, 233 óbitos, isto é 4,4 % da tota­lidade da população de Aveiro, em 1736; em 1767, ano em que a população era de 4400, a percentagem dos óbitos na década de 1760/1769 foi de 5 % e, finalmente, na década de 1790/1799, com a população reduzida, em 1797, apenas a 3500 habitantes, a percentagem dos óbitos ocorridos durante essa década subiu para 8,8 %.

Vê-se, pois, sob o ponto de vista sanitário, quão grave era a situação que a população de Aveiro tinha de enfrentar na segunda metade e, sobretudo, no final desse fatídico século XVIII.

   

     c) - Incidências sobre a vida económica

Os males descritos anteriormente, cuja causa se deve atribuir exclusivamente à instabilidade da barra, não se circunscrevem apenas à desastrosa incidência sobre a população, mas foram mais longe, eles também afec­taram grandemente a vida económica de toda a região ribeirinha, especialmente a de Aveiro.

Com as dificuldades, sempre crescentes, de nave­gação, originadas na instabilidade da barra e seu cons­tante assoreamento que ocasionava, frequentemente inacessibilidade total aos navios, o tráfego marítimo foi diminuindo havendo, durante todo o século XVIII, uma média anual de 2,4 navios entrados no porto!

Assim, como podia manter-se um comércio que, nos séculos XV e XVI, era intenso e progressivo? Necessa­riamente ele havia de tornar-se precário e decadente. Mas, se a decadência e a ruína do comércio gerava pobreza, a impossibilidade da pesca, quer a de alto bordo. quer a longínqua, na Terra Nova, originava pobreza e fome e ambas juntas a doença e a morte.

Aveiro, sob este aspecto, nos fins do século XVIII, era uma cidade de pobres, de famintos e de doentes, que arrastavam a sua dor pelas ruas quase desertas.

E, para a desgraça ser total, as espécies ricas que no mar se criam, desapareceram da laguna, deixando de interessar economicamente a pesca na Ria.

Até o moliço, de largo emprego na adubação dos terrenos agricultáveis, não só escasseou como, por falta de salinidade das águas, perdeu muito das suas quali­dades como adubo.

As marinhas de sal, na sua maior parte submersas durante quase todo o ano, tinham uma produção dimi­nuta ou nula. declinando assustadoramente a explo­ração salineira que era, sem dúvida, uma importantíssima fonte de riqueza de Aveiro, se não a maior.

Também a construção naval não escapou à crise geral. Ela que, nos séculos XV e XVI, se apresentava bastante florescente e esperançosa, viu a sua actividade reduzida à  insignificância.

 

VII

DA MORTE À RESSURREIÇÃO

No princípio do século XIX, a crise tinha chegado ao seu auge e a miséria era geral.

Os clamores desta pobre gente, tão provada pelo infortúnio que durava havia já dois longos séculos, foram finalmente ouvidos pelos poderes públicos.

Na treva de tão lenta agonia para muitos começou, então, a bruxulear uma ténue luz de esperança, ao saberem que o Príncipe Regente D. João, por aviso de 2 de Janeiro de 1802, havia encarregado os engenheiros, coronel Reinaldo Oudinot e capitão Luís Gomes de Carvalho, ao tempo dirigindo as obras da barra do Douro, de elaborar um projecto para abertura e estabilização da barra de Aveiro. Porém, não obstante ser esta a tentativa mais séria que até então ia ser levada a efeito, em virtude dos autores do projecto terem à sua disposição os necessários meios para a sua exe­cução, uns tantos houve que descriam da sua eficiência. É que, depois de tanta ilusão desfeita e de tantos insu­cessos sofridos, o pessimismo, qual escalracho que se não desarreigava do seu ser, levou-os a duvidar e a julgar mesmo inútil mais esta tentativa, caso ela viesse um dia a realizar-se.

Em 6 de Março desse ano o projecto foi enviado ao Governo para aprovação.

Tinha sido dado, finalmente, o primeiro passo para pôr termo ao livre divagar da barro sob a acção dos agentes naturais e, com ele, a esperança de um cha­mamento à vida ressuscitada que permitisse olhar com mais confiança o futuro.

Em 28 de Janeiro de 1805 o projecto é aprovado e, em 15 de Março desse ano, dá-se início à obra que havia de permitir o escoamento das águas putrefactas da Ria.

Em 9 de Março de 1806, faz-se uma primeira ten­tativa de abertura da nova barra, infelizmente sem êxito.

Em 28 de Fevereiro de 1807 faz-se nova tentativa; mas, logo na madrugada do dia seguinte, a barra fechou-se mais uma vez.

Até que, em 3 de Abril de 1808, ela foi aberta e agora com todo o êxito!...

Mas deixemos que fale Miguel Joaquim Pereira da Silva que subscreveu o auto de abertura da barra feito em 15 de Abril:

«As águas que cobriam as ruas da praça desta cidade e os bairros do Alboi e da Praia, baixaram três palmos de altura dentro de 24 horas e outro tanto em o seguinte espaço e em menos de 3 dias já não havia águas pelas ruas e toda a cidade ficou respirando melhor ar por estas providências com que o Céu se dignou socorrê-la e a seus habitantes com esta grande Obra da Barra.»

E da forma como se operou a abertura da nova barra, ouçamos agora o que diz o distinto marinheiro Silvério da Rocha e Cunha:

«Às sete horas da tarde (de 3 de Abril de 1808) - em segredo, acompanhado por Verney, pelo marinheiro Cláudio e poucas pessoas mais, arrancam a pequena barragem de estacas e fa­chinas que defendia o resto da duna na Cabeça do molhe cortam a areia com pás e enxadas e Luís Gomes, abrindo um pequeno sulco com o bico da bota no frágil obstáculo que separava a ria do mar, dá passagem à onda avassaladora da vazante para a conquista da libertação eco­nómica de Aveiro, depois de uma opressão que durava 60 anos.»

A treva dissipou-se, finalmente: o tempo escampou e uma aurora refulgente e bela nasceu então, espargindo sobre Aveiro uma lufada de esperança embora as feridas abertas, já na sua população, já em toda a sua vida económica, fossem extremamente profundas e desencorajantes.

Na verdade, a partir do dia 3 de Abril de 1808, Aveiro podia, com razão, entoar aleluias pela vida renascida que nessa data inesquecível começava.

 

Aveiro

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2001