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Thomas Mann, Evolução. Da «existência artística» ao humorismo - Coimbra, 1960, pp. 54 a 71

Da «existência artística» ao humorismo

Parte II

ESCLAREClMENTO - A ambiguidade do termo alemão artistisch (que na tradução ainda se torna maior) é aqui propositadamente aproveitada para caracterizar a atitude vital predominante de determinadas personagens da obra de Mann. Empregamos a expressão, portanto, num sentido semelhante ao que K. A. Horst confere a "artistischen Dasein" em “Die deutsche Literatur der Gegenwart” – livro citado na bibliografia – p. 37. / 55 /

 

Tanto os heróis do primeiro como dos seguintes períodos da evolução da obra de MANN procuram sair da existência artística. A diferença é que a princípio o não conseguem, depois apenas com perplexidade se lançam no "mundo não artístico", e só finalmente são vitoriosos à sua maneira, neste mundo. Que o ambiente escolhido não é resposta válida à vida, quase sempre não o sabem eles próprios. Mas sabe-o o Autor, e exprime-o em seu nome.

 

A definição de existência artística é dada por THOMAS MANN, a propósito da adaptação à rádio do romance "Alteza Real", num Vorwort (31) publicado postumamente; artística é, em suma, toda a existência "irreal" e solitária (e o aspecto físico que implica), só redimida no mundo dos contactos sociais.

Existência artística têm-na portanto não só os artistas do circo da vida, mas todos os que desenvolvem uma cosmo-visão comum numa vida de isolamento. Saídos da solidão, os "Artistas" de MANN buscam / 56 / a vitória meramente realizada num mundo apolíneo, que pode satisfazer os esteticamente moldados, mas só esses.

Em seguida, vamos ver a evolução da obra de MANN, tendo como ponto de partida na sua evolução a citada existência artística.

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Toda a problemática das obras da juventude é resumida numa figura “artística” – Tonio Kröger.

A questão é esta, e THOMAS MANN pô-la a si mesmo com frequência: ter um "schlechtes Gewissen" e não conseguir justificar perante a própria costela burguesa o facto de ser artista, e portanto um ser que decaiu num mundo considerado mórbido – o da Arte.

Também este é o destino de Hanno Buddenbrook. O “artista” pertence a dois mundos – a sociedade burguesa e a sociedade "artística" – e em nenhum deles se sente à vontade. O ambiente de frustração, o sentimento de culpa reconhecido em relação aos outros criam uma ilha de solidão, uma existência artística. Em tal mundo vivem os protagonistas das primeiras obras (Paolo Hoffmann, Herr Friedemann, der Bajazzo, Detlef de "Os Famintos", Detlev Spinell, Tonio Kröger, Hanno, o Schiller da "Hora difícil", Gustav Aschenbach, Axel Martini) – todos eles artistas, escritores ou músicos, e também os Aussenseiter (o conde de "A Morte", Tobias Mindernickel, o advogado Jakoby, Lobgott Piepsam, / 57 / Christian Buddenbrook, o Dr. Überbein e Klaus Heinrich – até certa altura). É um mundo de solidão e abandono, que leva ao suicídio do Dr. Überbein e faz com que já Tonio Kröger tanto aprecie o passo do “Don Carlos” (IV, 23), em que se fala da ”solidão do rei”.

A fuga ao isolamento condenatório tenta-se por meio do amor incestuoso – a fuga mais próxima e o expediente mais acessível! – a solução do "Sangue dos Wälsungen", por exemplo. (Mais tarde, o mesmo tema é retomado, aliás num tom muito diverso, com a vida do Papa Gregório.)

Alteza Real" vai buscar uma ideia ao “Tonio Kröger" – a da identificação do artista com o príncipe, vivendo ambos a sua existência artística… Mas Klaus Heinrich, “artista” e príncipe, funde a sua solidão com a filha do milionário americano, que leva também uma existência formal. Como Tonio, também Imma odeia os seres que levam uma vida congénere à sua, e por isso evita primeiramente o príncipe, em que reconhece uma existência "zum Soheine": "Sie sind zum Scheine zur Schule gegangen, Sie sind zum Scheine auf der Universität gewesen, Sie haben zum Scheine als Soldat gedient und tragen noch immer zum Schein die Uniform; Sie erteilen zum Scheine Audienzen und spielen zum Schein den Schützen und der Himmel weiss, was noch alles; Sie sind zum Schein auf die Welt gekomen (…)" (32).

O sentimento de realidade obtém-se com o casamento – THOMAS / 58 / MANN o diz de si mesmo também – que traz uma vida social vencedora da solidão do princípio. Aschenbach não consegue esta solução. Mesmo a sua tentativa para obtenção de contacto por meio de um amor anormal é frustrada. Preludia-se já que o "artista" tem absoluta necessidade de viver num mundo apolíneo e indicam-se os perigos do dionisíaco, quer no sonho, quer no grande ser "amorfo e dissolvente", que é o mar. 

Já quase no fim da vida, a propósito do Felix Krull, o Autor refere-se à ideia "von einst", de dar ao "artístico" a roupagem do "criminoso" (33). É que, como vem nas "Observações..." – "ein Künstlertum, ohne jeden Einschlag von Scharlatanerie, jede Neigung zu femininer Lüge hat as vielleicht nie gegeben, und der Künstler überhaupt, dieser "über alIe Massen sinnliche und eitle Affe", wie Nietzsche ihn genannt hat (...)" (34). Também no mesmo livro, o Autor afirma que "Ein Künstlerleben ist kein würdiges. Leben, der Weg der Schönheit kein Würdenweg" (35). Ainda, no mesmo livro, ampliando o que atrás fica transcrito, THOMAS MANN dá-nos conta, em quase uma página inteira, da sua concepção da existência artística do próprio artista. Tonio Kröger só admite que um banqueiro seja capaz de escrever novelas, depois de saber que a vocação lhe tinha vindo... na prisão. Ele mesmo é tomado por Hochstapler na própria terra natal.

Há então um sinal que marca igualmente o príncipe, o vigarista / 59 / e o artista (o "artístico" duma maneira geral) e lhes confere uma existência comum? Há. E o artista, que por vezes é equiparado ao príncipe, não deixa de aparecer classificado com estes termos quase sempre nada dignificantes, que coligimos e aqui apresentamos: Abenteurer, Affe, Aufschneider, Bajazzo, Buffon, Bummler, Clown, Gesindel, Hanswurst, Hochstapler, Narr, Scharlatan, Schauspieler, Schwadroneur, Taugenichts, Verbrecher, Zigeuner: são expressões proferidas pela própria consciência do burguês, de herança paterna.

O "Liederliche” materno ficou sempre do lado do ridículo, do suspeito, até do criminoso. Mas era este afinal o caminho do próprio MANN. “ein Bürger auf Irrwegen", (36).

Desde "Alteza Real", porém, o herói sai da sua solidão e existência artística e procura na sociedade uma resposta para o seu caso.

Hans Castorp já não é um atormentado da solidão ou, se o é, é-o apenas a princípio. Herói de Bildungsroman, vai-se formando enquanto ausculta a sociedade em que vive. Dela aproveita o que de interessante esta lhe pode fornecer para a sua formação individual. Como engenheiro naval que é, arma o seu barco e procura fazê-lo singrar no mar da vida. 

Na peugada de Klauss Heinrich, também Castorpo faz parte de uma sociedade – uma estranha sociedade de doentes. Ela não lhe dá uma resposta, mas pelo menos indica-lhe o caminho difícil, que lhe revela / 60 / que realmente não há resposta. Nem para o seu caso pessoal, nem para o caso do Homem, que representa.

Da sua existência insulada, os primeiros heróis de MANN odeiam a vida (Detlev Spinell); depois aspiram a ela (Tonio Kröger); em seguida entram nela (Klaus Heinrich); como Hans Castorp, investigam-na e buscam nela uma solução.

Qual é então a "resposta" da vida e o resultado de tal busca?

Em ocasiões de ambiente pessimista, o Autor recai nos velhos temas: é este o caso do "Doutor Fausto", que a pouco e pouco mergulha num isolamento e num mundo de Arte idênticos aos de Tonio Kröger – outra vez a existência artística, portanto. ("Erstarrung; Öde; Eis; und Geist! Und Kunst!") (37). Leverkühn tenta a comunicação com a vida e com o "mundo dos outros", mas falha; o amor não lhe dá a solução satisfatória que dá a Klaus Heinrich e nem sequer a última fuga – o amor anormal! – o arranca da solidão. Como Aschenbach, também ele perece, por não poder alcançar comunicação com o mundo.

A experiência de Castorp quer mostrar-nos que a vida e a sua vasta problemática nunca são verdadeiramente compreendidas e que o fado do que conseguiu libertar-se da solidão e do pessimismo iniciais é o de encarar a "realidade" numa posição irónica e de a interpretar com espírito humorístico. / 61 /

A obra de MANN é cada vez mais abundante em espírito irónico, até culminar no humorismo de "O Eleito". É a atitude irónica realmente a solução apresentada para suportar a vida. A busca de Castorp chega a esta conclusão: a realidade nunca se atinge e, para seu bem, convém ao Homem não tentar atingi-la. MANN também não duvida da veracidade dos fenómenos espiritistas a que assistiu e de que dá conta em "Experiências Ocultas" (38). O que não quer é investigá-los e perigar com isso a sua saúde psíquica. Hans Castorp, na sessão espiritista da "Montanha Mágica" assiste à materialização do primo. Não duvida da sua veracidade, mas, talvez por isso mesmo, vai acendendo a luz eléctrica…

A verdade, tal qual ela é, nunca se atinge. O que importa é ter o equilíbrio suficiente para se conhecer que o abismo existe, sem se cair nele. Hans Castorp mostra-nos que, apesar de todos os seus esforços para compreender a vida, não deixa de ir ao encontro da morte. Há então de se desesperar? O longo esforço há-de ir converter-se em niilismo? A solução está em se deixar fascinar pela aparência, assumindo uma posição irónica, com a consciência, porém, de que a realidade existe, mas que é vedado às faculdades humanas conhecê-la, e que só o tentar fazê-lo é ousadia punível.

Tal atitude não resolve os problemas da vida, é certo, mas pode / 62 / resolver o "problema filosófico" de um ou outro.

 

A posição irónica é o que mais caracteriza o terceiro e último período da obra.

Que é então ironia?

O conceito de ironia comporta muitas dificuldades de definição: é um campo extremamente movediço, que se furta a conclusões fixas e a distinções exactas. A ironia vive, em suma, no reino do puramente intelectual dificilmente definível (dificuldade que diminui à medida que se vai descendo na sua escala de valores, isto é, à medida que se atinge uma zona de intelectualidade mais apreensível.) É, pois, um terreno perigoso (onde a faca de dois gumes pode acabar por ferir o próprio irónico...) o que vamos pisar, com a previsão pouco optimista, desde logo, de que não chegaremos a uma distinção estável e segura.

Passemos em revista algumas das tonalidades da ironia: como imagem de retórica, é na sua origem a forma de interrogação empregada por Sócrates com respeito aos sofistas; de género idêntico encontram-se algumas interrogações do Novo Testamento. Nos nossos tempos, Freud não se afasta da definição usual de ironia, que consiste em dizer o contrário do que se quer dar a entender com as palavras. Diz / 63 / ele: "Ironie ist gar keine andere technik als die der Darstellung durchs Gegenteil eigentümlich" (39). Com o denominador comum de atitude crítica ou reacção de uma sensibilidade intelectual ao grotesco, ao burlesco e ao histriónico (excluindo todas as implicações de ordem moral) encontra-se a seguinte série de conceitos, nem sempre (atente-se bem!) do mesmo nível: a paródia, a sátira, a zombaria; a "Persiflage", a "charge", a "Travestie", o sarcasmo, a mordacidade, o espírito sardónico, o cinismo, o escárnio (lembremo-nos das nossas antigas "cantigas de escarnho ou de maldizer"!) É o humorismo, de que trataremos já.

Reparou-se como é difícil fixar conceitos neste domínio? (Por exemplo, na frase atrás citada do livro de Detschner, a ironia é equiparada à paródia (40)

Vejamos o que se passa com a chamada ironia romântica, concepção que invade o período do Romantismo Alemão. Friedrich Schlegel, o maior teorizador deste movimento, define ironia como "das klare Bewusstsein der ewigen Agilität, des unendlichen vollen Chaos" (41). Tal "definição" não será extremamente clara, e o investigador Vai-se convencendo a pouco e pouco da tarefa inglória (ia dizer: irónica), da sua busca, ao chocar com definições nem sempre concordes e completas. Mais clara, parece a de Brüggemann (1909) que assim define a ironia do Romantismo do séc. XIX: "die ästhetisch-spielerische / 64 / Betrachtung der Welt" caótica (die Welt) aos olhares humanos, acrescentando nós, de certo modo, algo da definição de Schlegel. [Sobre Ironia Romântica veja-se, p. ex, Laurence Le Sage, "Jean Giraudoux, Surrealism and the German Romantic Ideal, The University of Illinois Press, Urbana 1952 - p. 25-31.].Talvez assim fique esclarecido este conceito.

Mas aqui interessa-nos a concepção manniana da ironia; nesta altura trataremos também do seu conceito de humorismo – e veremos o que MANN entendia por um e por outro, quase sempre com base no que ele deixa dito em “Humorismo e Ironia", que traduzimos.

 

Ironia é, para MANN, tudo o que provoca um sorriso intelectual e erásmico. O humorismo, presente em quase todos os escritores da Baixa Saxónia, (que o Autor prefere e usa – o que, infelizmente, segundo ele, a crítica não quer ver...) provoca o riso cordial, a gargalhada aberta (evidente que não nos referimos à gargalhada grosseira).

Está na reacção da sensibilidade intelectual, portanto, a diferença entre ironia e humorismo. São o mesmo fenómeno, apenas em graus diferentes. (A "Enciclopédia Portuguesa e Brasileira" – vol. 13, p. 429 – dá de humorismo uma definição – "ironia filosófica do sábio desenganado" – que não evita o termo ironia, o que vem confirmar a dificuldade por nós apontada na destrinça dos dois aspectos de um fenómeno que, no fundo, é o mesmo.

O elemento essencial da épica (o seu elemento natural!) é, para MANN, não a ironia, mas o humorismo. Num trabalho de 1934, / 65 / aproveitando a oportunidade oferecida por uma viagem por mar, THOMAS MANN dá-nos as suas impressões do "D. Quixote" de Cervantes e equipara o humorismo à essência da épica (42). "Der wackersteund dreiteste Eroberer im Reiche des Menschlichen" (43) atraiu também o escritor romântico Jean Paul e por isso se compreende a impressão que, tanto sobre ele como sobre MANN, exerceu o "Cavaleiro da Triste Figura…".

A vida oferece ilusão ao espírito. O espírito "paga-lhe" com uma atitude irónica e vê-a apenas como palco de episódios humorísticos. O mundo é um teatro; e o espírito recosta-se na bancada e diverte-se com o espectáculo...

 

Há uma época na História do Homem Ocidental em que a problemática em torno do aparente e do real se expressa em termos literários: – O Barroco.

O humanista Erasmo de Roterdão (l466-1536) anuncia todo o simbolismo barroco, quando diz que "tudo no mundo é disfarce, e no teatro igualmente" (44). Segismundo já não duvida ("para mi no hay fingimiento / que, desengañado ya, / sé bien que la vida es sueño.) (45); e o mundo é um grande teatro noutra peça de Calderón um "wide and universal stage”, em Shakespeare (46). Os móveis aqui são preponderantemente de natureza religiosa. No conhecido romance picaresco de / 66 / Cervantes, também a vida de D. Quixote se desenrola num palco de ilusão.

A exploração do simbolismo barroco da vida como teatro aparece ainda em Jean Paul: ele vê "das Leben aIs Theater-Spiel, Rolle, Maskenball, Spielraum und den Menschen aIs den Spieler und Schauspieler des Lebenspiels" (47). Também Schopenhauer, traduzindo dois versos de "La Vida es sueño", os emprega num contexto filosófico em que a sua conclusão pessimista se exprime numa pergunta retórica: "Wie sollte es nicht ein Schuld sein? da nach einem ewigen Gesetz der Tod darauf steht?" (48)

O próprio MANN diz que Nietzsche herdara de Schopenhauer a frase que interpreta a vida como "Vorstellung allein, rein angeschaut oder durch dia Kunst wiederholt, ein bedeutsames Schauspiel" (49).

 

O mundo como teatro: é também uma experiência vital de MANN. Qual a sua resposta literária? Numa época em que muitos vêem o reaparecimento da problemática barroca, também ele considera o mundo como teatro. Não no sentido, evidentemente, de que ele se apaixona inesperadamente pelo drama. A épica é que é o seu mundo, já o sabemos, – por isso mesmo ele observa a realidade com tanto afastamento e espírito crítico. Mas, na medida em que por teatro se entende o refeito irónica e humoristicamente – tal é o conspecto dominante do último / 67 / período de evolução da obra.

Neste terceiro período, já se está muito longe da existência artística e até da procura de Hans Castorp. A sociedade com que não contactam os primeiros heróis e que não dá ainda a Castorp uma resposta satisfatória é ludibriada por Felix Krull e, depois de quantas negaças da ironia, alimentada por José e abençoada por Gregório. 

José sai do vago dos tempos. É, por assim dizer, a tirada do indeciso e do vago do passado de um ser com personalidade. MANN quis fazer das suas personagens bíblicas seres individuais. (É que, nas palavras do Zarathustra, "der Einzelne selber ist noch die jüngete Schöpfung"). Quis arrancá-las ao destino mitológico de Eliezer, que era ele mesmo e também outro ser que já tinha existido antes que, por sua vez, já era a imagem de outro ser anterior.

José aparece como entidade bem delineada: mimado "Muttersöhnchen" e "Vatersöhnchen", dado a meditações profundas, odiado pelos irmãos. A princípio, vive também a sua existência artística. (MANN invoca a ciência para dar força aos factos que vai relatando em pormenor, empresta por vezes ao estilo uma secura de relatório – é isto apenas mais um aspecto da ironia que invade cada vez mais a sua obra.) A saída da existência artística leva José, depois de progressivas ascensões, a “Alimentador" de todo o Egipto, a "ministro" da máxima confiança do Faraó. José não fica derrotado no seu isolamento, / 68 / nem indeciso, como Castorp. É uma personagem que vence; mas fá-lo apenas no mundo da aparência: é este o destino semelhante do Papa Gregório e de Felix Krull.

Gregório tem um nascimento diferente do comum, dos mortais: os pais engendram-no incestuosamente. A criança é afastada do convívio público (Outra vez a solidão!). Depois de cometer novo incesto com a mãe, vem a conhecer a sua história, faz longa penitência, e é chamado ao lugar de papa. Em "O Eleito", a série de episódios humorísticos toma um aspecto orgiástico. O leitor, a certa altura, deixa de "levar a coisa a sério" e sorri apenas, quando o resultado de tanta miséria é a elevação à cadeira papal. Sem dúvidas, também Gregório tem uma infância "esquisita"; mas a sua existência artística não se contenta consigo mesma: envereda pelo caminho da vitória... irónica.

 

A publicação em 1954 da primeira parte do Felix Krull dá azo a algumas considerações do Autor sobre o livro (50). A sua elaboração atravessa os três períodos evolutivos: a redacção do I volume foi acabada em 1911 (primeiro período); mas o volume só em 1922 (segundo período) foi publicado por uma editora de Viena; quando da elaboração da "Montanha Mágica" (também no segundo período), MANN abandona de novo as memórias do vigarista; em 1954 (terceiro período e um ano antes / 69 / da morte de MANN) são publicados os primeiros três livros que constituem a primeira parte; mas a obra fica ainda fragmentária...

Para o nosso tema, esta obra é de particular importância, pois mostra como o Hochstapler - Künstler dos primeiros tempos dissolve a sua existência artística na sociedade e transforma em proveito próprio o gosto dela pelo aparente. Como se vê, é um livro que serve de pano de fundo a toda a obra, e sintetiza excelentemente o que vimos dizendo sobre a passagem da existência artística à atitude humorística. Felix vive também a princípio num mundo de solidão. Mas a necessidade de fingir bem cedo desenvolve nele a certeza de que é de fingimentos que o mundo (eine grosse und verlockende Erscheinung) (51) gosta. O espírito de imitação, que mais tarde lhe vai valer o livrar-se do serviço militar e uma viagem pelo mundo, é desde cedo adestrado pelas doenças de sintomas fingidos e pelo exemplo e ajuda do padrinho. O contacto mais íntimo com o mundo do teatro é-lhe proporcionado sobretudo pela visita que faz com o pai ao actor Müller-Rosé. Para o resto da vida, esta visita torna-se-lhe de capital importância. A realidade onde se move (die Welt und ihre Darbietungen) (52) vai servir de palco às suas "representações". É esta a sua comunicação com o mundo, a sua fuga da existência artística; excluir da vida a solidão, entrar no convívio social, tomar o mundo-ambiente como mera representação cénica... e aproveitar-se disso. / 70 /

O mundo da distância, da épica que a pouco e pouco redunda em palco de abundantes acontecimentos humorísticos – é esta a meta da evolução dos Tonios e dos Hannos do primeiro período. Mas qual é a validade deste mundo, o valor humano de uma vida assim vivida? O próprio humorismo não pode também levar de novo ao isolamento de Spinell, baldando o êxito de Klaus Heinrich?

 

THOMAS MANN confessou-se sempre um moralista (53) e "in Wahrheit ist die Kunst nur ein Mittel mein Leben ethisch zu erfüllen”. Éticos são o Arbeitsfanatismus de Frederico o Grande, a vigília nocturna do Schiller da “Hora Difícil", a Selbstüberwindung de Nietzsche, o trabalho aturado do próprio MANN confessado na "Génese do romance do Doutor Fausto”. Só esta Moral, que nasce do esforço, bane o schlechte Gewissen. (Porque MANN é um hanseático e desde novo respirou os ares de uma ética intransigente e de uma atmosfera que sempre o fez negar um esteticismo puro.) Já a experiência de Munique lhe aguça a vontade de fazer com que a Arte siga a Moral; aquela é condenada por esta em "Fiorenza", e mesmo já nos “Buddenbrooks" é considerada como o caos destruidor.

A Arte é uma consolação para a vida, torna agradável (e suportável) a existência – mas não é mais que isso. A “transcendência da / 71 / Arte" é uma ideia do Romantismo. E o Romantismo, como o velho Goethe da "Carlota em Weimar", sofre de reumático... A ideia, tantas vezes repisada por MANN, da identificação do artista com o vigarista parece não deixar nenhumas dúvidas quanto ao que dizemos. O prémio dos que, desprezando a Moral, se lançam unicamente no caminho da Arte é o ganho pelo Doutor Fausto. O êxito dos "pervertidos do impulso artístico", como Hitler, o "vigarista máximo", é o que bem conhecemos (54).

O conto contemporâneo da tetralogia bíblica apresenta-nos Moisés a gravar, com esforço, as leis do Decálogo. Também o mundo de hoje precisa de leis rígidas. Leis que, gravadas com esforço, com esforço se hão de cumprir.

MANN transmite-nos esta solução para os problemas existenciais: a vida (para o que a Arte é apenas uma consolação), para ser aceite sem revoltas inúteis, nem detrimento das leis morais e negação do imperativo de consciência, deve levar-se com humildade de quem vive num mundo-teatro da ironia e objecto de acontecimentos que só humoristicamente se podem interpretar. A realidade, essa fica numa região vedada às investigações dos mortais.

É assim que, saindo da existência artística a obra envereda pelo caminho da ironia e acaba por explodir no riso do humorismos.

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Notas:

(31) – "Vorwort zu dem Hörspiel ‘Königliche Hoheit", "Nachlese", p. 112.

(32) – "Königliche Hoheit”, p. 319.

(33) – "Rückkehr", "Nachlese", p. 194.

(34) – "Gegen Recht und Wahrheit", "Betrachtungen...", p. 189.

(35) – "Ironie und Radikalismus", "Betrachtungen...", p. 565. – Veja-se também a p. seguinte do mesmo livro.

(36) – "Tonio Kröger", "Erzählungen",. p. 305.

(37) – Ibid, p. 336. 

(38) – "Okkulte Erlebnisse", "Altes und Neus", pp. 102-141.

(39) – S. Freud, "Der Witz", (Fischer Bücherei), p. 59.

(40) – Cf. NOTA 25.

(41) – F. Schlegel, "Kritische Schriften", (C. Hanser Verlag, München), p. 93. 

(42) – "Meerfahrt mit Don Quijote", "Adel des Geistes", p. 524. 

(43) – Ibid., p. 572: Veja-se também a "definição de humorismo”, da. p. 548 (Ibid.): "dieses bittere Sich-ins-Einvernehmen-Setzen mit der gemeinen Wirklichkeit sei eigentlich die Definition des Humors». 

(44) – Erasmo, "O Elogio da Loucura", trad. de Álvaro Ribeiro, (Guimarães e C.ª), p. 52. 

(45) – Calderón, "La vida es sueño", lII, 3 (Clasioos Ebro, Zaragoza). 

Hugo von Hofmannsthal, em "Der Turm", retoma o tema de Calderón. Herdeiro da cultura católico-barroca de Viena, H. v. H. escreveu, ainda no mesmo círculo de problemas, o Jedermann e o “Salzburger Grosse Welttheater.

(46) – Shakespeare, "As you like it”, II, 7 (O.U.P.). 

(47) – Walther Rehm, ”Roquairol", “Begegnungen und Probleme", (Francke Verlag – Bern), p. 119.

(48) – R. Schneider, “Schopenhauer", (Fischer Bücherei). Os dois volumes de "La vida es sueño" são: "pues el delito mayor / deI hombre es haber nacido” (I, 2). Já Camões, antes até do nascimento de Calderón, tinha expressado ideia idêntica à dos versos retomados por Schopenhauer, o que denuncia também uma mundividência pessimista: "que não posso ser contente/ pois que pude ser nascido" (C. Pimpão, "Rimas" de Camões, A. U.C., p. 12). 

(49) – "Nietzsches Philosophie...", "Neue Studien", p. 121.  

(50) – "Rückkehr", "Nachelese…", pp. 193-194. 

(51) – “Felix Krull", p. 20. 

(52) – Ibid., p. 38. 

(53) – "Bürgerlichkeit", "Betrachtungen...", p. 98.

(54) – cfr. "Bruder Hitler", "AItes und Neues", p. 622.

 

 

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