Contos
tradicionais portugueses |
No jornal
anterior, iniciámos uma rubrica com contos tradicionais
portugueses. Apresentámos a história do cavalinho de sete
cores, que contribuiu para a felicidade de duas pessoas que se
amavam.
Desta vez,
transcrevem-se duas histórias muito antigas, retiradas de um
manuscrito com o fabulário português. Como os textos se
encontram em Português medieval, algumas palavras estão
reproduzidas, na parte final, com as correspondentes actuais.
O LEÃO E O
PASTOR
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Andando
um leão seu caminho, entrou-lhe uma espinha no pé; e
este leão andando mui tribulado com esta espinha pela
mata, encontrou-se com um pastor que guardava gado. O
pastor com grão medo quando viu o leão tomou um
carneiro e pô-lo avante o leão; o leão não lho quis
tomar, e mostrava-lhe o pé onde tinha a espinha, e
rogava ao pastor que lha tirasse. |
E o pastor
tomou uma sovela, e tirou-lhe a espinha e muito vurmo que já
trazia. O leão lambia a mão a este pastor.
Depois que o
leão se sentiu são, sempre o acompanhou; e quando havia
talante de comer, andava a caça das alimárias à silva; e
como havia seu mantimento, tornava-se ao pastor. Em tal guisa
lhe guardava seu gado, que lobo nenhum nem outra animalha não
lhe fazia dano; e com todo isto o leão espreveu mui bem no
seu coração o serviço que lhe o pastor fizera.
E de ende a
poucos dias foi tomado aquele leão em um laço e foi posto em
Roma com outros leões. Dali a certo tempo o pastor fez um
malefício; e mandou a justiça que o metessem com os leões,
que o matassem; e foi posto entre eles. O leão a que ele
tirara a espinha o conheceu e chegou-se a ele e andava o
lambendo e defendia o dos outros leões, que lhe não fizessem
mal. Vendo os senadores esta maravilha, foram muito
espantados, e por isso perdoaram a morte ao pastor.
(Fabulário
Português, século XV, manuscrito da Biblioteca de Viena,
folha 19 V - Revista Lusitana, vol. 8, pág. 121, apud
Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português, vol.
II, págs. 97-98)
O LOBO E O
CORDEIRO
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Conta-se
que o lobo bebia uma vez em um ribeiro, da parte de
cima, e o cordeiro bebia em aquele mesmo ribeiro, da
parte do fundo. Disse o lobo ao cordeiro: |
— Porque me
luchas a água e danas este ribeiro?
E o cordeiro
respondeu e disse humildemente:
— Eu não te
faço injúria, nem lucho a o rio, porque a água corre contra
mim, e a água é mui clara; e pero se a quisesse abolver,
não poderia.
Outra vez o
lobo brada forte e diz:
— Não te
avonda que tu me fazes injúria e dano, e ainda me ameaças?
E o cordeiro
outra vez humildosamente responde:
— Não te
ameaço, mais eu me escuso com boa razão.
E o lobo
respondeu outra vez:
— Ainda me
ameaças? Já semelhável injúria me fizeste tu e teu padre,
são já bem seis meses.
O cordeiro
disse:
— Ó ladrão,
eu não hei tanto tempo!
E o lobo iroso
disse:
— Ó mau
rapaz, ainda ousas falar?
E foi-se a ele
e matou-o e comeu-o.
Fabulário
Português, século XV, manuscrito da Biblioteca de Viena,
folha 19 V - Revista Lusitana, vol. 8, pág. 104, apud
Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português, vol.
II, págs. 97-98)
Glossário:
tribulado - atormentado ● sovela - espécie de agulha
metálica usada pelos sapateiros para furar o couro ●
vurmo - pus ● talante - vontade ● alimárias -
animais selvagens ● guisa - maneira ● espreveu -
escreveu, marcou ● ende - aí ● luchar - torvar
● abolver - revolver ● avonda - basta
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