1
— A História é a vida. Nesta, como naquela, há períodos de
maior esperança, dinamismo e prosperidade, como também os há de
apatia, miséria, luta desenfreada, ruptura. Às vezes, pequenas
coisas que magoam, podem transformar-se em dramas e, dum momento
para o outro, no reverso da medalha, surge a vitória quando o «senso
comum» previa derrota. Razões imensas pesam sobre o
comportamento humano, sobre o comportamento das massas como dos
chefes. Por isso a história é um constante «escavar» das
causas e dos efeitos para melhor compreensão do passado, das «coisas»,
sempre olhado do presente, com a certeza de que nem para aquelas
nem para estes se encontra a total enumeração. Complexa e difícil
missão a de quem pretende julgar, com imparcialidade (?), quando
tantos factores nos tornam permanentemente parciais. Mas nem por
isso deixaremos de procurar a «clara certidão da verdade» de
que nos falava Fernão Lopes.
2
— A 4 de Agosto de 1578 dera-se o trágico recontro de Alcácer-Quibir,
em que D. Sebastião perdeu a vida. Com ele sucumbiu ou ficou
prisioneira uma boa percentagem da alta fidalguia portuguesa, à
espera da liberdade que às famílias e ao país custaria somas
avultadas.
O
Cardeal D. Henrique, filho de D. Manuel, que havia sido regente na
menoridade de D. Sebastião, bem se opusera ao empreendimento,
censurando quantos entusiasmavam o rei — «Os quais não merecem
menos porem-lhes o fogo que os judeus que queimaram nos autos da
Santa Inquisição» (1) — e, desgostoso com a conduta política
do país e do seu rei, havia-se refugiado no Convento de Alcobaça.
Foi aí que recebeu a notícia da catástrofe, sem dúvida, pelas
terríveis consequências a ela associadas, das maiores que
enlutaram Portugal.
Ao
ver-se aclamado rei, de idade avançada, saúde abalada e
inteiramente votado à disciplina da Igreja Católica, o Cardeal
D. Henrique carregou sobre os ombros um fardo extraordinariamente
pesado. Acima de tudo, era necessário e urgente resolver o
problema da sucessão. Depois de tentar outras hipóteses, mandou
reunir cortes, as quais, após pequeno período de funcionamento,
em Lisboa (1579), sem qualquer resolução definitiva, só
voltaram a retomar os trabalhos em 11 de Janeiro de 1580, em
Almeirim.
Aqui,
as sessões decorreram, por vezes, em ambiente de grande excitação
e foram-se arrastando perante a indecisão do Cardeal-Rei que, sem
se querer deixar influenciar, mais foi agravando a situação,
quando a podia ter resolvido com «certa» facilidade. (Recorde-se
que sempre hostilizou D. António e, inicialmente, inclinava-se
para D. Catarina). Febo Moniz, procurador eleito pela cidade de
Lisboa, ao ver como se trabalhava na sombra, por interesses
alheios aos do povo português e a saúde do monarca cada vez mais
abalada, chegou a propor-lhe: — «Entregue vossa Alteza o Reino
a um príncipe português e todos lhe beijarão a mão» (2). E a
própria duquesa de Bragança, D. Catarina, alarmada com as notícias
que já corriam, favoráveis à Espanha, passou por AImeirim onde,
em vão, se viu aclamada pelo povo, nas ruas da vila.
Nada,
porém, se resolvia em definitivo e, entretanto, Filipe II não se
poupava a esforços para ir minando e comprando apoios nas classes
dirigentes, abertas à corrupção, visivelmente afectadas por uma
grave crise económica, com familiares detidos em Alcácer, com a
mira de novos títulos e a ganância do riquíssimo império
comercial de Espanha (América Latina, etc.), já que o braço
popular havia manifestado firme hostilidade às suas pretensões,
com Febo Moniz à cabeça. E assim que «A nobreza, alto clero e
grande burguesia convergem, pois, em esperar decisivos proveitos
da união dinástica — e caminham no sentido de Filipe II, como
o monarca espanhol caminha ao seu encontro» (3.)
3
— A 31 de Janeiro morreu o Cardeal-Rei. «A sua abalada saúde,
a insistente pressão de Cristóvão de Moura, as rivalidades que
opunham os três pretendentes, a ruína financeira e desalento
moral da Nação, contribuíram para amedrontar o fraco ânimo do
monarca e para fazer do seu fim de vida um período de triste
indecisão. O velho cardeal não soube compreender a grandeza histórica
da sua missão, não mostrando os dotes de iniciativa pessoal, de
vontade firme e de lúcida visão que podiam ter aureolado o seu
nome (4)...». Dissolveram-se as Cortes (15 de Março), tendo ido
para suas vilas e cidades os respectivos procuradores, só ficando
em Almeirim «número deles competente para melhor se poderem
agasalhar nos lugares para que nos passarmos enquanto a cidade de
Lisboa estiver impedida de mal de peste de que nos Deus livre»
(5), como se lê em carta de 13 de Março dirigida à Câmara de
Aveiro. E os cinco governadores, com o pequeno número de
procuradores das cidades e vilas, cobrindo-se com a capa da peste,
continuam a deixar passar tempo que só é proveitoso para o rei
espanhol. Cristóvão de Moura, com alguns altos fidalgos e bispos
(a maioria dos governadores é favorável a Filipe II) vai
apertando o cerco aos mais firmes opositores.
Ainda
na mesma carta recomendam que tivessem «muito cuidado de nos
avisar sempre do que para efeito de defensão vos parecer que convém...»,
sugerindo que, quando houvesse novas Cortes, que já estavam a ser
preparadas, «as pessoas que para isso elegerdes devem ser as
mesmas que agora vieram pela notícia que têm dos negócios e por
serem tais que folgaremos sempre de com eles tratar os mais» (6)
Não
há dúvida que os representantes de Aveiro (Henrique Esteves da
Veiga e Paulo Pinheiro) eram bem desejados nas próximas cortes,
que já estavam a ser preparadas. A carta dos Governadores mostra
como eram isentos!!!
É
que Filipe II havia-se dirigido, em 13 de Março, aos três
estados do Reino, expondo as razões pelas quais devia suceder ao
Cardeal-Rei. E o seu exército estava a ser mobilizado, o que era
bem do conhecimento dos governadores e perturbava o espírito dos
portugueses mais serenos.
Neste
contexto, a Câmara de Aveiro, alegando que a vila estava pobre,
resolve enviar apenas um procurador às próximas Cortes —
Henrique Esteves de Veiga, partidário declarado do rei espanhol.
Os governadores exigem dois. Em eleição realizada para o efeito,
o segundo escolhido é Simão Cerveira, favorável a D. António,
Prior do Crato.
Porém,
estes dois representantes da Câmara de Aveiro, que defendiam
partidos diferentes, brigaram publicamente. Daí que a Câmara, «pelo
ódio que se tinham» entendesse que «não parecia ser serviço
de Deus nem do reino nem prol comum desta vila que eles ambos
fossem a estas Cortes, por quanto são negócios que requerem...
muita união, conformidade e comunicação» (7).
Em
nova eleição, reconstituiu-se a mesma equipa que tinha estado em
Almeirim. Simão Cerveira foi substituído por Paulo Pinheiro, tal
como tinham sugerido os «Governadores»!
Portanto,
embora houvesse em Aveiro um forte apoio a Prior do Crato (sem dúvida
a maioria da população), venceu, na Câmara, o partido de Filipe
II, de acordo com os interesses da Duquesa de Aveiro, de ascendência
espanhola, da grande nobreza e do alto clero, da rica burguesia
mercantil que, nessa altura, tem, no porto de Aveiro, forte
mercado internacional e razoável número de barcos — aliás o
período mais notável do movimento da barra, até meados do século
XIX.
As
novas cortes deviam começar a 20 de Maio. Aí, a maioria dos
Governadores já tinha intenção de entregar o trono ao rei
espanhol. Foi para elas que partiram os dois procuradores de
Aveiro. O Prior do Crato precipitou, porém, os acontecimentos,
contrariando os planos dos Governadores. Depois de ter tentado um
entendimento com o marido de D. Catarina para defesa da causa
nacional, que ele recusou, começam boatos de que o exército
espanhol já entrara no Alentejo. Exaltam-se os ânimos e D. António
é aclamado rei, em 19 de Junho, em Santarém, seguindo-se depois,
entre outras, Lisboa, Coimbra, Montemor-o-Velho. São estes os
grandes centros apontados em Aveiro, em 4 de Julho, como exemplos
que esta vila devia seguir. E, perante eles, na Câmara, aonde
tinham acorrido muitas pessoas, «juraram em os Santos Evangelhos
em que puseram as mãos, de não conhecerem nem obedecerem a outro
rei algum, senão ao dito rei dom António nosso senhor e que
estavam prestes a morrer por seu serviço e defensão de seus
reinos...». Nessa mesma acta se refere também que, às aclamações
— Real, Real, Real, pelo
mais alto e mais poderoso rei D. António nosso senhor rei de
Portugal — responderam «todos em alta voz, com muita festa
e alvoroço e alegria... e se foram à Igreja maior (S. Miguel)
dar graças a Nosso Senhor por tamanha mercê e daí a S. Domingos
(8) ...» sempre com muito alvoroço «pelas ruas públicas.»
Curioso, porém, é que de certo modo colhidos de surpresa e sem
informações concretas da Duquesa de Aveiro (viúva, por morte do
marido em Alcácer-Quibir), salvaguardam a sua posição em relação
à vila, que em nada devia ser afectada com esta aclamação.
Já
entretanto as tropas espanholas haviam entrado em Portugal e D.
Catarina tinha reconhecido a realeza de Filipe II, vendida por bom
preço.
Nas
actas de Julho e Agosto da Câmara de Aveiro, são evidentes as
preocupações de reparação de muralhas, defesa da vila, vigilância
da barra, enquanto, mais uma vez, a peste avança para Norte,
semeando o pânico. Paulo Pinheiro, regressado das Cortes que então
se dissolveram, entrega na Câmara, a 16 de Agosto, uma carta do
rei D. António e outra da Duquesa de Aveiro.
4
— Depois de algumas escaramuças sem grande significado, a 25 de
Agosto, deu-se a batalha de Ponte de Alcântara, de graves consequências
para as falanges de D. António, tendo ele próprio ficado às
portas da morte e Lisboa nas mãos das tropas filipinas.
Assim
se compreende que, a 29 desse mês, o povo de Aveiro, julgando a
causa antoniana totalmente perdida e com ela a independência
nacional, se tenha reunido na Câmara, onde foi informado dos êxitos
filipinos. Em seguida, sem o entusiasmo popular que a acta da
Aclamação de D. António deixa transparecer, procedeu-se à
aclamação de Filipe II. E aquele, que vai recuperando a saúde,
escondido pelos amigos e pelo povo humilde, sai de Santarém e
Tomar a caminho de Coimbra, onde autorizou represálias sobre os
principais inimigos, que ali haviam feito a aclamação do rei católico.
Dirigiu-se, depois, a Montemor-o-Velho — uma das primeiras e
mais importantes vilas a dar voz por ele — onde foi recebido em
apoteose. Aqui passou os primeiros dias de Setembro a recompor-se
e a reorganizar os milhares de partidários que se lhe vieram
juntar e que mais eram uma multidão do que um exército. Parte
então para Aveiro, onde espera ser recebido em triunfo.
Porém,
tal não aconteceu! Tinham-se mudado os tempos, reforçado as
defesas. A vila recusou-se a recebê-lo, mantendo as portas
fechadas. D. António manda emissários seus, lembrando os
juramentos e promessas feitas em 4 de Julho, quando aqui fora
aclamado. A Câmara não cede.
Perante
esta situação, que resposta teria ele para dar a uma multidão
de cerca de 10 000 homens que esperava ser recebida em festa? O
desespero e o desejo de vingança dominam-no. E ele próprio que
diz: — «mandei meter a vila a saquo enforcar e fazer justiça
nos freiles e culpados»!
Não
foi difícil tomar a vila. As muralhas não eram propriamente as
de um baluarte, não havia nelas uma força militarizada para opor
a qualquer exército e tudo isto, fundamentalmente, porque a
maioria da população, sobretudo os sectores mais humildes,
apoiada pelo clero das várias ordens religiosas aqui instaladas,
era favorável à causa de D. António, não aderindo com
entusiasmo às decisões da Câmara, neste contexto. De resto,
bons nomes de ilustres famílias estão, nesta região, solidários
com o interesse nacional — (Lemos da Trofa, Rangeis Barretos,
etc.).
Foi
a 11 de Setembro!
O
luto semeou-se em geral pela vila, ao tempo das maiores de
Portugal. A soldadesca, incontrolada, faminta e raivosa, não
soube, em muitos casos, distinguir os verdadeiros culpados de
quantos lhe eram afectos. Aveiro ficou marcada por quinze dias de
ocupação selvagem, execuções e toda a sorte de crimes. E para
D. António, vencedor, dir-se-ia que tal vitória se tornou em
grande derrota. Muitos simpatizantes, chorando familiares e
haveres perdidos, tornaram-se indiferentes e inimigos,
interrogando-se sobre os destinos de Portugal, nas mãos dos seus
partidários! E ele, carecido de um bom exército e de dinheiro,
lança, daqui, apelos desesperados a alguns fiéis seguidores da
sua causa.
A
25, toma o caminho do Porto, onde entrou em 1 de Outubro,
praticando aí iguais actos de desagrado geral da população,
apesar de correntes na época.
Agravara-se,
entretanto, o estado de saúde de Filipe II. Correu mesmo a notícia
da sua morte. Perante tais informações, exaltou-se o ânimo dos
partidários da independência nacional. Mas, os levantamentos
populares anti-espanhóis, a notícia de que Coimbra se havia
inclinado para D. António e, sobretudo, o relato pormenorizado da
tomada de Aveiro, em condições dramáticas, levaram o Duque de
Alba a encetar a perseguição das tropas antonianas. Por isso,
Sancho de Ávila partiu, Norte acima, desbaratando, com
facilidade, as resistências que se lhe deparavam. Acabou por
ocupar o Porto, depois de quebrar a desordenada oposição,
impondo o seu rei, militarmente, enquanto D. António, vencido, se
refugiava, com o carinho do povo humilde, entre Barcelos e Viana.
Não
deixa, no entanto, de ser espantoso como, prometendo Filipe II tão
avultadas recompensas a quem lhe entregasse o seu opositor,
fizesse tão graves ameaças a quem lhe desse qualquer apoio e
mandasse proceder a rigorosas buscas, nunca tenha conseguido, num
país tão pequeno, apanhar o rei português. E mais! Este viveu
ainda cerca de um ano no Norte do País, deslocando-se também a
Aveiro, com a protecção de Duarte de Lemos, 5º Senhor da Trofa
do Vouga.
Só
então se retirou para a Europa, donde resistiu, durante 15 anos,
sem êxito... E foi deste modo que «se deu fim a esta tam triste
tragicomédia causada dos naturais, não lhes lembrando a obrigassão
do nome portugues e de sseus antepassados» (9).
5
— Restabelecido da peste que lhe roubara a mulher, Filipe II
entrou, finalmente, em Portugal, nos finais de 1580, cauteloso
quanto à situação política e quanto à epidemia que ainda se
manifestava em vários pontos do País, para reunir Cortes e
fazer-se aclamar rei de Portugal, pelos três Estados. Imensos
pedidos lhe foram feitos em pagamento de serviços prestados — o
que verdadeiramente o espantou! E as Cortes reuniram em Tomar nos
princípios de Abril, com os procuradores das cidades e vilas, os
quais, segundo o próprio rei mandava, não podiam ser «pessoas
alguma que nas alterações passadas seguisse Dom António, ou seu
partido, ou lhe tenha dado qualquer ajuda ou favor, ou que dele
tenha recebido qualquer dádiva ou graça, depois do levantamento
que fez em Santarém» (10).
O
rei católico foi aclamado sem qualquer dificuldade, passando a
satisfazer as petições — capítulos — dos procuradores.
Aveiro também lá tinha os seus representantes. Era preciso saber
jogar forte, já que a vila tinha sofrido como poucas e outras,
menos importantes, tinham recebido privilégios que de há muito
eram aqui desejados e merecidos. Por isso, num dos Capítulos que
ali apresentou, a vila pede «a vosa magestade que seja avida por
hua das notaveis pois tamto em lealdade como no serviço de vosa
magestade se mostrou tão comstante e os Reis antesessores de vosa
magestade se servirão senpre dela» (11).
E
o rei, lembrado dos sacrifícios com que a vila pagou a sua
lealdade e desejando cativar a simpatia dos habitantes bem como
estimular o seu crescimento, justifica a concessão do título,
por «ser luguar de grande povoação e trato e avendo outrosin
Respeito aos muito serviços que os moradores dela tem feito aos
Reis meus antesessores e aos que espero que ao diãote a mjm fação
e a meus susessores ha ser povoada de muitos fidalguos cavaleiros
e pessoas de nobre geração e de criação e cazas nobres... e de
criação dos Reis destes Rejnos hacompanhada de outro muito povo
e sercada de muros enobreçida de igreias mosteiros e de muitos
edeficios e cazas nobres e por comcorrerem na dita vila estas e
outras calidades per que bem merese e cabe nela a omra e a
preminencia que pedem...».
Realmente,
Aveiro devia ultrapassar, nesta época, as 14 000 almas, o que a
coloca entre os mais populosos centros do País (à parte Lisboa e
Porto), sendo curioso o facto de ser esta a primeira razão
apontada pelo rei, logo seguida do grande trato. Nas actas da Câmara
e em muitos documentos de então se pode confirmar a presença de
mercadores europeus no seu porto, como também a existência de
muitos aveirenses por todo o império marítimo e pelos mercados
internacionais. O número de embarcações devia ser elevado (12)
(mobilizadas quer por D. António, quer por Filipe II), como se
depreende da Acta de 9 de Abril de 1580, em que, por ordem dos
Governadores, «o Corregedor tinha já tomadas dez naus com toda a
sua gente e se lhe tomassem agora os de mais, seria grande opressão
para este povo e haveria grandes quebras nas rendas que todas
dependiam na navegação da terra Nova...» (13). Mas o peso dos
seus rendimentos assenta ainda no sal, no pescado e no vinho,
entre outros produtos.
Não
deixam, pois, de ser curiosas as primeiras razões apontadas por
Filipe II, quando em geral a concessão deste título se fazia por
algum serviço muito especial, pela sua antiguidade, por prémio
de nesse local viverem famílias nobres, pelas muitas igrejas e
conventos... Trata-se de uma política realista, mais que justa,
determinando que «daqui em diãote se posa chamar e chame notavel
e que os moradores dela guozem e huzem e posão guozar e huzar de
todas as graças omrras preminemcias e liberdades de que per
direito e pelas ordenaçois usamsas e custumes e foraes destes
Remos podem e devem guozar os moradores das vilas notaveis delles...
(feita) em tomar a treze dias de maio ano do nasimento de noso sñor
Jhü Cristo de mil quinhentos outenta e hü».
É
fundamentalmente com base nesta nova categoria — mercê de
Filipe II — que a vila e seus habitantes são autorizados a
gozar dos privilégios que já tinham a cidade de Coimbra, Porto,
Lisboa, renascendo das lágrimas causadas por D. António com a
tomada, saque e represálias, para novo capítulo da sua História.
E
que privilégios seriam esses? Imensos e bastante amplos para o
tempo. Por exemplo, no que toca à «liberdade dos cidadãos»,
apenas algumas das regalias que podiam ser usadas e gozadas, extraídas
da carta dada a Coimbra (14):
—
«não sejão metidos a tromentos por nenhüs maleficios...
não
posão ser presos per nenhüs crimes...» (os fidalgos)... posão
trazer e traguão por todos nosos Rejnos e senhorios quais a quãotas
Armas lhes prouver de noute e de dia...;
—
...«todos seus cazeiros amos mordomos e lavradores.., não sejão
comstrangidos para averen de servir em gerras nem en outras idas
per maar... nem lhes tomen suas cazas de moradas adegas nem
cavalarisas nem suas bestas...», etc.
Regalias
estas que tantas vezes foram invocadas em pleito, sobretudo até
ao liberalismo.
Os
representantes da vila passaram a sentar-se nos primeiros bancos
das Cortes. O prestígio da vila aumentou na viragem do século.
Na verdade, não foi a sua elevação à categoria de cidade, com
D. José, que lhe alterou as estruturas, pois, nesta época, aqui
se viviam horas de incerteza e de angústia, com a barra fechada e
a população reduzida a cerca de um terço. Aveiro tinha merecido
ser cidade no século XVI e pena foi que a falta de visão política
dos nossos reis lhe não tenha feito justiça!
Passam
agora quatrocentos anos sobre a elevação de Aveiro a «Vila notável».
A luta que os seus habitantes travaram e a grande vitória alcançada
não podem passar-se em silêncio. Seria indigno da nossa parte não
lembrar a memória e os infortúnios dos nossos avós — e nenhum
outro ficou mais caro a Aveiro!
O
13 de Maio de 1581, memória de quantos foram sacrificados por
amor à liberdade e à independência nacional, será também memória
daqueles que, por outro partido, vendidos ao rei estrangeiro,
alcançaram as maiores honras e privilégios. Todos eles estarão
presentes em 13 de Maio de 1981, no quarto centenário dessa
grande vitória de Aveiro, mesmo que conseguida repudiando a
independência lusitana!
AMARO
NEVES
NOTAS:
(1)
- Cardeal D. Henrique, in «Dic. Hist. Port.»,
Joel Serrão,
(2)
- Cortes de Almeirim, in »Dic. Hist. Port.».
(3)
- Vit. Magalhães Godinho, Ensaio II p. 259, Ed. Sá da Costa,
1968.
(4)
- J. Veríssimo Serrão, «Hist. de Portugal», III, p. 84-85.
(5)
- «Livro dos Acordos da Câmara de Aveiro» de 1580», F.
Ferreira Neves.
(6)
- Op. cit., pág. 20.
(7)
- Op. cit., pág. 73.
(8)
- Op. cit., pág. 78.
(9)
- Memorial de Pero Roiz Soares, in «Hist. Port. III», de J. Veríssimo
Serrão.
(10)
- Cortes de Tomar, in «Dic. Hist. Port.».
(11)
- Provisão delRei à vila de Aveiro, in «Col. Docs. Hist.» Câmara
de Aveiro, 1959.
(12)
- Os historiadores referem 100 navios de comércio e 50 caravelas
de pesca (por ex.: o comandante Rocha e Cunha, in «Relance da
História Económica de Aveiro», pág. 22).
(13)
- «Livro dos Acordos», pág. 64.
(14)
- «Col. Docs. Hist.» II, pág. 6.
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