Saiu
o terceiro número do Boletim da ADERAV. Por imperativo da Direcção
e exigência cultural, foi decidido que, dentro do possível, em
todos os números, figuraria um trabalho onde se fizesse a análise
de uma personalidade que, durante a vida, se tivesse imposto no
panorama cultural do distrito de Aveiro.
Três
números. Outros tantos trabalhos.
Coube
a vez agora ao concelho de Águeda.
Do
que conhecemos torna-se-nos difícil a escolha: um poeta? um
prosador? um político? um historiador?
Seria
bom que falássemos de todos, como seria de inteira justiça.
Talvez que, se a nossa “criança” continuar a crescer sã e
escorreita, chegue a vez a todos eles. Hoje, porém, vamos pelo
desconhecido, a fim de fazermos chegar à luz do dia não só o
homem que se distinguiu no campo da oratória, durante mais de três
décadas, como também recordar alguns factos que o elevaram acima
da vulgaridade do dia a dia.
O
P.e JOSÉ TAVARES CAMELO, figura de quem pouca gente (ou ninguém!)
se lembrará, foi um activo orador do distrito de Aveiro durante o
período após a Regeneração, se bem que demasiado
tradicionalista no campo das ideias. Talvez que a crise por que
passou a diocese de Aveiro, que conduziu à sua extinção em 30
de Setembro de 1881 pela bula
Gravissimum
Christi Ecclesiarum regenti et gubernandi munus,
do papa Leão
XIII, tivesse tido reflexos na formação cultural do seu
pensamento. Nascido em pleno Setembrismo, a sua formação
cultural toda ela é feita num período bastante agitado, tanto no
campo político como no campo social. Parece, no entanto, que se
manteve sempre ligado ao tradicionalismo monárquico. “Em política
— diz ele no seu sermão A
Reacção —, todo o homem está no direito de pensar como
quiser; e ainda até hoje se não decidiu de uma maneira peremptória
que governo convém melhor a uma nação. Montesquieu, com todos
os seus estudos, com todas as suas indagações, não pôde ainda
fazer do seu livro um código, onde se bebam doutrinas certas e
infalíveis.
Não
se carregue portanto de ultrajes um homem, só porque segue uma
política diversa; nem se lhe chame reaccionário, ligando a esta
palavra um mau sentido.
O
que mais me sensibiliza, porém, o que mais me revolta, é ouvir
chamar reaccionário a todos aqueles que professam certas opiniões
religiosas mais severas, e que não aprovam certas medidas do
governo actual a respeito da Igreja. Chama-se reaccionário, hoje,
a todo o padre que não presta ao governo uma obediência cega, e
não adora as decisões do Estado”.
O
mesmo sentimento vamos encontrar no Sermão
das Exéquias de D. Miguel, o maior de todos quantos fez, onde
ele faz uma exaltação da monarquia, embora seja um pouco
prudente na abordagem do infausto acontecimento: “prometendo-vos
circunscrever-me dentro dos limites que me prescrevem os deveres
da religião, cumpre declarar-vos que falando de um homem que
representou um papel importante na história contemporânea revele
afeição ou desafeição partidária ofenda melindres ou
susceptibilidades políticas, no meu discurso não apresentarei
ideia alguma, que ofenda opiniões ou convicções adversas a uma
causa decidida, e que o meu fim tudo é chamar as orações em
favor de quem só hoje precisa de perdão e caridade”.
Outros
pormenores de pensamento do Padre José Tavares Camelo poderíamos
apontar tal como o seu conceito de família, sociedade, Estado,
etc., mas não o vamos fazer neste momento.
A
sua obra, cento e poucos sermões, merece um estudo bem mais
profundo e até uma publicação integral. Estamos a pensar
seriamente nisso e já demos os primeiros passos nesse sentido.
Por ora, tão somente queremos alertar, de um modo geral, todas as
pessoas e, de um modo particular, os responsáveis autárquicos
pelo pelouro da cultura para a necessidade de salvaguardar estes
e, porventura, outros tantos exemplos iguais ao que temos entre as
mãos.
O
Padre José Tavares Camelo iniciou o seu munus oratório muito
cedo. O primeiro trabalho que temos datado é o Sermão
de Nossa Senhora das Preces, pregado na Póvoa do Valado,
povoação da freguesia do Requeixo, no dia 2 de Julho de 1860.
Tinha então nessa altura apenas 23 anos, dado que ele nasceu no
dia 14 de Julho de 1837, como reza o seu registo de nascimento:
“José, filho de Manuel Tavares Camelo, e de Ana de Jesus do
Lugar de Travassô. Neto paterno de Manuel Tavares Camelo e de
Maria de Oliveira desta freguesia, e materno de Manuel Laranjeiro
e de Rosa de Jesus do lugar de Frias, freguesia de Albergaria;
nasceu no dia 14 de Julho de 1837. Foram padrinhos o Padre
Domingos Tavares Camelo, e Francisca... Declaro que foi baptizado
em casa pelo Padre João da Silva Morais e no dia 23 do mesmo mês
veio à Igreja receber os Santos óleos, e mais cerimónias da
Santa Igreja. Para constar fiz este assento que assinei.
Testemunhas:
de Manuel Laranjeira uma cruz, e de José Francisco outra cruz. O
Pároco Domingos Francisco Marques” (Livro
dos Baptismos da Freguesia de Travassô, de 1807 a 1850, fl.
13) (1).
Teve
uma actividade intensa, sendo a sua presença frequentemente
solicitada para várias festividades do distrito de Aveiro. Num
estádio mais avançado do estudo da sua obra, talvez seja possível
reconstituir parte do seu itinerário oratório. Para já, sabemos
que ele pregou em Póvoa do Valado, Alquerubim (Sermão
de St.º António, em 11 de Junho de 1862), Oiã (sermão
pregado a 3 de Março de 1862), Pinheiro (Sermão
de S. Miguel, redigido no dia 19 de Setembro para ser pregado
no dia 5 de Outubro seguinte), Horta (Sermão
da Assunção de Nossa Senhora, pregado em 15 de Agosto de
1860) Travassô (Soledade, em
7 de Abril de 1868, S. Brás,
em 1 de Fevereiro de 1862, Sermão
do Natal, em Dezembro de 1863, Sermão
de S. Pedro, em 25 de Junho de 1862...) e Aveiro (Sermão
de S. Cecília, pregado em Aveiro no dia 20 de Novembro de
1864 e Sermão de Santa
Joana Princesa).
Morreu
no Lugar de Baixo (Travassô) aos oito dias do mês de Fevereiro
de 1895, pelas sete horas da manhã, apenas com cinquenta e oito
anos. Faleceu repentinamente e por isso não recebeu os
sacramentos dos enfermos, sendo sepultado no cemitério público
sem fazer qualquer testamento.
Hoje
poucas pessoas se recordarão dele. Com quem falámos apenas duas
o conheceram, a senhora Rosa do Adro e outra, ainda mais idosa,
que vive próximo da casa onde morou o Padre José Tavares Camelo.
Da sua lembrança só restam duas placas a assinalar uma rua com o
seu nome — R. do P.e Camelo — 1837 - 1895. Pouca coisa, para
quem tanto trabalhou!
Dos
cento e tantos sermões que escreveu, aqui deixo, em primeira mão,
o que ele proferiu em Aveiro na festa de Santa Joana Princesa:
“SANCTA
JOANNA PRINCEZA
Qui reliquerit
domum, vel frates, aut patrem aut matrem propter nome meum,
centuplum accipiet. S. Math. cap. 19-29.
Senhores.
Neste dia tão jubiloso, tão festival para os filhos de Aveiro,
neste dia de tradicional e doce recordação para esta ilustre
cidade, neste dia em que uma aurora de sorrisos parece vir dourar
todos os semblantes, neste dia finalmente, em que os corações
parecem pulsar em novas e mais gratas sensações, a festividade
de Santa Joana Princesa é um facto tão popular, tão incarnado
na esperança e ansiedade pública, é mesmo um facto tão
essencial na vida religiosa e moral do povo aveirense que seria o
mais triste, o mais lúgubre dos dias se as portas destes se não
abrissem, se aqueles altares se não iluminassem, se as luzes
daquele trono se não acendessem, e se nós, meus senhores, não
pudéssemos aqui entrar hoje para honrar e festejar o nome daquela
que é o mais glorioso padrão desta casa, daquela que aqui viveu
e morreu nestes claustros, daquela que também fez ouvir deste
coro suas vozes suavíssimas, daquela que também ali ajoelhou e
ali orou ao Deus das misericórdias, daquela enfim que, entregando
ao seu Deus o espírito iluminado dos esplendores da santidade,
aqui mesmo deixou ainda seu corpo que, não falando já, ainda
serve de defesa e salvaguarda eterna deste asilo sagrado, deste
asilo da piedade e da virtude.
Sem
dúvida, senhores, vós que ainda como eu amais alguma coisa do
passado, vós que ainda prezais as glórias não só da religião
mas também da prática, que sabeis respeitar o ascendente do mérito
e vos deixais arrebatar nas asas de um certo ideal, sentireis no
dia da Santa Princesa de Portugal emoções novas, gratíssimas,
porque neste dia vossos corações se põem em contacto com ela;
falam para ela, e lhe exprimem a devoção e o respeito entranhado
por ela, protestando-lhe que o seu nome não morrerá para vós
enquanto fordes cristãos e fordes portugueses, porque religião e
pátria são empenhadas em perpetuar-lhe o culto, em
reverenciar-lhe a memória.
E
é exactamente isto o que nós temos hoje consolação de ver e
testemunhar. Vemos e testemunhamos que a festividade da Santa
Joana Princesa é um facto essencialmente ligado ao brio e à
honra da cidade de Aveiro, e que entre seus filhos alguns há em
quem a piedade tornou-se activa e empreendedora, promoveu estes
festejos cujo esplendor ainda responde ao esplendor antigo, ao
esplendor de outras eras, a esse esplendor que deslumbrava pelo
aparato com que as grandezas da terra vinham honrar aquela que
também foi grande na terra e maior ainda foi ser no céu.
Ah!
Ao menos alegremo-nos com isto. Se já não ouvimos esses hinos
maviosos com que Joana era outrora glorificada por suas irmãs,
levantem-se os hinos entoados por aqueles a quem o nome da santa
portuguesa também é caro e simpático; e é justo que não
deixemos em olvido o dia outrora tão solenizado, tão festejado.
Mas,
Senhores, para o brilhantismo da presente solenidade tudo foi
perfeitamente disposto, tudo fala eloquentemente a linguagem da
vossa devoção e piedade ilustrada, tudo é digno da grandeza do
acto, menos o orador que, infelizmente, vem deslustrar-lhe o
brilho. Este púlpito que tem sido ilustrado pelas mais distintas
inteligências oratórias, que foi sempre a propriedade do
talento, fica hoje com os seus créditos perdidos, eu bem o sei.
Mas nem eu posso mais nem me foi dado tempo para mais. Chamado
aqui quase de improviso, tenho alguma razão para temer, mas ao
mesmo tempo direito à vossa indulgência e desculpa por não
satisfazer. Já nada se poderá dizer de novo, quando tantas
novidades daqui vos têm maravilhado; contudo anima-me a consoladora
esperança de que sereis benévolos para mim e perdoareis a
ousadia.
Também,
ilustre Virgem, vos devo pedir perdão a vós de vir falar de
vossas virtudes, eu o menos digno para isso. Bem sei que só o
anjo pode falar dignamente do anjo; mas vós auxiliar-me-eis para
que as minhas palavras possam significar os louvores que mereceis.
Senhores,
tenho pena de ficar tão pequeno no meio de tanta magnificência;
mas suprireis por vossa bondade o que falta à minha inteligência.
Senhoras...
Discurso
Senhores.
A grandeza é ordinariamente a causa da decadência. A opulência
das nações assim como dos indivíduos é, a maior parte das
vezes, o princípio da sua ruína, da sua morte precoce, porque,
abusando-se dessa opulência, cavou-se o abismo e caiu-se nele.
Portugal foi grande, foi glorioso enquanto foi pobre, enquanto,
como operário, precisou de trabalhar para viver; enquanto nossos
guerreiros precisavam sempre de dormir no campo de batalha para
defender-se dos inimigos, e enquanto precisávamos de afugentar
para longe esses inimigos. Bem se diz que as nações têm todas
uma missão providencial a exercer na sua vida política. Nascem
para executarem algum pensamento da Providência; executado esse
pensamento, finda a sua missão, e, como os indivíduos,
envelhecem e morrem. Portugal nasceu para ser o apóstolo
ocidental do Evangelho; e exerceu este apostolado com ardor e heroísmo.
Bateu o Corão desde o Mondego até ao Ourique, e desde Ourique até
Arzila e arvorou a cruz em Ceuta e Tânger, em Goa e Diu e foi
levar o nome de Cristo aonde não tinha podido penetrar a espada
de nenhum conquistador.
E
nesse tempo, Senhores, em que Portugal trabalhava na sua missão
evangelizadora, em que ele obedecia à inspiração da fé para
aumentar o império de Cristo, as bênçãos do céu não lhe
faltavam. Prodígios de graça choviam sobre os palácios dos
nossos reis e aí, ao abrigo da púrpura e do trono, nascia a
virtude, florescia a santidade, que era de tanto mais salutar
influência quanto de mais alto despedia seus luminosos raios.
Brilhava então a realeza com todo esse fulgor, que a fazia amar e
adorar pelos povos, e era feliz um povo que tinha tais reis, como
eram felizes os reis que tinham tal povo. E assim, Senhores, que
se costuma assinalar em seu berço uma nação destinada a altos
fins, O Eterno desce a beijá-la com o sopro da sua graça, e
inspirando-lhe as virtudes dos grandes heróis, faz os ínclitos
guerreiros que se imortalizam na tomada de Lisboa, na escalada de
Santarém e de Évora, na batalha do Salado, e faz os grandes
santos que honram e nobilitam a majestade, esses santos que se
chamam Teresa e Sancha, filhas de Sancho 1º. Fernando, filho de
João 1º., Isabel, esposa de D. Dinis, e Santa Joana, filha de
Afonso 5º.
Ah!
Sem dúvida, Senhores, a mais alta glória de um reino cristão
esplende na história de Portugal que nos mostra essas filhas de
reis renunciando às opulências da corte e trocando os arminhos
pelo hábito grosseiro e humilde, com que a esposa de Cristo se
adorna e prepara na terra para as núpcias dos céus. Joana foi
esse monumento de santidade que o século XV levantou para eterna
recordação da sua grande fé que ficará através de todas as
eras atestando ao mundo a grandeza e a glória de Portugal, que se
enobreceu não só pelas suas conquistas da espada mas também por
essas conquistas pacificas em que Joana é a mais ilustre heroína
combatendo o combate da fé, donde saiu coroada com a mais esplêndida
auréola.
Para
que, senhores, para que dizer-vos o dia, o mês e o ano em que a
gloriosa princesa nasceu, se tão bem o sabeis e se tantas vezes o
tendes já ouvido deste lugar? O dia 6 de Fevereiro de 1452 foi um
dia de regozijo nacional, porque nascia então uma herdeira do
trono, na qual reviviam as esperanças da perpetuidade da dinastia
Joanina. Todos os corações palpitaram então de uma nova
alegria, e todos saudaram com entusiasmo aquela que vinha ser uma
nova estrela a brilhar no horizonte da pátria.
Dizer-vos
que a educação de Joana foi digna da sua alta jerarquia,
dizer-vos que ela absorvia todos os afectos de seus pais,
dizer-vos que ela desabrochava bela ao sopro desta educação e
destes afectos como a flor mimosa ao sopro da brisa primaveril,
dizer-vos isto é tudo inútil porque a corte de nossos reis era
então o foco de grandes virtudes e que as nossas princesas e
infantas eram sempre escolhidas de preferência pelos reis
estrangeiros para suas esposas, para rainhas que iam reinar sobre
seu coração por esse ascendente que é o
característico e a glorificação da mulher, especialmente da
mulher portuguesa. A filha de Afonso 5º viu a Europa inteira a
render-lhe oculto e o cortejo devido ao mérito transcendente, e a
fama de sua formosura era igual à fama dos altos dotes do seu espírito,
admirando-se tantas virtudes, tantas perfeições cristãs em
idade tão infantil. Era o astro que ao nascer brilhava já com
todo o seu imenso fulgor, e que mais tarde, depois de ter
iluminado tão abundantemente os horizontes sociais, havia de ter
o seu ocaso neste convento, onde se lhe apagaram os últimos
raios.
Joana
foi pedida para fazer a felicidade de muitos e poderosos monarcas;
mas ela tinha lido aquelas palavras do Evangelho que diziam: —
aquele que deixar sua casa, seus irmãos, seu pai, sua mãe,
aquele que renunciar ao mundo e me seguir, receberá cento por um
e alcançará a vida eterna — qui reliquerit domi, vel fratres, aut patrem, centuplum accipiet et vitam aeternam possidebit. Estas
palavras, ela as soletrava, as sabia, as meditava a cada instante,
e ao lê-las sentia que o seu coração se lhe abrasava em um fogo
misterioso e que uma inspiração sublime a chamava para longe de
todo esse ruído que restruge em volta dos tronos das majestades
da terra, Viu que, debaixo da púrpura da realeza se aninha muitas
vezes, os maiores perigos para a virtude e para a inocência; viu
que em volta do sólio gira quase sempre uma atmosfera de
intrigas, de perfídias, porque é aí que vão cruzar-se e
debater-se as ambições de todos os parasitas, de todos os
sicofantes, de todos os que comem e não trabalham, de todos os
que consomem e não produzem. Para fugir a todos esses perigos que
podiam comprometer-lhe a sua inocência para escapar-se ao
contacto dessa atmosfera viciada que podia crestar-lhe a flor de
sua alma cândida, a virtuosa princesa olha um dia com desprezo
para todo esse fausto que a rodela, e diz ao Pai que a estremecia:
senhor, se como filha ouço a voz da natureza a dizer-me que
esteja, que viva junto de vós, como cristã, como filha do
Evangelho, sinto a inspiração que me chama a separar-me do mundo
pelo véu do templo: não que o meu coração deixe de abrigar
todo esse amor que me merece um pai; mas há uma força em mim que
me arrebata de vossos braços, força irresistível, força que me
vem do céu, e à qual, senhor, eu vos peço vos dignais ceder,
porque resistir a ele seria resistir ao próprio Deus que me fala
e me oferece as mais inefáveis delícias na solidão do claustro.
Suspiro de há muito por estas delícias, vós, senhor, não
querereis ser inimigo de vossa filha obstando-lhe à sua
felicidade, Deixai-me, Senhor, deixai-me cingir a coroa da
virgindade, coroa para mim mais gloriosa do que todas as coroas
que podeis oferecer-me, e eu, feliz da mais alta felicidade,
chamarei por vós as bênçãos do céu, e o Deus a quem me
deixais consagrar-me, derramará sobre vás o orvalho da sua
protecção fazendo glorioso o vosso reinado.
Afonso
V treme ao ouvir esta linguagem de uma filha idolatrada. Um abismo
parece separá-los neste momento; era a graça em luta com a
natureza. O choque foi violento para um coração de pai; mas em
fim triunfou a graça, e a santa princesa tem licença régia para
entrar no convento dominico de Aveiro que ela agora vem ilustrar,
vem abrilhantar, e donde faz jorrar todas essas torrentes de luz
que lhe dourou todo o céu da existência. Ah! É o anjo que entra
no seu império, e vem com os Outros anjos cantar as glórias do
Altíssimo. As pompas, o luxo, a sumptuosidade, em que fora
embalada no berço, tudo lhe ficou lá de fora, e aqui ela vem
ostentar só o brilho da sua candura, da sua humildade e mansidão
cristã, vem resplandecer com esse fulgor da virtude obscura, da
virtude que só tem a Deus por testemunha e pede para ser ignorada
pelos homens.
Ah!
Se as paredes e os tectos destes claustros falassem, o que nos
diriam do que foi a vida da ilustre e gloriosa princesa! Quantas
vezes ela, de noite prostrada diante do seu crucifixo, mandava ao
céu esses suspiros da oração, em que pedia pelo infeliz, pelo
desgraçado! Quantas lágrimas ela daqui enxugava ao aflito e ao
desvalido, mandando-lhe secretamente a esmola da caridade! Quantas
vezes ela, descendo do alto pedestal do seu nascimento se fazia a
mais humilde serva de suas companheiras e irmãs, confundindo-as
com incríveis rasgos de afecto e dedicação?
Sem
dúvida, Senhores, Joana não foi só uma santa, foi um prodígio
de santidade; foi, se assim se pode dizer, o heroísmo da
santidade. O céu pareceu formar nela o ramalhete composto de
todas as flores, das flores de todas as virtudes. A doçura de
anjo, a ternura do arcanjo, a meiga suavidade do querubim, o
encanto do serafim; tudo nela estava incarnada, tudo nela tinha a
mais brilhante personificação. Por isso ela ficou como padrão
morredouro para o povo que ela tanto amou, sobre quem ela derramou
tantas torrentes de benefícios Aveiro foi a terra que ela
escolheu para lhe legar a honra e a riqueza do seu nome. Aqui ela
deixou a fama de suas virtudes na vida e as suas relíquias depois
da morte; e quando esta cidade não possuísse outros títulos de
glória se não o de ser depositária do corpo de uma princesa e
de uma santa, este seria bastante para ela se ufanar muito, por
muito prezar tão grande honra.
Ah!
Sem dúvida, Senhores, a memória dos grandes vultos, das grandes
personagens que passaram no meio de um povo, faz parte da vida
desse povo, reflecte eternamente sobre ele raios de glória,
constitui a sua riqueza mais apreciável, e nós saudamos, nós
cortejamos instintivamente esses nomes que representam e
simbolizam nossa grandeza, nossa glória. Sendo assim, o nome da
Santa Princesa não pode esquecer ao povo aveirense sem grande
vergonha, sem grande desonra para ele. Comemorar solenemente o dia
em que esta ilustre santa, tendo rejeitado as coroas da realeza da
terra, foi receber a coroa da realeza do céu, comemorar
religiosamente o dia da sua morte, o dia em que ela lançou sobre
esta cidade o último olhar de saudade, é um dever sagrado para
aqueles a quem ela fez herdeiros do legado precioso do seu nome, e
pelos quais ela não cessa de pedir na eternidade.
Ah!
Bem doloroso nos é sem dúvida recordar o que foi outrora este
convento, venerando pelas virtudes que abrigou, e especialmente
venerando por ter a morada de uma santa de tão alta nobreza, —
doloroso nos é recordar o que ele foi e ver o que ele é hoje.
Mas se o fogo sagrado das vestais cristãs se apagou já ou está
quase a extinguir-se diante dos altares de Deus vivo, se os
louvores da imortalidade já são entoados pelas vozes daquelas
que dali faziam jorrar ondas de deliciosa harmonia, venha a
piedade pública, a piedade de um povo essencialmente religioso e
cristão, alimentar e perpetuar este fogo, entoar esses louvores
de que é digna a santa portuguesa e a santa de Aveiro. É esta
uma dívida sagrada que tendes a pagar-lhe; porque se ela foi o
mais ilustre brasão desta terra, bem vos merece o culto afectuoso
de filhos dedicados, de cristãos para quem o seu nome é a mais
alta honra.
Eu
me alegro pois ainda convosco neste dia, que é um dia de júbilo
é de regozijo público, e hoje aqui prostrados diante do altar da
santa, far-lhe-ei um protesto de que, de ano a ano, vireis aqui
saudá-la, de que lhe conservareis o esplendor do culto com que
ela foi sempre honrada por vossos pais, para que ela em recompensa
da vossa piedade vos mande as suas bênçãos do céu”.
____________________________
(1) O presente documento encontra-se no
Arquivo do Registo Civil de Águeda.
|