1.
Introdução
Nasceu
este nosso trabalho, parte de outro de maior dimensão,
do desejo de tornarmos mais conhecida a história do
concelho de Águeda e, ao mesmo tempo, de salvarmos o
pouco que ainda existe daquilo que outrora deveria ter
sido, segundo cremos, um riquíssimo arquivo
municipal.
É
certo que outros historiadores, sem dúvida mais dotados
e mais fluentes, trouxeram já a lume e em letra de
forma alguns estudos de real valia sobre a história
deste concelho pouco mais que centenário. O seu acesso
às fontes documentais e a outras que dispuseram foi bem
melhor e mais fácil do que o nosso. Por isso foi pena
que não tivessem feito uma obra de maior fôlego, dado
que, pelo que nos é dado saber, talento não lhes
faltava. Todavia, o mesmo já não poderemos dizer
quanto ao seu método de trabalho e rigor científico de
alguns deles. Salvaram, no entanto, muita ria tradição
oral que, de outro modo, ter-se-ia perdido para sempre.
Grande
parte da documentação utilizada não ,nos é indicada,
desconhecendo-se o local da sua origem. E o mais grave
ainda é que alguma dessa documentação foi retirada
dos seus locais habituais para arquivos particulares de
alguns deles donde, segundo cremos, jamais voltou,
privando-nos, assim, neste momento, da sua preciosa
utilização. São os casos, por exemplo, para não
citarmos outros, do Tombo da Misericórdia de Águeda,
de alguns livros de actas de alguns concelhos extintos e
que agora fazem parte do de Águeda, de um volume do
Tombo da Casa de Aveiro, etc. (1).
Esperamos,
no entanto, que este mal, para bem do concelho de Águeda
e da cultura nacional, possa ser debelado, pois que se
trata de uma riqueza que pertence
ao património cultural colectivo de todos nós.
A História
Contemporânea tem-se preocupado muito pelo estudo da
história local, cabouco essencial para um melhor
conhecimento de qualquer história nacional. Assim
o afirma, entre outros, LUCIEN FEBVRE, nestes termos: «Je
n’ai jamais su pour ma part et je ne sais toujours q'
un moyen, un seul, de bíen comprendre, de bien situer
la grande histoire. Et c’est d’abord de posséder à
fond, dans tout son développement, l’histoire d’une
région, d’une province...!» (2)
E o
que se tem feito neste campo entre nós? Pouco, do muito
que ainda está por fazer.
Aqui
deixamos o nosso pequeno contributo, baseados num
manuscrito ainda inédito que, por acaso, encontrámos
entre um amontoado de papéis no Arquivo Municipal de Águeda.
2.
Organização da guarda municipal
Criada
num momento particularmente difícil — Portugal saído
da revolução liberal de 1820, era um vulcão de lava
sangrenta, consequência imediata de ferozes lutas
intestinas e, simultaneamente, um enorme palco onde se
digladiavam portugueses contra portugueses, absolutistas
contra liberais, irmãos contra irmãos —, os responsáveis
pelo progresso e segurança de todos os filhos da
ridente vila de Águeda bem cedo se preocuparam com o
ataque ao banditismo a que se dedicavam, a coberto da
noite e da confusão política nacional, muitas pessoas
sem escrúpulos, norteados apenas pela moral do seu
bem-estar à custa de qualquer preço.
O
banditismo provinciano era, na verdade, uma prática
constante, largamente ilustrada por grande parte da
nossa literatura erudita do século XIX, bem como por
toda uma tradição oral popular onde a temática do
roubo e de toda a casta de crimes é quase sempre apresentada
de um modo aterrador. «As quadrilhas de Midões, diz
Oliveira Martins, assolavam toda a Beira. Arganil, Avô,
Cola, Folques, Góis, Vilacova foram positivamente
saqueadas, levando os bandidos o despojo em comboios de
carros» (3) Da mesma opinião é Fortunato de Almeida
ao afirmar que «nas províncias apareciam por toda a
parte guerrilhas que por vezes se acobertavam sob
pretextos políticos, mas que eram verdadeiras
quadrilhas de salteadores, ladrões e assassinos e que
«não havia serviços regulares de polícia, e os
magistrados encarregados de perseguir e punir os malfeitores
eram como eles em muitos casos».
Não
podemos também esquecer a muita literatura de cordel,
igualmente de raiz profundamente popular, divulgada nas
feiras e arraiais por aedos de ocasião. Por ela
perpassa toda uma série de histórias sentimentais e de
«bandos de salteadores sem lei e sem moral, que
dominavam as populações rurais pelo terror para
satisfazerem os baixos instintos da vingança e da
cobiça, não raro com a conivência das autoridades,
por cobardia ou por lhes caber parte dos roubos».
Não
foi por acaso que a Guarda Real da Polícia, criada em
1801, foi substituída, em 1834, pela guarda municipal,
com vista a uma melhor eficiência da manutenção da
ordem pública, à semelhança do que já se passava em
várias capitais de muitos países da Europa. Era
destinada a proteger, tanto quanto possível, as pessoas
e a propriedade dos habitantes do município e a
executar as decisões da autoridade. Na verdade, após a
vitória liberal «as perseguições, os assaltos por
bandos armados tinham pelo menos um pretexto político,
de represálias, muitas vezes dirigidas por pessoas
constituídas em autoridade». A este estado de coisas
se refere Manuel Gonçalves Costa, nestes termos: «Foi
o caso, por exemplo, de alguns cabos de polícia, como
Jerónimo de Basto, que em Alvelos não só vexava os
colegas exigindo presentes para os não castigar, mas,
sob pretexto de devassa, entrava nas casas, confiscava o
que lhe parecia, em seu proveito, espancando os que se
opunham à sua cobiça» (4). E logo acrescenta que «em
Janeiro de 1848, a Câmara achou necessário mandar
patrulhar as ruas, sobretudo nas noites de inverno, para
acabar com a reunião de indivíduos de má nota, a
divagação de desconhecidos e evitar os roubos que se
iam tornando frequentes».
Esta
mesma insegurança se vivia, com toda a certeza, na vila
de Águeda por esta altura. Num ofício enviado pelo
Administrador do Conselho ao Juiz de Direito diz-se que
«por participaçam feita verbalmente pelo sold.º n.º
26 do Destacamento da G. de Segurança, estacionada
nesta vila, José António de Almeida, q. na noite do
dia d’ontem 29 do corre das 10 as 11 horas occorrêra
hum arruido na rua de S. Bento d’esta mma vila junto
às casas de Manoel Rois Curto, aonde o dito soldado
accudira, como era do seu devêr; porem p. qdo chegára
já estava dissolvido aquelle arruido, e só encontrára
o dr. Manoel Rois Curto estirado no chão e
de barriga pra baixo, escorrendo em sangue e sua mulher
ao pé, chorando e gritando por soccorro; e então,
levantando-o, observou q. tinha 3 ferimtos na cabeça, e
hum por cima do ôlho direito. E mandando eu examinar
pelo mmo soldado da partipação, e perguntar ao ferido
como o cazo tinha acontecido, e de quem se queixava
trouxe em resposta q. estando o ferido dentro de casa,
altercando com sua mulher, houvirão vozes da parte de fóra,
dizendo: q. pouca vergonha hé essa? está sempre a batêr
na mulher! Ao que o mmo ferido respondêra q. nada lhes
im portasse com isso; e q. tornando os de fóra q.
viesse pra baixo, elle então descêo, e logo cahirão 4
cajados sobre elle, de cujas pancádas resultárão os
ferimtõs e q. .mmo ferido dissera, q. seu creado cujo
nome declarára a elle ferido q. hum filho de Maráo dísséra
.q. batessem pra baixo» (5).
Não
deixa de ser curioso este incidente, bem como o modo
como ele nos é contado. E o caso é tanto mais estranho
quanto é certo que o mesmo ocorreu contra o cabo da polícia
Manuel Rodrigues Curto, nomeado em 1834. Ser polícia
era sinónimo de possuidor de determinadas qualidades.
Na verdade, eles eram «escolhidos entre os chefes de
família mais bem morigerados, prudentes e animosos».
Todas estas qualidades eram necessárias porque «num
certo número de casos o seu único depoimento» podia
«ser base de acusação contra qualquer indivíduo».
«A monarquia, diz J. Félix Henriques Nogueira, fez da
guarda municipal, ao contrário do que o íntegro
republicano preconizava, a perseguidora insaciável do
povo, sempre pronta a acutilá-lo e esmagá-lo debaixo
das patas dos seus cavalos. Também a guarda municipal,
em vez de ser uma corporação meramente municipal,
era um corpo militar absolutamente dependente do ministério
do reino, que dela só se servia para impor todos os
atropelos que infligisse às regalias populares. Deste
facto resultou a invencível aversão que o povo lhe
votou» (6). Talvez que o incidente passado na velha
rua de S. Bento se devesse à falta de integridade de
Manuel Rodrigues Curto.
Exemplos
como este, e até mais graves, poderíamos citar (7). A
insegurança devia ser, na realidade, muito grande,
sobretudo se nos lembrarmos que a iluminação pública
era, em geral, muito deficiente. Se, de facto, ela
existia aqui, não devia ir além de toscos lampiões de
petróleo ou de azeite (8), dado que a luz eléctrica só
cá chegou muito mais tarde, como podemos verificar
pelo documento que se segue e onde se relata o primeiro
passo concreto dado pela Câmara nesse sentido:
«Ex.mo
Snr. Presidente da Junta de Freguezia de Águeda.
Para
os devidos efeitos, communico à Junta de Freguezia, de
que V. Ex.ª é digno presidente, que, em sua sessão
plenária extraordinária do dia 5 do corrente mez de
Julho, deliberou, por unanimidade de votos, a Camara
Municipal deste concelho, sob proposta da sua Comissão
Executiva, contrair na Caixa Geral de Depósitos, um
empréstimo até à quantia de 120 000$00, para ocorrer
às despesas com a montagem, instalações e
fornecimento de luz eléctrica nesta villa, — empréstimo
que vencerá ao juro de 7% ao ano e será amortizado no
prazo de 15 anos e em 15 unidades iguais.
Saude
e Fraternidade.
O
Vice-Presidente da Comissão Executiva
Albano
Pereira dos Santos» (9).
Um
autor do século passado, coevo dos acontecimentos que
estamos a analisar, Pinho Leal, afirma também, como que
corroborando a nossa tese, que os povos rurais do seu
tempo não tinham quais quer meios de defesa. apesar
de muito cedo, em Maio de 1835, o Governo ter avisado as
autoridades para intensificarem e luta contra as
quadrilhas armadas que infestavam a província,
assaltavam caminhos e casas, roubando e matando. Desse
estado de insegurança, se bem que seja um pouco
anterior à época que estamos a estudar, se faz eco
no Livro de Registo de Leis e Provizões de Recardães,
de 1797, onde se encontra tresladada uma ordem do Juizo
da Correição de Aveiro para serem presos os
salteadores que atacaram Dionizio António Vernei, Juiz
da Balança da Casa da índia. Tal ordem é do seguinte
teor: «Em consequência da Sua Carta da Data de / vinte
e seis de Julho, que Vossa mercê me dirigio, vera /
Vossa mercê pela Copea inclusa que fis expedir / as Ordens
neçessarias, para ser preza a Quadri / lha de Ladroens
que Vossa mercê notava na dita sua carta, e como nos
referidos Avizos que fiz expe / dir aos Corregedores
das Provinçias do Norte, no / tava a todos que Vossa
merçê lhe havia reme / ter os Sinais dos Saltiadores
e circunstançias do rou / bo por huma Nota, por isso
partecipo a Vossa mer / çê o refferido para sua
inteligencia, e fazer executar pela parte que lhe toca.
Deos Goarde a Vossa merçê. Lisboa treze de Agosto de
mil outo Centos e seis. / Lucas de Siabra da Silva.
Senhor Corregedor da Comarca d’Aveiro: Sahindo da
Cidade do Porto para os lados do Ge / rêz Dionizio
Antonio Vernei, Juiz da Balança da Caza / da índia,
nesta Corte no dia vinte e hum do corrente / foi
atacado e Roubado por huma Quadrilha de seis La / drões
armados pelas nove horas da manhãa em mente / distançia
de três Legoas e meia adiante do Porto na / Estrada que
vai para Braga, a importançia do / Roubo he de sinco
mil Cruzados, incluindo tre / zentas moedas que Levava
em dinheiro den / tro de huma carteira com outras pessas
de Val / lor igualmente huns papeis de ponderação per
/ tencentes a Caza do Sobredito Vernei, expeça Vos / sa
mercê Logo as Ordens mais activas e effica / zes a
todos os Destritos da Jurisdição afim / de serem
prezos os sobreditos Ladrões, e apre / hendido o
Roubo para estas deLigençias se / rem efectivamente
executadas Ordenara Vos / sa mercê aos Magistrados da
sua Câmara / que requeirão o auxilio de Tropa de
Linha, ou / Meleçianna que julgarem serem digo julgarem
ser neçessario, e depois de prezos com se / gurança
na Cadeia mais proxima do Jogar em / que forem incontrados,
sendo segura, aleas / na Cabeça de Comarca; me dera
Vossa mer / çê Conta com os Autos da Apprehen / são
do que lhes achar, do Rezultado desta delí / gençias
que muito lhe recomento, O Desembar / gador Provedor
da Comarca d’Aveiro hade reme / ter a Vossa mercê os
sinais dos ditos saltiadores / e Nota das circunstançias
do Roubo para sua / Instrução. Não posso deixar de
notar a inação das / Justiças da Comarca pela falta
de Observançia / das Leis da Poliçia, e Ordens desta
Intendençia / a que da cauza não só ao facto aSima
referi / do, mas as reprezentações de deversos
Povos, em / temor por verem de contínuo as estradas
assal / tadas de semelhantes Ladrões em ranchos
armados transitando a seu Sal / vo sem haver quem lhe
pergunte por Passa portes. Portanto / faça Vossa mercê
pôr na mais activa execussão / as referidas Leys,
Ordens desta lntendençia (10) Deos Goarde a Vossa mercê.
Lisboa trinta e hum d' / Julho de mil outo Centos e
seis. Lucas de Siabra / da Silva. A todos os
Corregedores das Comarcas do / Norte. Secretaria da Poliçia
seis de Agosto de / mil outo Centos e seis. Manuel
Justino da / Cunha. Sinais: foi feito o furto pelas nove
ho / ras da manhãa, do dia vinte e hum de Julho do /
prezente anno, na Estrada que vai do Porto a / Braga,
entre dous pinhais aonde chamão a / Serra de Passa Mar
na legoa que vai da Carissa / para Barca da Trofa que
dista do Porto per / to de Coatro Legoas e meia afastado
do / dito Logar da Carissa, em que foi atacado e /
roubado o dito Dionizio Antonio Vernei pelos La /!
(fl. 209) drões, e seltiadores de cujos sinais são os
/ seguintes: Hum delles que se reputava o che / fe da
Quadrilha, e que vinha com um bacamarte / era Espanhol
não pelo que inculcava na sua figu / ra, e atavio, mas
pela sua fala. Este era gro / ço de Estatura mais
medianna, claro, corado, e / bexigozo, ruivo de cabello
e com belezas na cara, tinha coi / fa preta e chapeo,
vestido de calssas e jaqueta azei / tonada, meias,
botas e notado Limpo, tendo Olhos / avermelhados, por
natureza, ou por molestia. Outro deI / les era mais
alto, nada magro com iguais botinas, cal / ças e
jaqueta de bombazina esverdeada, chapeo redondo /
trigueiro de rosto e barbudo, cara cumprida, e de feiçõens
/ regulares. Outro era baixo e magro, a ponto de ter /
covas no rosto, muito tregeuiro, e segundo recordo
tinha / Cazaca preta com muito uzo, tambem de meias
botas /, e igualmente chapeo redondo. Os mais todos erão
me / nos remarcaveis de figuras / Vulgares, porem nenhum
era rotto, nem remendado, / mostrando não serem
mendigos, mas sim de Ordem / Superior, qual a de
Contrabandistas, os quais constaçe / que no dito dia os
virão por Moreira citio que / fica na Estrada da Villa
do Conde e Barçellos. / Agueda / em correição nove
de Setembro de mil outo centos e / seis. Brandão» (11)
|
Devia
ser este, aliás, o quadro da criminalidade do
nosso País, embora Adolfo Portela, apenas
apoiado, segundo pensamos, no Estudo Estatístico
da Criminalidade em Portugal, nos apresente para o
concelho de Águeda, relativamente ao penúltimo
lustro do século XIX, ainda que sem optimismos
exagerados, uma imagem bem diferente, como se pode
verificar pela seguinte passagem: «Ah! Se estes
números (155 réus condenados durante cinco anos)
pudessem corresponder exactamente à verdade dos
factos, como o quadro seria de molde para nos
aliviar e exaltar a alma no que ela tem de mais
sagrado! Se a moral pública — o civismo, a
honra, a dignidade dum povo — pudesse ser
apreciada em algarismos, a estatística criminal
da nossa comarca seria um documento de honra dos
mais excelentes!» (12). |
Nem
tão pouco os crimes vulgares que o mesmo autor apresenta
para os réus da nossa comarca — ferimentos e ofensas
corporais, furtos e subtracções — nos parecem poder
corresponder à verdade quando confrontados com outras
fontes de informação que certamente desconheceu. No
seu relatório apresentado à Junta Geral do Distrito de
Aveiro, Antero Albano da Silveira Pinto, governador
do mesmo, afirma, falando na sessão ordinária de 20 de
Julho de 1855, «que a despeito das mais enérgicas
providências adoptadas para a prevenção e repressão
dos crimes, nem por isso é lisonjeiro o mapa estatístico
criminal deste Distrito, relativo aos doze meses de
Julho de 1854 deste ano... Dele vereis, que, se o número
de crimes de menor gravidade é diminuto em relação à
população do Distrito, não acontece assim em quanto
a outros crimes de maior consideração, dos quais,
infelizmente, muitos têm tido lugar neste Distrito»
(13). E para esta situação aponta factores que
condena vigorosamente: «Nem pode deixar de assim
acontecer enquanto a impunidade dos criminosos for,
para assim dizer, garantida pela actual organização do
Júri, que admite a este cargo a mais crassa ignorância,
excluindo a ilustração e independência, e pelos
muitos requisitos que a lei exige para a validade dos
processos. (...) Juizes, muitos se encontram felizmente,
por ilustração, probidade, e independência, pela
circunstância de não serem naturais das terras, em que
julgam, e em fim pelo brio e pundonor da sua profissão
e classe, merecem a confiança da Sociedade; creio que
todos; raríssima será a excepção, se a houver, que
em todo o caso nada prova contra a instituição: mas o
Júri que mereça a confiança pública, convireis,
Senhores que é muito raro.
Por
tais motivos não é possível, que as autoridades
locais, que têm quase a certeza de verem, passado
algum tempo, regressar os réus a suas casas, que têm
de viver junto deles, e que não podem andar constantemente
no centro duma escolta, que haja de defendê-los da
vingança dos criminosos por eles perseguidos; não é
possível, digo, que tais autoridades e os demais
funcionários administrativos deixem de afrouxar nas
diligências para a apreensão e punição dos
criminosos» (14).
Que
isto era verdade, pelo menos num ou noutro caso, temos
a comprová-lo o assassinato da Fontinha ocorrido em
10 de Novembro de 1839, cujo julgamento foi largamente
contestado pelo povo, facto que levou a rainha D. Maria
II a ordenar um inquérito à Justiça do Vouga. «Constando
— diz-se numa ordem sua sobre tomadas de providências
relativamente ao assassínio do Vouga — que no dia 10
de Novembro último fora assassinado um indivíduo da
Freguesia de Requeixo no Lugar da Fontinha, Freguesia de
Segadães, Concelho do Vouga, Comarca d’Águeda; e que
o assassino, sendo preso pelo Povo, fora no dia seguinte
solto com fiança pela Justiça de Vouga; sem que até
agora o Juiz de Direito do Círculo, tenha tomado
conhecimento do facto, nem inquirido uma só pessoa;
Mande a Rainha, pela Secretaria de Estado dos Negócios
Eclesiásticos e de Justiça, que o Conselheiro
Presidente da Relação do Porto, dando logo depois as
providências para que a Lei se execute nos pontos de
que se trata, informe com o seu parecer, ouvindo por
escrito assim a Autoridade Judicial que neste caso
soltou o réu com fiança, como o Juiz de Distrito
Substituto que deve responder as faltas de que é
arguido» (15).
Se era
certo que nas ruas de Lisboa não se andava de noite com
bastante segurança, facto que levou D. Luís da Cunha a
aconselhar ao futuro rei de Portugal, D. José I, a
mandar iluminá-las com lanternas, «porque a
obscuridade da noute facilita os roubos, as mortes e
outros crimes. (16), semelhante situação devia
passar-se também em Águeda, passadoiro constante de
soldados foragidos ao serviço militar e de exércitos
em movimento que aqui vinham frequentemente aboletar-se
(17). Foi certamente para evitar toda esta situação e
para proteger o mais comum dos cidadãos que a primeira
vereação da Câmara de Águeda, logo na sua sessão
inaugural organizou de imediato a polícia municipal. A
vila ficou dividida em dez esquadras como consta da acta
da sessão de 25 de Outubro de 1834, na qual se escreve:
«1.ª
Esquadra — Venda Nova, até às casas de Je Leonardo,
e Luís Henriques inclusive! — Jose Iqnacio; Jose
Antonio de Carvalho.
2.ª
Esquadra — Adro, Nichos do Pe, Outeiro da Igreja,
Fonte, até ao Padrão — Francº Ribeiro
Guerra, e Henriques Duarte da Sª.
3.ª
Esquadra — Rua da Ponte, e Barril até ao Cruzeiro —
Antonio d’Azevedo, e Jose Maria AIves.
4.ª
Esquadra — Rua de S. Bento ate S. Sebastião — Rois
Curto; e Jose Rodrigues Samico.
5.ª
Esquadra — Rua de Baixo, e Cancela — Antº Joaquim
Ferrª Res, e Mel da Fonseca Coelho.
6.ª
Esquadra — Rua da Capela, e S. Pedro — Jose
Fernandes Barbeiro, e Joaquim d’Almeida Chana.
7.ª
Esquadra — Paredes — Jose Simoens Delgado, e Antonio
Corticada.
8.ª
Esquadra — Sardão —Luiz Franc.0 Ferr.ª
— Jose da Silva Coelho — Jose Francº
Castanheira.
9.ª
Esquadra — Assequins — Jose Ferreira da Costa —
Antonio d’Almeida.
10.ª
Esquadra — Borralha — Cabo em chefe, Jose Alves
d’Oliveira Novo. Cabos: Manoel Fernandes, Jose Perª
d’Aguieira (soltº), Bento Fernandes, Joaquim
Ferreira do Avelal, Caetano Jose de Oliveira» (18)
Esta
medida, seguida de outras, tomada nesta mesma sessão,
é tanto relevante quanto é certo que as mesmas foram
deliberadas passados apenas dois escassos dias após a
sua posse, facto que ocorreu em 23 de Outubro de 1834.
____________________________
NOTAS
E BIBLIOGRAFIA
(1) —
Veja-se ainda nota 2 do trabalho publicado sobre Águeda
pelo Conde da Borralha no Arquivo do Distrito de
Aveiro, Vol. II
p. 31.
(2)
— Lucien Febvre. Autour d’une Bibliothèque (Pages
offertes à M. Charles Oursel, Dijon, 1942), citado
por P. LeuiIIiot in L’Histoire Locale. Problèmnes de
Ia Recherche: V. — Défense et Illustration de
I’Histoire Locale.
(3) —
Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, p. 47.
(4) —
Manuel Gonçalves da Costa, Lutas Liberais e Miguelistas
em Lamego. Lamego, 1947, p. 185. Veja-se ainda Oliveira
Martins, op. cit., p. 45: «Guerrilhas armadas levavam
de assalto as casas do miguelista vencido, roubando,
matando, dispersando as famílias. (...) Na Beira
houve exemplos de uma habilidade feroz singular. Matava-se
a família, deixando a vida apenas ao chefe, em troca
de um testamento a favor de alguém. Dias depois o
pobre aparecia morto e enriquecia-se desse modo».
(5) —
Arquivo da Câmara Municipal de Águeda. Correspondência
em Geral (Março a Agosto de 1842), of.º n.º 332.
(6) —
J. Félix Henriques Nogueira, O Município no século
XIX, in Cadernos Municipais 3 — Ano 2 — N.º 3
— Janeiro de 1979, p. 49.
(7) —
Da Correspondência..., citada na nota 5, extraímos o
seguinte: «Envio a V. Sª a inclusa Participação q.
acabo de receber do Regedor de Parochia de Espinhal
acerca dos graves ferimtos perpretados com arma de fogo
na pessoa de João Luiz da Silva, do logar de Paradella,
ás 8 horas do dia 11 do corre.
(8) —
Temos sérias dúvidas que Águeda já tivesse nesta
altura qualquer forma de iluminação pública dado
que, por exemplo, em Aveiro, só em 1844 foi inaugurada
a iluminação com lampiões de azeite. Ver Joel Serrão,
Iluminação Pública e Privada, in Dicionário de História
de Portugal, Vol. 2, p. 468.
(9) —
ACTAS da Câmara Municipal de Águeda de 1923 (doc.
avulso).
(10) —
A guarda municipal devia estar espalhada por todos os
lugares do concelho, às ordens dos comissários de
polícia e dos regedores da paróquia. Na cabeça do
município era necessária uma força permanente,
composta por 10 homens a pé ou a cavalo, às ordens do
chefe municipal. Pertencia-lhe a guarda dos paços e oficinas,
a execução das diligências mais importantes de polícia
e a segurança das estradas
(11) —
Registo de Leis da ViIIa de Recardains (1797), ff.
207v.-209.
(12) —
Adolfo Portela, Águeda. Águeda, 2.ª ed., 1964, p.
134.
(13) —
Antero Albano da Silveira Pinto, Relatório Appresentado
à Junta Geral do Distncto d’Aveiro na sua Sessão
Ordinária de 20 de Julho de 1855, in Arquivo do
Distrito de Aveiro, 1956, pp. 37 e 38.
(14) —
Antero Albano da Silveira Pinto, op. cit., p. 38.
(15) —
Collecção de Leis e Outros Documentos Officiaes.
An’rio de 1840. Décima Série. 1.º Semestre. Edição
da Imprensa Nacional de Lisboa, p. 4 (Diário do
Governo, n.º 16).
(16) —
Testamento Político de D. Luís da Cunha, prefácio e
notas de Manuel Mandes, Lisboa, Seara Nova, 1943, p. 49,
in Joel Serrão, Temas Oitocentistas, II, Livros
Horizonte, Lisboa, 1978, p. 24.
(17) —
ARQUIVO da Câmara Municipal de Águeda. Correspondência...
Manuscrito n.º 763, of.º 299; ver ainda Memórias
do Marquês de Fronteira e d’Alorna, D. José
Trazimundo Mascarenhas Barreto. Ditadas por ele próprio
em 1861 e revistas coordenadas por Ernesto de Campos de
Andrade. Apêndice (documentos oficiais e particular’es).
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932, pp. 75 e 81;
Livro de Registo de Leis e Provizões de Recardães
ff. 289-289v (Registo de uma ordem vinda da Intendência
para o aboletamento em Águeda...).
(18) —
Autos da Câmara de Águeda (1834-1835), ff. 11v-12. A
criação da 10.ª esquadra da Borralha só foi concretizada
em 17 de Dezembro de 1834 (idem, f. 19).
AMÉRICO
DIAS BARATA FIGUEIRA
|