Américo Dias Barata Figueira, Os Primeiros Actos da Câmara Municipal de Águeda, in: Boletim da ADERAV, n.º 1, pp. 11-16.


Os Primeiros Actos da Câmara Municipal de Águeda


1. Introdução

Nasceu este nosso trabalho, parte de outro de maior dimensão, do desejo de tornarmos mais conhecida a história do concelho de Águeda e, ao mesmo tempo, de salvarmos o pouco que ainda existe daquilo que outrora deveria ter sido, segundo cremos, um riquíssimo ar­quivo municipal.

É certo que outros historiadores, sem dúvida mais dotados e mais fluentes, trouxeram já a lume e em letra de forma alguns estudos de real valia sobre a história deste concelho pouco mais que centenário. O seu acesso às fontes documentais e a outras que dispuseram foi bem melhor e mais fácil do que o nosso. Por isso foi pena que não tivessem feito uma obra de maior fôlego, dado que, pelo que nos é dado saber, talento não lhes faltava. Todavia, o mesmo já não poderemos dizer quanto ao seu método de trabalho e rigor científico de alguns deles. Salvaram, no entanto, muita ria tradição oral que, de outro mo­do, ter-se-ia perdido para sem­pre.

Grande parte da documentação utilizada não ,nos é indicada, desconhecendo-se o local da sua origem. E o mais grave ainda é que alguma dessa documentação foi retirada dos seus locais habituais para arquivos particulares de alguns deles donde, segundo cremos, jamais voltou, privando-nos, assim, neste momento, da sua preciosa utilização. São os casos, por exemplo, para não citarmos outros, do Tombo da Misericórdia de Águeda, de alguns livros de actas de alguns concelhos extintos e que agora fazem parte do de Águeda, de um volume do Tombo da Casa de Aveiro, etc. (1).

Esperamos, no entanto, que este mal, para bem do concelho de Águeda e da cultura nacional, possa ser debelado, pois que se trata de uma riqueza que pertence ao património cultural colectivo de todos nós.

A História Contemporânea tem-se preocupado muito pelo estudo da história local, cabouco essencial para um melhor conhecimento de qualquer história nacional. Assim o afirma, entre outros, LUCIEN FEBVRE, nestes termos: «Je n’ai jamais su pour ma part et je ne sais toujours q' un moyen, un seul, de bíen comprendre, de bien situer la grande histoire. Et c’est d’abord de posséder à fond, dans tout son développement, l’histoire d’une région, d’une province...!»  (2)

E o que se tem feito neste campo entre nós? Pouco, do muito que ainda está por fazer.

Aqui deixamos o nosso pequeno contributo, baseados num manuscrito ainda inédito que, por acaso, encontrámos entre um amontoado de papéis no Arquivo Municipal de Águeda.

2. Organização da guarda municipal

Criada num momento particularmente difícil — Portugal saído da revolução liberal de 1820, era um vulcão de lava sangrenta, consequência imediata de ferozes lutas intestinas e, simultaneamente, um enorme palco onde se digladiavam portugueses contra portugueses, absolutistas contra liberais, irmãos contra irmãos —, os responsáveis pelo progresso e segurança de todos os filhos da ridente vila de Águeda bem cedo se preocuparam com o ataque ao banditismo a que se dedicavam, a coberto da noite e da confusão política nacional, muitas pessoas sem escrúpulos, norteados apenas pela moral do seu bem-estar à custa de qualquer preço.

O banditismo provinciano era, na verdade, uma prática constante, largamente ilustrada por grande parte da nossa literatura erudita do século XIX, bem como por toda uma tradição oral popular onde a temática do roubo e de toda a casta de crimes é quase sempre apre­sentada de um modo aterrador. «As quadrilhas de Midões, diz Oliveira Martins, assolavam toda a Beira. Arganil, Avô, Cola, Folques, Góis, Vilacova foram positivamente saqueadas, levando os bandidos o despojo em comboios de carros» (3) Da mesma opinião é Fortunato de Almeida ao afirmar que «nas províncias apareciam por toda a parte guerrilhas que por vezes se acobertavam sob pretextos políticos, mas que eram verda­deiras quadrilhas de salteado­res, ladrões e assassinos e que «não havia serviços regulares de polícia, e os magistrados encarregados de perseguir e punir os malfeitores eram como eles em muitos casos».

Não podemos também esquecer a muita literatura de cordel, igualmente de raiz profundamente popular, divulgada nas feiras e arraiais por aedos de ocasião. Por ela perpassa toda uma série de histórias sentimentais e de «bandos de salteadores sem lei e sem moral, que dominavam as populações rurais pelo terror para satisfazerem os bai­xos instintos da vingança e da cobiça, não raro com a conivência das autoridades, por cobar­dia ou por lhes caber parte dos roubos».

Não foi por acaso que a Guarda Real da Polícia, criada em 1801, foi substituída, em 1834, pela guarda municipal, com vista a uma melhor eficiência da manutenção da ordem pública, à semelhança do que já se passava em várias capitais de muitos países da Europa. Era destinada a proteger, tanto quanto possível, as pessoas e a propriedade dos habitantes do município e a executar as decisões da autoridade. Na verdade, após a vitória liberal «as perseguições, os assaltos por bandos armados tinham pelo menos um pretexto político, de represálias, muitas vezes dirigidas por pessoas constituídas em autoridade». A este estado de coisas se refere Manuel Gonçalves Costa, nestes termos: «Foi o caso, por exemplo, de alguns cabos de polícia, como Jerónimo de Basto, que em Alvelos não só vexava os colegas exigindo presentes para os não castigar, mas, sob pretexto de devassa, entrava nas casas, confiscava o que lhe parecia, em seu pro­veito, espancando os que se opunham à sua cobiça» (4). E logo acrescenta que «em Janeiro de 1848, a Câmara achou neces­sário mandar patrulhar as ruas, sobretudo nas noites de inverno, para acabar com a reunião de indivíduos de má nota, a divagação de desconhecidos e evitar os roubos que se iam tornando frequentes».

Esta mesma insegurança se vivia, com toda a certeza, na vila de Águeda por esta altura. Num ofício enviado pelo Administrador do Conselho ao Juiz de Direito diz-se que «por participaçam feita verbalmente pelo sold.º n.º 26 do Destacamento da G. de Segurança, estacionada nesta vila, José António de Almeida, q. na noite do dia d’ontem 29 do corre das 10 as 11 horas occorrêra hum arruido na rua de S. Bento d’esta mma vila junto às casas de Manoel Rois Curto, aonde o dito soldado accudira, como era do seu devêr; porem p. qdo chegára já estava dissolvido aquelle arruido, e só encontrára o dr. Manoel Rois Curto estirado no chão e de barriga pra baixo, escorrendo em sangue e sua mulher ao pé, chorando e gritando por soccorro; e então, levantando-o, observou q. tinha 3 ferimtos na cabeça, e hum por cima do ôlho direito. E mandando eu examinar pelo mmo soldado da partipação, e perguntar ao ferido como o cazo tinha acontecido, e de quem se queixava trouxe em resposta q. estando o ferido dentro de casa, altercando com sua mulher, houvirão vozes da parte de fóra, dizendo: q. pouca vergonha hé essa? está sempre a batêr na mulher! Ao que o mmo ferido respondêra q. nada lhes im portasse com isso; e q. tornando os de fóra q. viesse pra baixo, elle então descêo, e logo cahirão 4 cajados sobre elle, de cujas pancádas resultárão os ferimtõs e q. .mmo ferido dissera, q. seu creado cujo nome declarára a elle ferido q. hum filho de Maráo dísséra .q. batessem pra baixo» (5).

Não deixa de ser curioso este incidente, bem como o mo­do como ele nos é contado. E o caso é tanto mais estranho quanto é certo que o mesmo ocorreu contra o cabo da polícia Manuel Rodrigues Curto, no­meado em 1834. Ser polícia era sinónimo de possuidor de deter­minadas qualidades. Na verdade, eles eram «escolhidos entre os chefes de família mais bem mo­rigerados, prudentes e animosos». Todas estas qualidades eram necessárias porque «num certo número de casos o seu único depoimento» podia «ser base de acusação contra qualquer indivíduo». «A monarquia, diz J. Félix Henriques Nogueira, fez da guarda municipal, ao con­trário do que o íntegro republicano preconizava, a perseguidora insaciável do povo, sempre pronta a acutilá-lo e esmagá-lo debaixo das patas dos seus cavalos. Também a guarda muni­cipal, em vez de ser uma cor­poração meramente municipal, era um corpo militar absolutamente dependente do ministério do reino, que dela só se servia para impor todos os atropelos que infligisse às regalias populares. Deste facto resultou a invencível aversão que o povo lhe votou» (6). Talvez que o inci­dente passado na velha rua de S. Bento se devesse à falta de integridade de Manuel Rodrigues Curto.

Exemplos como este, e até mais graves, poderíamos citar (7). A insegurança devia ser, na rea­lidade, muito grande, sobretudo se nos lembrarmos que a iluminação pública era, em geral, muito deficiente. Se, de facto, ela existia aqui, não devia ir além de toscos lampiões de petróleo ou de azeite (8), dado que a luz eléctrica só cá chegou muito mais tarde, como pode­mos verificar pelo documento que se segue e onde se relata o primeiro passo concreto dado pela Câmara nesse sentido:

«Ex.mo Snr. Presidente da Junta de Freguezia de Águeda.

Para os devidos efeitos, communico à Junta de Freguezia, de que V. Ex.ª é digno presi­dente, que, em sua sessão ple­nária extraordinária do dia 5 do corrente mez de Julho, deliberou, por unanimidade de votos, a Camara Municipal deste con­celho, sob proposta da sua Co­missão Executiva, contrair na Caixa Geral de Depósitos, um empréstimo até à quantia de 120 000$00, para ocorrer às des­pesas com a montagem, instala­ções e fornecimento de luz eléctrica nesta villa, — empréstimo que vencerá ao juro de 7% ao ano e será amortizado no prazo de 15 anos e em 15 unidades iguais.

Saude e Fraternidade.

O Vice-Presidente da Comissão Executiva

Albano Pereira dos Santos» (9).

Um autor do século passado, coevo dos acontecimentos que estamos a analisar, Pinho Leal, afirma também, como que corro­borando a nossa tese, que os povos rurais do seu tempo não tinham quais quer meios de de­fesa. apesar de muito cedo, em Maio de 1835, o Governo ter avisado as autoridades para in­tensificarem e luta contra as quadrilhas armadas que infestavam a província, assaltavam caminhos e casas, roubando e matando. Desse estado de insegurança, se bem que seja um pouco anterior à época que esta­mos a estudar, se faz eco no Livro de Registo de Leis e Provizões de Recardães, de 1797, onde se encontra tresladada uma ordem do Juizo da Correi­ção de Aveiro para serem pre­sos os salteadores que atacaram Dionizio António Vernei, Juiz da Balança da Casa da índia. Tal ordem é do seguinte teor: «Em consequência da Sua Carta da Data de / vinte e seis de Julho, que Vossa mercê me dirigio, vera / Vossa mercê pela Copea inclusa que fis expedir / as Or­dens neçessarias, para ser preza a Quadri / lha de Ladroens que Vossa mercê notava na dita sua carta, e como nos referidos Avi­zos que fiz expe / dir aos Corre­gedores das Provinçias do Norte, no / tava a todos que Vossa mer­çê lhe havia reme / ter os Sinais dos Saltiadores e circunstançias do rou / bo por huma Nota, por isso partecipo a Vossa mer / çê o refferido para sua inteligencia, e fazer executar pela parte que lhe toca. Deos Goarde a Vossa merçê. Lisboa treze de Agosto de mil outo Centos e seis. / Lu­cas de Siabra da Silva. Senhor Corregedor da Comarca d’Aveiro: Sahindo da Cidade do Porto para os lados do Ge / rêz Dionizio Antonio Vernei, Juiz da Balança da Caza / da índia, nesta Corte no dia vinte e hum do cor­rente / foi atacado e Roubado por huma Quadrilha de seis La / ­drões armados pelas nove horas da manhãa em mente / distançia de três Legoas e meia adiante do Porto na / Estrada que vai para Braga, a importançia do / Roubo he de sinco mil Cruzados, incluindo tre / zentas moedas que Levava em dinheiro den / tro de huma carteira com outras pessas de Val / lor igualmente huns papeis de ponderação per / tencentes a Caza do Sobredito Vernei, expeça Vos / sa mercê Logo as Ordens mais activas e effica / ­zes a todos os Destritos da Ju­risdição afim / de serem prezos os sobreditos Ladrões, e apre / ­hendido o Roubo para estas deLigençias se / rem efectiva­mente executadas Ordenara Vos / sa mercê aos Magistrados da sua Câmara / que requeirão o auxilio de Tropa de Linha, ou / Meleçianna que julgarem serem digo julgarem ser neçessario, e depois de prezos com se / gu­rança na Cadeia mais proxima do Jogar em / que forem incon­trados, sendo segura, aleas / na Cabeça de Comarca; me dera Vossa mer / çê Conta com os Autos da Apprehen / são do que lhes achar, do Rezultado desta delí / gençias que muito lhe re­comento, O Desembar / gador Provedor da Comarca d’Aveiro hade reme / ter a Vossa mercê os sinais dos ditos saltiadores / e Nota das circunstançias do Roubo para sua / Instrução. Não posso deixar de notar a inação das / Justiças da Comarca pela falta de Observançia / das Leis da Poliçia, e Ordens desta In­tendençia / a que da cauza não só ao facto aSima referi / do, mas as reprezentações de de­versos Povos, em / temor por verem de contínuo as estradas assal / tadas de semelhantes La­drões em ranchos armados tran­sitando a seu Sal / vo sem haver quem lhe pergunte por Passa por­tes. Portanto / faça Vossa mercê pôr na mais activa execussão / as referidas Leys, Ordens desta lntendençia (10) Deos Goarde a Vossa mercê. Lisboa trinta e hum d' / Julho de mil outo Cen­tos e seis. Lucas de Siabra / da Silva. A todos os Corregedores das Comarcas do / Norte. Secretaria da Poliçia seis de Agosto de / mil outo Centos e seis. Ma­nuel Justino da / Cunha. Sinais: foi feito o furto pelas nove ho / ­ras da manhãa, do dia vinte e hum de Julho do / prezente anno, na Estrada que vai do Porto a / Braga, entre dous pinhais aonde chamão a / Serra de Passa Mar na legoa que vai da Carissa / para Barca da Trofa que dista do Porto per / to de Coatro Legoas e meia afastado do / dito Logar da Carissa, em que foi atacado e / roubado o dito Dioni­zio Antonio Vernei pelos La /! (fl. 209) drões, e seltiadores de cujos sinais são os / seguintes: Hum delles que se reputava o che / fe da Quadrilha, e que vinha com um bacamarte / era Espa­nhol não pelo que inculcava na sua figu / ra, e atavio, mas pela sua fala. Este era gro / ço de Estatura mais medianna, claro, corado, e / bexigozo, ruivo de cabello e com belezas na cara, tinha coi / fa preta e chapeo, ves­tido de calssas e jaqueta azei / ­tonada, meias, botas e notado Limpo, tendo Olhos / avermelha­dos, por natureza, ou por molestia. Outro deI / les era mais alto, nada magro com iguais botinas, cal / ças e jaqueta de bombazina esverdeada, chapeo redondo / trigueiro de rosto e barbudo, cara cumprida, e de feiçõens / regulares. Outro era baixo e ma­gro, a ponto de ter / covas no rosto, muito tregeuiro, e segun­do recordo tinha / Cazaca preta com muito uzo, tambem de meias botas /, e igualmente chapeo redondo. Os mais todos erão me / nos remarcaveis de figuras / Vulgares, porem nenhum era rotto, nem remendado, / mos­trando não serem mendigos, mas sim de Ordem / Superior, qual a de Contrabandistas, os quais constaçe / que no dito dia os virão por Moreira citio que / fica na Estrada da Villa do Con­de e Barçellos. / Agueda / em correição nove de Setembro de mil outo centos e / seis. Brandão» (11)

Reprocução da primeira folha do volume do Tombo da Casa de Aveiro.

Devia ser este, aliás, o quadro da criminalidade do nosso País, embora Adolfo Portela, apenas apoiado, segundo pensamos, no Estudo Estatístico da Criminalidade em Portugal, nos apresente para o concelho de Águeda, relativamente ao penúltimo lustro do século XIX, ainda que sem optimismos exagerados, uma imagem bem diferente, como se pode verificar pela seguinte passagem: «Ah! Se estes números (155 réus condenados durante cinco anos) pudessem corresponder exactamente à verdade dos factos, como o quadro seria de molde para nos aliviar e exaltar a alma no que ela tem de mais sagrado! Se a moral pública — o civismo, a honra, a dignidade dum povo — pudesse ser apreciada em algarismos, a estatística criminal da nossa comarca seria um documento de honra dos mais excelentes!» (12).

 Nem tão pouco os crimes vulga­res que o mesmo autor apre­senta para os réus da nossa comarca — ferimentos e ofen­sas corporais, furtos e subtracções — nos parecem poder corresponder à verdade quando confrontados com outras fontes de informação que certamente desconheceu. No seu relatório apresentado à Junta Geral do Distrito de Aveiro, Antero Al­bano da Silveira Pinto, governa­dor do mesmo, afirma, falando na sessão ordinária de 20 de Julho de 1855, «que a despeito das mais enérgicas providências adoptadas para a prevenção e repressão dos crimes, nem por isso é lisonjeiro o mapa estatís­tico criminal deste Distrito, relativo aos doze meses de Julho de 1854 deste ano... Dele vereis, que, se o número de crimes de menor gravidade é diminuto em relação à popu­lação do Distrito, não acontece assim em quanto a outros crimes de maior consideração, dos quais, infelizmente, muitos têm tido lugar neste Distrito» (13). E para esta situação aponta fac­tores que condena vigorosamen­te: «Nem pode deixar de assim acontecer enquanto a impuni­dade dos criminosos for, para assim dizer, garantida pela actual organização do Júri, que admite a este cargo a mais crassa ignorância, excluindo a ilustração e independência, e pelos muitos requisitos que a lei exige para a validade dos processos. (...) Juizes, muitos se encontram felizmente, por ilustração, probidade, e inde­pendência, pela circunstância de não serem naturais das terras, em que julgam, e em fim pelo brio e pundonor da sua profissão e classe, merecem a confiança da Sociedade; creio que todos; raríssima será a excepção, se a houver, que em todo o caso nada prova contra a instituição: mas o Júri que mereça a confiança pública, convireis, Senhores que é muito raro.

Por tais motivos não é pos­sível, que as autoridades locais, que têm quase a certeza de ve­rem, passado algum tempo, regressar os réus a suas casas, que têm de viver junto deles, e que não podem andar cons­tantemente no centro duma escolta, que haja de defendê-los da vingança dos criminosos por eles perseguidos; não é possí­vel, digo, que tais autoridades e os demais funcionários admi­nistrativos deixem de afrouxar nas diligências para a apreen­são e punição dos criminosos» (14).

Que isto era verdade, pelo menos num ou noutro caso, te­mos a comprová-lo o assassi­nato da Fontinha ocorrido em 10 de Novembro de 1839, cujo jul­gamento foi largamente contestado pelo povo, facto que levou a rainha D. Maria II a ordenar um inquérito à Justiça do Vouga. «Constando — diz-se numa ordem sua sobre tomadas de providências relativamente ao assassínio do Vouga — que no dia 10 de Novembro último fora assassinado um indivíduo da Freguesia de Requeixo no Lugar da Fontinha, Freguesia de Segadães, Concelho do Vouga, Comarca d’Águeda; e que o assassino, sendo preso pelo Povo, fora no dia seguinte solto com fiança pela Justiça de Vouga; sem que até agora o Juiz de Direito do Círculo, tenha tomado conhecimento do facto, nem inquirido uma só pessoa; Mande a Rainha, pela Secretaria de Es­tado dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça, que o Conselheiro Presidente da Relação do Porto, dando logo depois as providên­cias para que a Lei se execute nos pontos de que se trata, in­forme com o seu parecer, ouvindo por escrito assim a Autoridade Judicial que neste caso soltou o réu com fiança, como o Juiz de Distrito Substituto que deve responder as faltas de que é arguido» (15).

Se era certo que nas ruas de Lisboa não se andava de noite com bastante segurança, facto que levou D. Luís da Cunha a aconselhar ao futuro rei de Portugal, D. José I, a mandar iluminá-las com lanternas, «porque a obscuridade da noute facilita os roubos, as mortes e outros crimes. (16), semelhante situação devia passar-se também em Águeda, passadoiro constante de soldados foragidos ao serviço militar e de exércitos em movimento que aqui vinham frequentemente aboletar-se (17). Foi certamente para evitar toda esta situação e para proteger o mais comum dos cidadãos que a primeira vereação da Câmara de Águeda, logo na sua sessão inaugural organizou de imediato a polícia municipal. A vila ficou dividida em dez esquadras como consta da acta da sessão de 25 de Outubro de 1834, na qual se escreve:

«1.ª Esquadra — Venda Nova, até às casas de Je Leonardo, e Luís Henriques inclusive! — Jose Iqnacio; Jose Antonio de Carvalho.

2.ª Esquadra — Adro, Nichos do Pe, Outeiro da Igreja, Fonte, até ao Padrão — Francº Ribeiro Guerra, e Henriques Duarte da Sª.

3.ª Esquadra — Rua da Ponte, e Barril até ao Cruzeiro — Antonio d’Azevedo, e Jose Maria AIves.

4.ª Esquadra — Rua de S. Bento ate S. Sebastião — Rois Curto; e Jose Rodrigues Samico.

5.ª Esquadra — Rua de Baixo, e Cancela — Antº Joaquim Ferrª Res, e Mel da Fonseca Coelho.

6.ª Esquadra — Rua da Capela, e S. Pedro — Jose Fernandes Barbeiro, e Joaquim d’Almeida Chana.

7.ª Esquadra — Paredes — Jose Simoens Delgado, e Anto­nio Corticada.

8.ª Esquadra — Sardão —Luiz Franc.0 Ferr.ª — Jose da Silva Coelho — Jose Francº

Castanheira.

9.ª Esquadra — Assequins — Jose Ferreira da Costa — Antonio d’Almeida.

10.ª Esquadra — Borralha — Cabo em chefe, Jose Alves d’Oliveira Novo. Cabos: Manoel Fernandes, Jose Perª d’Aguieira (soltº), Bento Fernandes, Joaquim Ferreira do Avelal, Caetano Jose de Oliveira» (18)

Esta medida, seguida de ou­tras, tomada nesta mesma ses­são, é tanto relevante quanto é certo que as mesmas foram deliberadas passados apenas dois escassos dias após a sua posse, facto que ocorreu em 23 de Ou­tubro de 1834.

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NOTAS E BIBLIOGRAFIA

(1) — Veja-se ainda nota 2 do tra­balho publicado sobre Águeda pelo Conde da Borralha no Arquivo do Dis­trito de Aveiro, Vol. II p. 31.

(2) — Lucien Febvre. Autour d’une Bibliothèque (Pages offertes à M. Char­les Oursel, Dijon, 1942), citado por P. LeuiIIiot in L’Histoire Locale. Problèmnes de Ia Recherche: V. — Défense et Illustration de I’Histoire Locale.

(3) — Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, p. 47.

(4) — Manuel Gonçalves da Costa, Lutas Liberais e Miguelistas em Lamego. Lamego, 1947, p. 185. Veja-se ainda Oliveira Martins, op. cit., p. 45: «Guerrilhas armadas levavam de assal­to as casas do miguelista vencido, roubando, matando, dispersando as fa­mílias. (...) Na Beira houve exemplos de uma habilidade feroz singular. Ma­tava-se a família, deixando a vida ape­nas ao chefe, em troca de um testa­mento a favor de alguém. Dias depois o pobre aparecia morto e enriquecia-se desse modo».

(5) — Arquivo da Câmara Municipal de Águeda. Correspondência em Geral (Março a Agosto de 1842), of.º n.º 332.

(6) — J. Félix Henriques Nogueira, O Município no século XIX, in Cader­nos Municipais 3 — Ano 2 — N.º 3 — Janeiro de 1979, p. 49.

(7) — Da Correspondência..., citada na nota 5, extraímos o seguinte: «En­vio a V. Sª a inclusa Participação q. acabo de receber do Regedor de Paro­chia de Espinhal acerca dos graves ferimtos perpretados com arma de fogo na pessoa de João Luiz da Silva, do logar de Paradella, ás 8 horas do dia 11 do corre.

(8) — Temos sérias dúvidas que Águeda já tivesse nesta altura qual­quer forma de iluminação pública dado que, por exemplo, em Aveiro, só em 1844 foi inaugurada a iluminação com lampiões de azeite. Ver Joel Serrão, Iluminação Pública e Privada, in Dicionário de História de Portugal, Vol. 2, p. 468.

(9) — ACTAS da Câmara Municipal de Águeda de 1923 (doc. avulso).

(10) — A guarda municipal devia estar espalhada por todos os lugares do concelho, às ordens dos comissá­rios de polícia e dos regedores da paróquia. Na cabeça do município era necessária uma força permanente, composta por 10 homens a pé ou a cavalo, às ordens do chefe municipal. Pertencia-lhe a guarda dos paços e ofi­cinas, a execução das diligências mais importantes de polícia e a segurança das estradas

(11) — Registo de Leis da ViIIa de Recardains (1797), ff. 207v.-209.

(12) — Adolfo Portela, Águeda. Águe­da, 2.ª ed., 1964, p. 134.

(13) — Antero Albano da Silveira Pinto, Relatório Appresentado à Junta Geral do Distncto d’Aveiro na sua Sessão Ordinária de 20 de Julho de 1855, in Arquivo do Distrito de Aveiro, 1956, pp. 37 e 38.

(14) — Antero Albano da Silveira Pinto, op. cit., p. 38.

(15) — Collecção de Leis e Outros Documentos Officiaes. An’rio de 1840. Décima Série. 1.º Semestre. Edição da Imprensa Nacional de Lisboa, p. 4 (Diário do Governo, n.º 16).

(16) — Testamento Político de D. Luís da Cunha, prefácio e notas de Manuel Mandes, Lisboa, Seara Nova, 1943, p. 49, in Joel Serrão, Temas Oito­centistas, II, Livros Horizonte, Lisboa, 1978, p. 24.

(17) — ARQUIVO da Câmara Muni­cipal de Águeda. Correspondência... Manuscrito n.º 763, of.º 299; ver ainda Memórias do Marquês de Fronteira e d’Alorna, D. José Trazimundo Mascare­nhas Barreto. Ditadas por ele próprio em 1861 e revistas coordenadas por Ernesto de Campos de Andrade. Apên­dice (documentos oficiais e particula­r’es). Coimbra, Imprensa da Universi­dade, 1932, pp. 75 e 81; Livro de Re­gisto de Leis e Provizões de Recar­dães ff. 289-289v (Registo de uma or­dem vinda da Intendência para o abo­letamento em Águeda...).

(18) — Autos da Câmara de Águeda (1834-1835), ff. 11v-12. A criação da 10.ª esquadra da Borralha só foi concreti­zada em 17 de Dezembro de 1834 (idem, f. 19).

AMÉRICO DIAS BARATA FIGUEIRA


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