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"Patrimónios" – n.º 10, Julho 2013, Ano XXXIV, 2ª série, págs. 111 a 142.


A Vinda de Santa Joana para Aveiro e seu impacto local [1]

José António Rebocho Christo *

 

 
 

Procissão de Santa Joana nos começos do séc. XX, num postal ilustrado editado por Souto Ratola.

 

Desde Marques Gomes, que publica em 1879 o “Esboço Biográfico de D. Joanna de Portugal”, que são levantadas várias questões acerca da historicidade de muitos elementos que, nos textos hagiográficos, ou seja os que saem da pena de elementos do clero, eram veiculados como correspondendo à existência autêntica da Princesa, e sobre os quais se divulga a sua história de vida e se constrói a sua iconografia.

Diz este historiógrafo aveirense: «Os biógrafos de D. Joana saídos com raríssimas excepções dos claustros, não podiam talvez deixar de cercar de sucessos milagrosos o vulto simpático da filha de D. Afonso V, e é só assim que se explica a sua convicção, aliás na aparência sincera, com que relatam factos, que de forma alguma podiam ter lugar, como são os dos casamentos com alguns daqueles monarcas. Seria demasiado longo, e até mesmo fastidioso, o rebater, nesta parte, os biógrafos, cada um de per si, e mesmo / p. 112 / porque todas as informações estão compendiadas na História de São Domingos, pelo clássico e brilhante cronista desta ordem. Frei Luís de Sousa, seguiu é verdade, pela vereda dos mais cronistas, mas fê-lo tão primorosamente, escreveu num estilo tão arrebatador, que a ele só devemos pedir as narrações dos factos de que nos estamos ocupando e que temos de condenar como absurdos.»[2].

Assim como para os três casamentos propostos, de que adiante se falará, igualmente se questionam, em termos de consistência histórica: o título de princesa jurada em cortes e o seu uso perpétuo; as motivações para a vida claustral – se por um lado Rui de Pina aponta como razão do envio da Infante para Odivelas, aos 18 anos, a vontade de seu pai pois vivia “com tão grande casa de donas e donzelas e oficiais como se fora Rainha; e porque fazia sem necessidade grandes despesas, e assim por se evitarem alguns escândalos que em sua casa por não ser casada se podiam seguir”[3] por outro lado, a sua estimada biógrafa, e contemporânea no Mosteiro de Jesus, Soror Margarida Pinheira, apresenta apenas uma vontade férrea e inabalável da Princesa em tomar votos de clausura, pela sua grande “devaçam”, e relata a vida particular de D. Joana no Paço como profundamente devota e decorosa, proibindo os malabaristas e “evitando jogos e vaydades”[4], colocando-a em quase permanentes benfeitorias aos necessitados e em oração frequente no seu oratório privativo e secreto, vestindo “mordente lã” e usando silícios por debaixo dos “reais vestidos e toucado”[5]; e, por último, também a regência que lhe é atribuída, em 1471, aquando da campanha de Arzila em que participaram o Pai e único Irmão, o futuro D. João II, é motivo de dissonância entre as fontes, pois quem fica na regência é o Duque de Bragança, D. Fernando[6]. Nem os cronistas Damião de Góis nem Rui de Pina relatam a Infanta como regente, e a carta patente de D. Afonso V é clara quando incumbe a regência a D. Fernando. 

Concordam, contudo, estes diversos autores nos seus atributos de beleza, de bondade e de “onesta e muy virtuosa vida”[7] e a sua vasta cultura.

Ao contrário da Biografia, que é parte da História, o hagiológio não tem a preocupação com o registo de factos – mas sim da vida piedosa do biografado, o que mais importa às religiosas. Isso significa uma preocupação maior com os fenómenos da fé e uma valoração das tradições e lendas em detrimento dos factos históricos, propriamente ditos. É este o caso da grande fonte para o conhecimento da vida de D. Joana, na qual podemos reconhecer todo o repertório de exemplo moral e iconográfico, o inestimável códice quinhentista “Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus, de Aveiro, e Memorial da Infanta Santa Joana Filha Del Rei Dom Afonso V. Nele encontramos o memorial da muito excelente princesa e muito virtuosa Senhora a senhora Infante dona Joana nossa Senhora, texto que certamente recebeu contributos vários das religiosas que conviveram com a Princesa e que se tornará a base dos processos canónicos, Ordinários e Apostólicos, organizados para a causa da beatificação da Infanta a partir de 1626, que atesta / p. 113 / o culto, veneração, prodígios e maravilhas da Infanta que viria a ser beatificada em 1693, pelo Papa Inocêncio XII. O Processo Apostólico posterior, que visava a Canonização, corrido em Coimbra, de 1749 a 1752, não foi consequente.

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Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus de Aveiro e Memorial da Princesa D. Joana.

Margarida Pinheira (atr.) – Séc. XV-XVI (1513).

Museu de Aveiro – Secção de Reservados – Inv.º 33/CD

Em termos de textos impressos, eles não acrescentam novidades substantivas em relação ao “Memorial”, como, por exemplo obra de Frei Nicolau Dias, “Vida da Sereníssima Princesa Dona Ioana” (Lisboa, 1585), a primeira biografia impressa da filha de D. Afonso V; a “Virtuosa Vida e Sancta Morte da Princesa Dona Joana” de D. Fernando Correa de Lacerda, Bispo do Porto (1674); o “Céo aberto na terra” do Padre Francisco de Santa Maria (1697); e deixando por referir muitos outros textos escritos em português, latim, castelhano e francês, sermões e Orações panegíricas dadas ao prelo, a obra de D. António Caetano de Sousa, “História Genealógica da Casa Real Portuguesa”, dedicada a D. João V em 1737) e o “Flos Sanctorum” de Frei Diogo do Rosário, impresso em Lisboa em 1741.

Esta lista, se melhor mérito não tem, pelo menos certifica que o texto produzido em Aveiro tem uma sobrevida secular, espalhando não só no Reino de Portugal, como em Espanha, França, Flandres e Itália a fama e virtudes caritativas de D. Joana, a Princesa de Aveiro.  / p. 114 /

Num mundo em que o saber ler era invulgar, estes textos serviam de igual modo de base à produção de imagens, de conteúdo acessível a um público alargado, franqueando não apenas a vida mas sobretudo o exemplo maior das qualidades da Princesa que deviam ser mimetizadas pelos devotos. A partir da beatificação (1693), e com a faculdade de ser venerada nos altares, as freiras do Mosteiro de Jesus encetam diversas campanhas artísticas que enobrecem os espaços conventuais e potenciam o fervor pela Beata Joana. O museu de Aveiro, sucessor neste espólio notável, a ele deve ser considerado o museu do barroco em Portugal. A euforia era geral e os esforços das monjas iam no sentido de enaltecer a sua Princesa Santa, entrando em vastos programas decorativos a ela dedicados e que agora nos guiarão ao perscrutar a sua biografia. No mosteiro de Jesus existem três grandes programas narrativos elaborados entre 1711 e 1734. Os dois primeiros situam-se na capela-mor da igreja, e o terceiro, mais tardio, é o da Sala de Lavor, que data de 1734 e do qual nos socorreremos para ilustrar os passos mais expressivos da existência da Beata D. Joana de Portugal. São cerca de 20 anos que bem demonstram o espírito da casa e a necessidade que sentem, em público ou privado, de ter acessível e divulgar a notícia da sua virtuosa vida e dos seus milagres.

Comum a todos é o anacronismo do vestuário e dos ambientes, sendo o representado correspondente ao tempo da execução das obras.

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Nascimento da Princesa D. Joana - Óleo s/tela. Séc. XVII-XVIII. MA inv. 392/A

 

/ p. 115 /

A Princesa D. Joana nasce no dia 6 de Fevereiro de 1452, no Paço Real, fruto do consórcio de D. Afonso V com D. Isabel de Coimbra e teve como ama D. Brites de Meneses, aia da rainha que havia sido casada com Aires Gomes da Silva, Senhor de Vagos, homem da confiança do Infante D. Pedro. Diz o Memorial que “vindo o tempo do parto e alumiando-a Deus (refere-se à Rainha D. Isabel) pariu uma filha a mais formosa e bela criatura que neste mundo pudesse ser achada e vista”[8] a qual teve por nome de baptismo Joana, pela grande devoção e favor que a sua Mãe tinha com São João Evangelista. O acontecimento foi vivamente festejado, uma vez que do casal ainda não havia descendência que garantisse o trono, questão que acompanhará a Princesa por toda a vida: a fragilidade na linha de sucessão e a eventual necessidade de ser ela a dar-lhe continuidade como “Princesa Jurada”.

Retrato da Princesa Santa Joana Oficina portuguesa. c. 1472. Óleo s/ madeira de castanho. MA inv. 1/A

/ p. 116 / Segundo o testemunho das suas contemporâneas, a Princesa “Era no rosto e no corpo mui aposta. A frente mui graciosa. Os olhos verdes mui fermosos. O nariz meão e de boa feição. A boca grossa e revolta. Rostro redondo, o carão alvo com algua canta quer cor bem posta. Muito fermosa graganta e mãos mais do que se pudesse achar e ver noutra mulher, alta e grande de corpo direito. Mui aposto e airoso.”[9] E “Voava por todas as partes da cristandade a fama de excelencia de formosura… desta infante princesa. E a todos os reis e príncipes dos diversos reinos punha em grande cobiça de a ver e ouvir. E porque lhes era impossível pela grande distância e alongamento dos reinos e terras mandavam pintores mui perfeitos que a vissem e tirassem polo natural. Para poderem assi pintada gozar de tanta formosura”[10].

 

 
 

Sala de Lavor – Capela Relicário de Santa Joana Princesa

 

Auxilia-nos agora o programa narrativo mais extenso, provavelmente desenhado pelas encomendantes domínicas, o da Sala de Lavor, espaço em que morreu a Princesa e que primitivamente era a Casa dos Bordados. Ficando D. Joana doente levaram-na para este lugar, maior e mais arejado que os seus aposentos e onde podia usufruir de maior companhia e assistência. À sua morte, e por ter desde logo fama de santidade, não mais foram feitos trabalhos manuais nesta dependência, tendo servido de cartório onde se reuniram os documentos dos processos de beatificação e, depois desta, é transformada em capela relicário dedicada à sua memória.  / p. 117 /

Era natural que D. Afonso V e o Príncipe Perfeito quisessem um enlace com uma casa real europeia mas, em boa verdade, nenhum dos cronistas refere estas diligências. Seriam tratadas em “privado”? Parece-nos um argumento pouco consistente pois estas uniões pressupunham grandes mediações e negociações políticas das quais não há notícia. No entanto existem referências em Rui de Pina, Damião de Góis ou em Garcia de Resende de manobras diplomáticas com as cortes em relação às quais se ambiciona, como atesta o “Memorial”, o enlace, e são elas a Inglaterra, a França e o Sacro Império Romano-Germânico. Pode, à falta de dados mais consistentes, imaginar-se que, tendo acesso ao conteúdo daquelas crónicas, fossem os dados metamorfoseados em esponsais. Além do mais era altamente dignificante e significativo que, para além de prescindir dos apanágios de Princesa, D. Joana tenha também abdicado das coroas reais, pondo em evidência a opção feita de viver pobre e em clausura, apartada de toda a mundanidade. E toda esta encenação ganhava ainda créditos quando, por vontade divina, os pretendentes morriam antes que o contracto dos nubentes pudesse ser realizado - não era esse o esposo que queria a Infanta, mas sim o Altíssimo como refere o “Memorial”, pondo-se o próprio Deus solidário com a opção tomada e tomando-se a alegoria por milagre! Daqui nasce o seu elemento iconográfico mais marcante: as três coroas reais caídas a seus pés.

Relativamente à circunstância do seu eventual casamento, e que nem sempre é notada, nunca é referida, p. ex, no Memorial, estão as diligências para a casar com D. Diogo, Duque de Viseu, cunhado de D. João II e irmão do futuro D. Manuel I. D. Diogo, após ter conjurado contra o soberano será assassinado pelo próprio Príncipe Perfeito, em Palmela, no ano de 1484.

 

Óleo s/ tela – c.1734 – Sala de Lavor – Museu de Aveiro, Inv.º  234/A e 232/A

/ p. 118 / A primeira tela da série (à esquerda) mostra um rei que recebe um embaixador, o qual lhe exibe um retrato de D. Joana, evidentemente uma alusão a estas afamadas propostas de casamento. A segunda é a fórmula pintada da recepção que a Princesa faz ao Pai no regresso vitorioso de Arzila, conquista do Africano que as míticas Tapeçarias de Pastrana virtuosamente realçam e engrandecem, para a qual vestiu de verde, conforme os relatos do “Memorial". É o momento em que a sua elevada cultura humanista se revela pois, uma vez que não era vontade geral que entrasse em vida claustral engendra pedir ao Africano que, seguindo o exemplo dos grandes imperadores da antiguidade que entregavam ao templo uma filha em gratidão por uma vitória, assim ele, grande monarca o deveria fazer e deixá-la cumprir os seus desejos.

 
Óleo s/ tela – c.1734 – Sala de Lavor – Museu de Aveiro, Inv.º  238/A e 233/A

Assim aconteceu. Após uma curta passagem por Odivelas ruma ao norte, na viagem, tendo primeiramente dito ao soberano que iria para Coimbra, onde ficaria no Mosteiro de Santa Clara satisfazendo as preocupações paternas, pede para que este destino seja trocado por Aveiro onde conhecia, por epístolas trocadas com D. Leonor de Meneses, a virtuosidade e beatitude do Mosteiro de Jesus.

Chegou acompanhada do Pai e do irmão assim como a tia, D. Filipa, e escoltada por D. Micia Alvarenga. Para a receberem, na portaria do convento, estavam a Prioresa, D. Brites Leitão, a Madre Maria de Ataíde e outras religiosas das mais antigas. Ao fundo vemos as carruagens que transportaram o séquito que veio de Lisboa a acompanhar / p. 119 / D. Joana e, sobre o lado esquerdo da tela, é possível ver o portal da Igreja do mosteiro dos Dominicanos, responsável pela assistência espiritual ao Convento de Jesus. Sobre o campanário está o “cometa”, a estrela brilhante que paira nos céus de Aveiro anunciando a chegada da Princesa e que se extingue no dia da entrada, a 4 de Agosto de 1472 e faz conjunto com diversas premonições que aludem à sua vinda para a Bruges portuguesa ou a Paris de Portugal, epíteto com que um autor se refere a Aveiro pela elegância das suas gentes e da própria vila, nobre e notável, que Pinho Queimado, no final de Seiscentos, descreve cheia de cor, jardins e fontes.

Do lado direito vemos a “Tomada de hábito”. Esta revela-nos o episódio que tem lugar na Sala do Capítulo, a 25 de Janeiro de 1475, quando Santa Joana decide vestir o hábito da Ordem Dominicana, à rebeldia do Pai e irmão e contra a vontade da corte e povos do reino que veementemente se insurgiam contra a sua entrada em religião. Desde sempre pesou sobre ela a necessidade de poder ter de vir a garantir a sucessão na coroa, o que era incompatível com os votos de clausura, razão pela qual viverá como “Religiosa não professa”, com hábito branco de noviça, cumprindo escrupulosa e benignamente todas as tarefas e limitações inerentes à vida claustral, e apaziguando, por esta via, os que lhe eram contrários. É a prioresa, D. Brites Leitão, que cumpre o ritual do corte do cabelo, protesto de humildade e renúncia de vaidade.

Óleo s/ tela – c.1734 – Sala de Lavor – Museu de Aveiro

/ p. 120 / Apesar de estar já no Mosteiro aveirense, o Príncipe Perfeito faz diversas investidas para que a sua única irmã renuncie à clausura. Num destes episódios, D. Brites, a Prioresa, escusa-se com D. João por não mandar para fora do convento a Princesa, pois, argumenta, como poderia ter autoridade para tal face à condição de nascimento de D. Joana; no claustro superior está D. Garcia de Menezes, Bispo de Évora, que a tenta convencer a partir para a corte. Esta vinda a Aveiro provocou a ira ao Príncipe Perfeito que dá asas ao “seu génio mal sofrido” ameaçando a irmã de lhe rasgar o hábito e de a levar à força.

Os surtos de peste que então assolavam o território nacional traziam preocupações acrescidas quanto à saúde e sobre vida da Princesa e levarão a que por algumas vezes tenha de ser retirada do claustro aveirense. Na tela do lado direito vemos a Infanta quando é forçada a sair do convento, em 1479, por um surto de peste ter assolado a Vila. Acompanha-a D. Brites Leitoa que facilmente se denuncia pelo bordão de Prioresa.

   
  Óleo s/ tela – c.1734 – Sala de Lavor – Museu de Aveiro  

/ p. 121 / Na presente cena dúplice vemos, em primeiro plano, D. João que tenta convencer a irmã a aceitar uma nova união; em segundo plano a denominada “Visão do Anjo”. Mais uma vez se retoma o tema das propostas de casamento e, estando a Princesa desesperada com a pressão que sofria aparece-lhe um anjo que lhe traz esta missiva “não entristeças Joana pois o teu Divino Esposo ouviu o teu rogo” e não tardou a notícia da morte de mais este pretendente.

A representação da Morte da Princesa, ocorrida a 12 de Maio de 1490, encima o altar da capela. No leito jaz D. Joana e é o momento em que a sua alma sai pela boca e entra nos céus, onde a esperam em gáudio os anjos e os Santos. Todo o cenário é conforme ao “Memorial” destacando-se o crucifixo que tinha na mão quando morreu, assim como o cirial que tocou momentos antes. O aparato desta representação faz jus a Cataldo Sículo, grande poeta e humanista que estava encarregue da educação do sobrinho da Princesa, D. Jorge que com ela vivia, quando o letrado escreve “Estás de cama, enferma, em leito que, segundo corre fama, é opulento” .[12]

Óleo s/ tela – c.1734 – Sala de Lavor – Museu de Aveiro, Inv.º  231/A

   

/ p. 122 /

É com profundo pesar e copiosas lágrimas que todos se despedem da Senhora D. Joana e, no seu funeral, acontece um dos seus mais solenizados milagres. Para ele vieram “os bispos de Coimbra e do Porto revestidos em pontifical, com tudo o que havia de clérigos e religiosos na vila lhe fizeram as exéquias e amortalhada no hábito de São Domingos foi metida num caixão e levada à sepultura”[13] sendo nesta altura que a natureza se revela, murchando todas as flores à passagem do cadáver da Princesa.

Óleo s/ tela – c.1734 – Sala de Lavor – Museu de Aveiro

E é este o registo que nos deixa da princesa aquela que é considerada a ultima grande crónica medieval portuguesa, sobre o qual se vai projectar a sua memoria que, até hoje, na esfera emotiva e devota, preservamos e através da qual se atesta o seu culto imemorial, fundamento primacial do seu processo de beatificação. No entanto importa não deixar no esquecimento a sua história, o que as fontes que não religiosas nos transmitem, talvez uma imagem outra, mas seguramente complementar, da entourage desta Infante-Princesa que nos permite conhecê-la melhor e melhor compreender a sua importância nacional e local. / p. 123 /

Da mãe, D. Isabel de Coimbra, que morre em 1455, tendo a menina 3 anos, bebe o exemplo do homem excepcional que foi o seu avô, o Infante D. Pedro, ávido de cultura, viajado e de uma craveira notável. Como era uso no seu tempo terá sido amamentada até aos 2 ou 4 anos por amas de leite, cuja função era garantir a sua boa saúde e crescimento, as quais sabemos terem sido Mécia de Siqueira e Beatriz Alvares, cuvilheira da Princesa. Do pai, e sustentado nas indicações para a educação dos príncipes propostas um século antes por Gil de Roma no seu De regimine principum, terá recebido orientações que, por ser do sexo feminino, levavam a guardá-la e evitar passeios, sobretudo a partir dos 12 anos. Esteve rodeada ao longo do seu crescimento de nobres de reputada fama e bons costumes, como D. Beatriz de Meneses, D. Beatriz de Vilhena ou mesmo a Tia, D. Filipa. Esta uma senhora de reconhecida e elevada cultura que possuía livros de Orações e de Gramática. Na sua formação terá sido ainda presente o Livro das três virtudes, ou Espelho de Cristina, de Christine de Pisan, cuja tradução fora ordenada pela rainha D. Isabel. Uma obra que, como refere Cristina Pimenta, poderá ter feito parte dos seus horizontes de interesse, destinado a todas as princesas e outras damas de elevado estatuto social pretende dotá-las de um modelo de comportamento inspirado pela devoção a Deus (e cujo reflexo pode visto no uso elegante e assertivo da linguagem, nos gestos, no vestuário, etc) que pudesse ser imitado por todas as outras mulheres, como refere Pisan, “toda a princesa e grande senhora assy como e levantada em estado e honra sobre as outras que assy o deve ser em bondades e costumes e condições por que ella seja exemplo”, e mais adianta que quando “for de idade aprenda a leer e sayba suas horas”. Não se deve ainda descartar a importância da leitura das Confissões de Santo Agostinho, para além da Bíblia, Actos dos Apóstolos ou dos Breviários, e continuamente os livros, fonte de conhecimento, que tanto a vão preocupar por serem escassos no mosteiro promovendo a sua aquisição.

A par desta formação mais erudita, foi igualmente adestrada a costurar e a bordar.

Coube a “boa creação, i ensino da Princeza D. Joanna (…)”, como refere Jorge Cardoso no seu Agiologio, a Frei João Rodrigues, do Convento de Santo Elói em Lisboa, a quem alguns autores associam a figura de Vasco Tenreiro, tal qual a de Gil Peres, e para seu confessor, no Paço, João de Airas que a acompanhará a Odivelas. Já em Aveiro seriam seus confessores Frei Antão de Santa Maria de Neiva, Frei João Dias e Frei Paio de Lira e seu capelão Diogo Lourenço.

A vinda da Princesa para Aveiro, a que carinhosamente chamava a “minha Lisboa, a pequena”, é certamente um dos episódios mais relevantes que a urbe conheceu e nos fez a cidade e povo que hoje somos, conscientemente ou não. A expressão que usa de imediato nos deve servir de indicador. Havia poucos anos que o Infante D. Pedro patrocinara o estaleiro do convento da Misericórdia e a construção da muralha que mais tarde permitiria a segurança da sua neta. Aveiro, a pequena Vila, crescia e nobilitava-se com particular atenção por parte de Afonso V. Procedendo de uma das capitais mais cosmopolitas e importantes do seu tempo, fervilhante de gentes e riquezas, é interessante interpretar a designação da Infante, como se assinava, e debuxar uma vila que, apesar de pequena, reunia condições para receber uma Princesa que para ela capitalizava a atenção de todo um Reino. Uma vila cuja luz, especial pela presença excepcional da água, / p. 124 / atlântica e fluvial, faz lembrar a capital, e uma povoação de vocação marítima como o era Lisboa, onde pontuavam homens com a notoriedade de João de Albuquerque, Senhor de Angeja, porém mais recatada e apta a cumprir os desejos de Dona Joana.

 

Regra - As Ordens Religiosas são organizações ou institutos religiosos reconhecidos pela Igreja Católica, cujos membros (comummente conhecidos como "religiosos") desejam alcançar o objectivo comum de dedicar formalmente sua vida a Deus. Assim, vivem unidos por uma regra estabelecida pelo fundador da dita ordem ou pela Igreja. A Ordem Dominicana rege-se pela Regra de Santo Agostinho. São Domingos de Gusmão MA Invº 3/A

Em Aveiro a Princesa, apesar de satisfazer escrupulosamente os rigores claustrais, não deixava de ser quem era. Vivia em moradas próprias dentro do convento, edificadas em terrenos que pertenceram a Aires Gomes e teve a prerrogativa de criar o sobrinho D. Jorge, o qual era filho de D. João II que o teve em Ana de Mendonça.

Pelas suas cartas apercebemo-nos do papel que continuava a ter como membro da casa real, caso da que passa, em 1471, aos “juízes, vereadores, procurador, fidalgos, cavaleyros e escudeyros e poboo da muy nobre e leal cidade de Coimbra” aos quais saúda e dá a magna notícia das vitórias de Arzila e Tânger, ou a datada de 4 de Outubro de 1487, escrita em Montemor, na qual pede, evitando a intromissão real directa e decididamente mais veemente, aos “juízes, vereadores e procurador, e cavaleyros e escudeyros e poboo da muy nobre e sempre leal cidade do Porto” para que libertem o embargo ao Cadamoz Novo, navio que tinha vindo da Madeira trazendo “pão” e que urgia fazer chegar à Vila que tinha dele grande necessidade pela peste que então grassava. / p. 125 /

A partir de 19 de Agosto de 1485 é-lhe concedido o Senhorio de Aveiro, compreendendo os lugares de Eixo, Requeixo, Óis, Paus, Vilarinho e Balasaima com todos os seus reguengos, foros e tributos, competindo-lhe a gestão da vila e seus réditos, pedindo apenas escusa à aplicação da justiça.

À hora da morte toda a comunidade religiosa se reúne junto da Princesa e ao anúncio do passamento Aveiro veste de luto pois perdera a magnânima generosidade com que socorria a todos. Às freiras, suas companheiras, havia desaparecido aquela que com elas repartia as tarefas diárias, fossem elas varrer, carretar pão, tijolo, telha ou lenha, abdicando dos luxos inerentes à sua condição comendo e bebendo em malgas e não em baixela, haveria maior abnegação?! E se falamos em legado terá a primazia o exemplo na caridade, o dom que na Carta aos Coríntios se nos apresenta como a mais elevada virtude e a que mais agrada a Deus fazendo a sua escolha em plena liberdade, exemplo que nos fica como comunidade que tanto estima, abona e combate por este valor!

Abordar a importância local desta personagem é redutor e de algum modo complexo, pois a sua monta ultrapassa em muito as fronteiras aveirenses e os limites do tempo, sendo Aveiro quem recolhe os dividendos da sua presença, no passado como hoje. Através dela o nome da Vila, depois Cidade, corre esferas por vezes surpreendentes. E falamos de algo que é difícil de mensurar: prestígio e notoriedade!

Atrevemo-nos a buscar na tradição da vida monástica uma máxima que podemos replicar e aplicar a esta circunstância: “Quid quid monacus aquierat, monasterium aquiritur”, neste caso com o sentido de que tudo o que foi adquirido ou obtido pela Princesa Santa Joana passou a ser nosso, como colectivo herdeiro dela!

Ao Mosteiro, que deixa em testamento como legatário, outorga quase tudo de seu.

Aveiro, não só o Mosteiro de Jesus, jamais seriam os mesmos a partir de 1472! Não foi o acaso! Lembre-se, neste contexto e sem sermos fastidiosos ou termos a pretensão de tudo conseguir elencar:

Não foi o acaso que em 1492 leva à concessão ao Mosteiro de Jesus de um privilégio, pelo qual eram escusados e guardados todos os seus caseiros, lavradores e vários serviçais.[14]

Não foi o acaso que levou D. João II, em 1493, a conceder à vila de Aveiro o relevante privilégio de proibir que aqui morassem pessoas poderosas, para não serem prejudicados os seus habitantes que, na maioria, eram mareantes e pescadores.[15]

Não foi o acaso que em 1495 levou este mesmo rei a doar ao seu filho bastardo D. Jorge o senhorio de diferentes terras, entre as quais os lugares de Sá e de Verdemilho e a «villa de Aveiro com suas lezírias e ilhas de dentro da foz», dando origem, no seu filho, D. João, ao ducado de Aveiro, com honras de parente, um título de juro e herdade fora da lei mental que ficará na história pela sua grandeza e pelo receio que muitos poderosos, nos quais se contabilizam o Marquês de Pombal, tinham da sua notoriedade, riqueza, cultura, poder e influência com lugar destacado na linha de sucessão. / p. 126 /

 
Carta de Maria de Ataíde, prioresa do Mosteiro de Jesus de Aveiro, para João Saraiva, escrivão dos contos do Funchal, lhe mandar entregar 10 arrobas de açúcar que o rei lhe fez mercê de esmola[16]. Forma de Pão de Açúcar. Col. Museu de Aveiro

 / p. 127 / Não foi o acaso que levou D. Manuel I em 1499 a passar carta para o Mosteiro poder possuir todos e quaisquer bens de raiz já adquiridos, alargando-se em 1501 a poder haver e herdar bens de raiz ou outros, e a fazer ao Mosteiro a concessão de açúcar da Ilha da Madeira.

Não foi o acaso que elevou ao título de Real o Mosteiro de Jesus, com todas as prerrogativas inerentes de protecção régia e que assim aparece nomeado desde 1499.

Gravura a buril - 1621 –  in, P. António de Vasconcelos, Anacephalaeoses – MA, inv. 150/Hg, e Gravura a buril - 1639 – in, Joanne Caramuel Lobkowitz, Philippus prudens Caroli V. Imp. Filius Lusitanae Algarbiae, Indiae, Brasiliae legitimus rex demonstratus – Col. Particular.

Não foi o acaso que fez com que os Áustrias tivessem acarinhado e privilegiado Aveiro. Este modelo de representação da Princesa teve fortuna, desconhecendo-se em concreto por que via, sendo utilizado para a representar em gravura, na obra do P.e Jesuíta, António de Vasconcellos, Anacephalaeoses, em 1621, com desenho muito próximo do original vulto, mas com um personagem de uma muito maior robustez. Dezoito anos mais tarde será incluída, com ligeiras alterações, na obra do monge cisterciense espanhol, Juan Caramuel Lobkowitz, na obra Philipus Prudens, de 1639. Rocha Madahil entende dever ser a mesma chapa, com alterações ao nível do colo que, por razões de decoro, foi tapado por uma camisa que o omite totalmente. O uso da efígie nas duas obras, associado à representação da linhagem dos monarcas portugueses, insere-se num programa de propaganda, também ela imagética que não apenas linhagística, que justifica e legitima as pretensões ao trono português por parte de Filipe I, o Prudente, filho do Imperador Carlos V e da Infanta D. Isabel de Portugal (filha de D. Manuel) e casado com D. Maria / p. 128 / Manuela, esta filha de D. João III, estendendo-as a toda a sua geração e integrando a coroa nacional na casa de Habsburgo.

As únicas figuras femininas que Lobkowitz apresenta são a Rainha Santa Isabel e a Princesa Joana de Portugal, fórmula que é uma evidente tentativa de aproximação ao papado pois incluem sangue “santo” na sua linhagem, o que ganha realce se recordarmos que Carlos V promove o Saque de Roma, em 1527, com um banho de sangue que correu pelas ruas da cidade, e por todo o lado se verificaram pilhagens, violações e torturas contra a população. Santa Isabel é beatificada em 1516, vindo a ser canonizada, por especial pedido da dinastia filipina, que colocou grande empenho na sua santificação, em 1625. Também o primeiro processo para beatificação de D. Joana, 1626, data do tempo da monarquia dual, tal era o interesse dos Áustrias em apaziguar relações com Roma e sacralizar a sua estirpe. Ainda em Aveiro, e sendo Prioresa D. Inês de Noronha, que verificou não estar a Princesa Santa sepultada condignamente, foi dirigida uma petição a Filipe II, em 1602, para que o monarca concedesse um subsídio para a execução de um novo túmulo, logo foi aceite concedendo 50 mil reis para a obra.[17]

Convento de Santa Joana em Lisboa, Rua de Santa Marta.

Não foi o acaso que levou a que, em 1578, D. Álvaro de Castro, senhor de uma grande quinta situada adiante de Santa Marta, a tenha vinculado, antes de partir para África, à comunidade dominicana do Convento de S. Domingos de Benfica, com a obrigação daquela até edificar um mosteiro da mesma ordem com todas as oficinas e afins. Esta congregação desistiu do legado, passando-o para Frei José Galrano que, em 1699, mandou edificar, na dita propriedade, um Hospício de Missionários da Índia, dedicado a / p. 129 / El-Rei D. Pedro II e a Santa Joana, Princesa de Portugal, chamando para a obra o arquitecto régio João Antunes, o mesmo a quem D. Pedro encomenda o túmulo de mármores policromos em que as relíquias da Padroeira se encontram hoje.

Em 1755, o terramoto que assolou Lisboa fez alguns estragos neste convento que de masculino passava agora a receber as religiosas de Santa Joana. As freiras ali residentes, em sinal de agradecimento a Deus pelo facto de as ter preservado, acolheram inúmeras pessoas que ali recorriam, lutando para que ali se construísse uma nova paróquia. Para ali transitaram as freiras do Mosteiro da Anunciada e algumas do Mosteiro da Rosa.

E também não foi o acaso que levou a que neste cenóbio se fundasse a Irmandade dos Homens Pretos de Santa Joana, cujo objectivo era a missionação e promoção dos escravos cristianizados, originalmente sob a égide da Senhora do Rosário. Já a Princesa, às escravas que teve no Mosteiro tinha dado alforria em testamento, algumas das quais sabemos os nomes, Cristina, Joana e Catarina negra.

Igreja de Santo António dos Portugueses, Roma. Capela-mor, pormenor do lado da Epístola. Óleo s/ tela. Michelangelo Cerruti - c. 1722

Não foi o acaso que levou a que dentro da “Politica Romana” Joanina a Princesa integrasse o programa de Santo António dos Portugueses, em Roma, cuja decoração se centra nas invocações nacionais e onde tem lugar de destaque, quer nos frescos tardios da cúpula ao lado das beatas Teresa, Sancha e Mafalda quer, no período que nos importa, por Michelangelo Cerruti numa extraordinária tela datada de c.1722, colocada na capela-mor, do lado da epístola. Representa um episódio relatado no “Memorial” quando D. Afonso V, ainda em Lisboa, lhe propõe um casamento que a Princesa recusa, estando / p. 130 / mais empenhada nas coisas do Céu, como se vê pela sua atitude. Interessa a notoriedade de Santa Joana neste templo, por excelência a embaixada nacional junto do Papado.

Se tivermos em conta o impulso e patrocínio de D. Pedro II no processo de beatificação, ao qual adere o próprio D. João V, no sentido da canonização que infelizmente não será consequente, percebemos claramente quanto é verdade que a politica romana nos surge já claramente esboçada no tempo de D. Pedro II e é, de facto, no reinado do seu filho que ela se configura abertamente em termos de estratégia de poder.[18]

   
  Visita ao Real Mosteiro de Jesus - D. Manuel II, em 1908  

Não foi o acaso que trouxe a Aveiro, a venerar as suas relíquias, o Rei D. Luís, a Rainha D. Maria Pia, o Príncipe D. Carlos e o Infante D. Afonso, assim como mais tarde viria D. Manuel II, em 1908, ou, já na república, a visita oficial do Presidente da República, Almirante Américo Tomás, que presidiria às solenidades comemorativas do primeiro milenário de Aveiro e do segundo centenário da elevação da antiga vila a cidade.

Recuando um pouco, e apenas como lição, não foi o acaso que levou à edição, em 1682, em Veneza, de uma peça teatral e obra moral I fallimenti di Corte di Muti, obtida da vida de Santa Joana e oferecida a D. Manuel José Cortizos, Marquês de Vilaflores, na qual há um curioso Henrique, que se enamora da Princesa e se traveste de freira para a tentar. / p. 131 /

   
1. Óleo s/ tela – Séc. XVIII (?) – Elvas – Igreja de São Domingos 2. Óleo s/ tela – Séc. XVIII – Lisboa – Igreja do Colégio do Bonsucesso 3. Óleo s/ tela – Séc. XVII-XVIII – Gaia – Convento Corpus Christi

Não é o acaso que leva a sua imagem, que veremos rapidamente, pintada ou esculpida, a estar presente em algumas das principais igrejas e mosteiros do reino (por exemplo em Elvas, Lisboa ou Gaia).

1. Retábulo da Capela de São Jorge, que pertenceu aos Navarros de Andrade – Meados do Séc. XVII - Guimarães – hoje no Museu Alberto Sampaio, inv.º ED 2. 2. Óleo s/ tábua – Princesa Santa Joana – Meados do Séc. XVII - Guimarães – hoje no Museu Alberto Sampaio

Em Guimarães no retábulo dos Navarros de Andrade / p. 132 /

 
Fresco - Taormina - San Domenico Palace - datado de 1621.   Óleo s/ tela – Séc. XVIII - Paris Col. particular

Na Sicília ou em Paris.

Madeira policromada e dourada – Séc. XVIII. Mosteiro de Santa Maria da Vitória da Batalha

Madeira policromada e dourada – Séc. XVIII. Igreja do Carmo - Évora

/ p. 133 / Nas esculturas da Batalha e Évora ou mesmo a desaparecida escultura em Nápoles, na Igreja do Mosteiro de S. Pedro e S. Sebastião, executada em mármore de Carrara da qual se conhece apenas a descrição.

 

Imagem de roca/processional – Séc. XVIII – MA, inv.º 329/B

Não foi o acaso que levou a que, para impedir o empobrecimento das suas festividades se reconheceu que seria importante estabelecer uma confraria que tomasse a seu cargo a promoção dos seus festejos. Gera-se, então, um grupo de cidadãos que irá elaborar os forçosos estatutos. São cento e dez signatários, entre os quais alguns dos nomes mais marcantes da urbe, fidalgos, capitalistas, políticos e industriais. Já aprovados pela autoridade administrativa foram assim sancionados pela autoridade eclesiástica os “Estatutos da Real Irmandade de Santa Joana Princeza de Portugal, Filha de ElRei D. Afonso V”, que têm a data de 4 de Março de 1877.

Ainda hoje, e com o patrocínio dos nossos Bispos, com particular destaque para D. João Evangelista e D. Domingos da Apresentação, a Real Irmandade toma a cargo a organização das festividades e a promoção junto das camadas mais jovens do exemplo de vida de Santa Joana. / p. 134 /

Santa Joanna, Livrái-nos da péste - Gravura a buril  –  Séc. XIX – Col. Particular

Não foi o acaso que nos fez socorrer, por sua intercessão, do auxílio do Altíssimo em altura de grande aflição, como na peste oitocentista.

Não foi o acaso que fez com que o seu culto e memória estivesse disponível em livros e revistas de larga difusão, A Branco e Negro, em 1896, à que se seguem e a título de exemplo, a Talábriga, em 1921, a Beira Litoral, em 1938, a Flama, a Ilustração Moderna, a Seara Nova, a Ilustração Moderna, a Revista de cultura, economia e turismo, a Menina e Moça, o Portugal Ilustrado, o Guia de propaganda Comercial e industrial, a Revista Eva que na edição de Natal coloca, pela mão da sua diretora a feminista e arrojada aveirense Carolina Homem Christo, a Princesa na capa. Reconhecem-se assim quer a superioridade da figura de D. Joana quer o significado que a sua presença em Aveiro tem, mesmo em termos de captação de turistas que trazem consigo o desenvolvimento da economia local, criando emprego e riqueza. / p. 135 /

   
 

Aveiro – o desfilar da procissão (Antiga Rua de Santa Joana, fronteira ao convento) In: Branco e Negro Semanario Illustrado, n.º 8, 24 de Maio de 1896.

 

Não foi o acaso que salvou o vetusto Mosteiro de Jesus de Aveiro do destino da maioria das casas conventuais que a desamortização fez desaparecer, transformados em quartéis e serviços públicos. A presença das suas relíquias protegeu a Casa e permitiu que ainda hoje possamos usufruir dela, como museu, e nela perpetuar o culto. / p. 136 /

   
  12 Maio 2011  
     
   
  Imagem da Sta. Joana Princesa, em Votuporanga - Brasil  
 

/ p. 137 /

 
   
 

Igreja de Santa Joana Princesa, Alvalade-Lisboa

 
 

Inauguração do Lar de Santa Joana Princesa, Lisboa (Rua Lagares D'El Rei), no âmbito das Comemorações do 514º Aniversário da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

Em Roma, em Lisboa, em Salselas, no Brasil em Votuporanga a Princesa leva consigo Aveiro da qual se tornou verdadeiro ícone!

Para o conhecimento e compreensão da secular história de Aveiro e o seu conjunto de atores maiores é forçoso incluir e entender o papel desempenhado por D. Joana de Portugal, Princesa e detentora do Senhorio da então Vila, mas também, talvez / p. 138 / sobretudo, a Santa que a devoção imemorial aveirense, popular e clerical, eleva aos altares. O devir de Aveiro, e em particular o do Convento de Jesus, são-lhe magnos devedores, captando a atenção dos poderes públicos, cobertos de honras e privilégios, prestigiando-os sobremaneira e concedendo-lhes o seu protectorado espiritual. A sua importância na esfera das questões políticas e estratégicas nacionais é, ainda hoje, pouco conhecida, contrariamente aos abundantes relatos que nos presenteia a sua hagiografia de amoráveis contornos, os quais se constituem na fonte primeira para o corpus das suas representações.

Mulher de grande beleza, culta, profundamente devota e operadora de incontáveis sucessos e milagres, é a Protectora da cidade desde 1808, em que salva a urbe das investidas napoleónicas. Mais tarde, com D. Manuel de Almeida Trindade como Pastor da diocese, em 1964, será dirigida a Sua Santidade o Papa Paulo VI uma petição, rogando que, apesar de não ser Santa, a Beata Joana fosse designada Padroeira da cidade e da diocese de Aveiro. Após ser ouvida a Sagrada Congregação dos Ritos, a 5 de Janeiro de 1965, Santa Joana é declarada pela Santa Sé Padroeira de Aveiro e sua diocese, com festa litúrgica de segunda classe e com missa e ofício próprios.

/ p. 139 / Nos nossos dias, continuam a afluir milhares de devotos e curiosos a Aveiro no seu feriado municipal, 12 de Maio, dia do seu passamento, povoando não só o Museu em que as relíquias permanecem, mas as ruas da cidade para verem passar, no alto andor que pertence às colecções do museu, a sua Santa Princesa.

Estátua de Santa Joana, inaugurada em 2002, da autoria de Hélder Bandarra,

situada na Praça do Milenário, Avenida Santa Joana, em Aveiro

Não foi o acaso que nos congregou aqui, hoje, sob a égide da nossa Padroeira! Não foi o acaso que levou o seu nome e imagem ao nosso seminário, às avenidas, às proas dos moliceiros, às confeitarias, à arte pública… Não foi evidentemente o acaso que levou a que, no dia 31 de Dezembro de 1984 fosse publicada no Diário da República a criação, no concelho de Aveiro, da freguesia de Santa Joana com todas as suas meritórias valências, com destaque para as de carácter social. Não foi realmente o acaso, foi a presença indelével da Princesa Santa Joana, magno património imaterial aveirense, que o poema de Mons. Moreira Neves, em 1959, nos transmite desta forma:

Princesa Santa Joana!

Diz o povo: Não morreu!

Não morreu a flor humana

Que em Aveiro floresceu.

 

Anda um perfume no ar.

A luz é cheia de graça.

Não é do Céu nem do mar,

É da Princesa que passa.

 

Ouve-se um murmúrio lento,

Todo piedade e pureza.

Não é das asas do vento.

É da Princesa que reza.

 

Vibram hinos argentinos

Na alva que se levanta.

Não são de bronze os sinos.

São da Princesa que canta.

 

O sol que ardia, não arde,

E entre neblinas descora.

Não é da chuva da tarde.

É da Princesa que chora.

 

BIBLIOGRAFIA

CARVALHO, António Vítor de, "Manifestações do Sagrado e do Profano em Aveiro no Início da I República", O Estudo da História – Revista da APH, n.º 6, Outubro, 2005.

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_____ D. Manuel Corrêa de Bastos Pina, Bispo de Coimbra, Conde de Arganil Esboço Biographico; 2.ª ed. Porto: Typographia Occidental, 1898.

_____ Edição Offeretida ao Collegio de Santa Joanna Princeza em Aveiro a 20 de agosto de 1889. Porto: Typographia Occidental, 1889.

MADAHIL, António Gomes da Rocha, Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus, de Aveiro e Memorial da Infanta Santa Joana, filha dei Rei D. Afonso V (Códice Quinhentista). Aveiro: Ed. Prof. Francisco Ferreira Neves, 1939.

_____ Iconografia da Infanta Santa Joana. Aveiro: Ed. Especial, Exemplar n.º 27, 1957.

_____ Princesa Santa Joana – Do senhorio temporal da Vila ao padroado espiritual da cidade e da diocese de Aveiro. Separata do "Arquivo do Distrito de Aveiro" Aveiro, 1966.

MUTI, Gio Maria, I Fallimente di Corte. Veneza: Benedetto Milocho, 1682.

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SOUTO, Alberto, A Arte em Portugal Aveiro. Porto: Editora Marques Abreu, 1952.

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Periódicos

As famosas procissões de Aveiro, "Eva", ano 40, n.º 1126, Novembro de 1965.

"CORREIO DE AVEIRO", n.º 55, de 5 de Maio de 1911; n.º 57, de 19 de Março de 1911; n.º 269, de 23 de Maio de 1915.

FREITAS, Joaquim de Mello, Festas em Aveiro Quarto Centenário da Morte da Princesa Santa Joana, "Revista Illustrada", Lisboa, 31 de Maio de 1890.

GONÇALVES, António Manuel, A Princesa-Infanta D. Joana, edição especial do semanário "Litoral" de 8 de Maio de 1965.

ILLUSTRAÇÃO PORTUGUESA, n.º 146, de 7 de Dezembro de 1908, Santa Joana Padroeira de Aveiro, edição especial do semanário "Correio do Vouga", de 9 de Abril de 1965.

SILVA, Agostinho Duarte Pinheiro e, Convento de Jesus, "Campeão das Províncias", de 6 de Fevereiro de 1856.

SOUTO, Alberto, O milagre do Museu de Aveiro e a história do culto da Princesa-Infanta-Santa, "Correio do Vouga", de 10 de Maio de 1952. / pág. 142 /

TOBIAS, A procissão de Santa Joanna em Aveiro, Branco e Negro – "Semanário IIIustrado", n.º 8, de 24 de Maio de 1896.

Fontes manuscritas

ANTI – Corpo Cronológico, Parte II, mç. 6, n.º 148.

créditos fotográficos

© Museu de Aveiro – Fotógrafo José Pessoa – Divisão de Documentação Fotográfica


[1] Comunicação apresentada na Junta de Freguesia de Santa Joana, em 16 de Fevereiro de 2013,  evocando os 561 anos sobre o nascimento da Princesa.

* Historiador de Arte, conservador no Museu de Aveiro.

[2] Marques Gomes; 1879, p. 33.

[3] Rui de Pina, Cap. 168 da “Crónica de D. Afonso V”.

[4] Madahil; 1939, p.78.

[5] Madahil; 1939, p.82.

[6] Gomes; 1879, p. 11.

[7] Pina; Crónica de D. Afonso V, Cap. 168.

[8] Madahil, 1939, p. 76.

[9] Madahil, 1939, p. 89.

[10] Madahil, 1939, p. 78.

[11] Sousa, p. 49.

[12] Santos, 1962, p. 9.

[13] Sousa, p. 56.

[14] Torre do Tombo, Estremadura, livro 10, fls. 133­-133v.

[15] Torre do Tombo, Chancelaria de D. João II, livro 7, fl. 132, e Estremadura, livro 2, fls. 71-71v; Colectânea, I, pgs. 242-243.

[16] ANTT - Corpo Cronológico, Parte II, mç. 6, n.º 148.

[17] Santos, 1963, p. 186.

[18] Pimentel, 2002, p. 25.


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