Henrique J. C. de Oliveira, Os Meios Audiovisuais na Escola Portuguesa, 1996.

Conceitos linguístico e semiótico

Do ponto de vista linguístico e semiótico, a imagem coloca desde logo um problema fundamental: o de saber se uma imagem, uma fotografia, uma / 20 / pintura, uma representação qualquer, constitui uma forma do seu autor comunicar com outras pessoas, ou seja, se a imagem pode ser considerada como uma forma de comunicação, à semelhança da linguagem verbal. É este o problema que colocou, por exemplo, Georges Mounin, de acordo com a referência que nos é feita por Louis Porcher[1], extraída dos "Cadernos pedagógicos da Rádio-Televisão Escolar, ano de 1966-67 - Emissões de filosofia: a linguagem (página 35).":  «Uma semiologiasemiologiasemiologiasemiologia resolveria a questão de saber se a pintura é uma linguagem, isto é, se a pintura permite que alguém comunique com outra pessoa e como; e, de modo especial, se se tem o direito de falar aqui de uma linguagem, ou seja, se a estrutura das unidades e as regras de utilização destas unidades são isomorfas, isto é, do mesmo tipo que as unidades e as regras da sua utilização na língua natural. Da mesma maneira para a escultura, o cinema ou ainda as regras da educação

Segundo Ferdinand de Saussure, a semiologia (ou semiótica ) é entendida como a descrição rigorosa de um conteúdo manifestado, quer com a ajuda de outras linguagens para além das linguagens naturais, quer com a ajuda dos significantes que constituem os objectos e os próprios comportamentos humanos. Deste modo, a semiologia engloba a própria linguística, a semiologia apresenta-se como uma ciência que procura estudar todos sistemas de comunicação, abrangendo a própria linguística, que será uma ciência mais restrita, tendo por objecto apenas a linguagem verbal. Este carácter abrangente da semiótica leva ao problema da distinção de dois tipos de semiótica, as semióticas linguísticas e as semióticas não linguísticas. Tal como constatou Christian Metz, uma semiologia pode ser trans-verbal, englobando todas as formas narrativas que se servem das palavras, tais como contos, mitos, narrativas orais ou escritas, e pode também ser não verbal, englobando todas as espécies de imagens existentes.

Mas, se a semiótica se caracteriza pela sua grande amplitude, na medida em que os seus objectivos visam o estudo de todas as formas possíveis de comunicação, das quais a linguagem verbal é uma, acontece que nenhum estudo semiótico pode ser efectuado sem o recurso à linguagem verbal. Para o estudo, por exemplo, das imagens como forma de comunicação, é imprescindível a utilização da linguagem verbal. Estas nossas reflexões seriam impossíveis de realizar sem o apoio das palavras que agora estamos a ler. Consequentemente, um estudo semiológico nunca poderá prescindir do apoio da linguística, o que levou alguns linguistas a considerar que a semiótica não é mais do que um ramo da linguística. Aliás, toda a actividade humana está condicionada pela palavra, seja ela oral, seja escrita, razão que levou Roland Barthes, Christian Metz e outros a afirmar que o homem, mais do que nunca, vive numa civilização da escrita e que, por muito que a imagem seja actualmente utilizada, ainda não vivemos no reino das imagens. Christian METZ, por exemplo, chama mesmo a atenção para a necessidade já tradicional de distinguir, no interior do vasto problema das relações entre imagem / 21 / e pedagogia, dois aspectos diferentes: o ensino da imagem (um curso de iniciação ao cinema, ao vídeo, etc.) e o ensino pela imagem (recurso a filmes pedagógicos ou outros meios modernos que utilizam a imagem):  «Quaisquer que sejam as linguagens da imagem (cinema, televisão, etc.), todas têm em comum o facto de se apoiarem largamente, numa fase inicial, na percepção visual: esta (...) não dá conta da intelecção de todos os dados visuais (...) mas assegura, pelo menos, uma primeira camada de inteligibilidade que não tem nenhum equivalente nas línguas e que, numa larga medida, não pode ser ensinada (...)[2]

E acrescenta que, se se quiser ensinar a imagem, se torna necessário regredir, isto é, avançar «tão profundamente quanto possível no sentido de mecanismos perceptivos», uma vez que a percepção sensorial é também um facto cultural e social variável de uma cultura para outra, o que significa que, «cedo ou tarde, chegará um momento em que o ensino da própria imagem encontrará os seus limites». Por exemplo, quando se constata que uma criança que reconhece um automóvel na rua também o identifica numa fotografia de boa qualidade técnica e que outra não o consegue identificar na imagem e nem mesmo o reconhece na rua, tal deve-se a razões puramente de ordem cultural.

Christian Metz alerta-nos aqui para um problema que distingue a imagem da linguagem verbal, ou seja, uma língua pode ser ensinada tendo em conta problemas de ordem normativa e regras bem definidas, que permitem que possa ser ensinada a qualquer sujeito falante, independentemente de valores de natureza civilizacional. Em contrapartida, a leitura da imagem está dependente de valores de ordem civilizacional, de ordem cultural, que poderão tornar a sua descodificação difícil, só facilitada pela junção de outras linguagens, que lhe forneçam elementos complementares.

Toda a publicidade moderna, com que os modernos meios de comunicação social bombardeiam o vulgar cidadão, por muito poderosas, comunicativas, sugestivas e cativantes que sejam as imagens apresentadas, não subsiste sem o apoio e complemento das palavras. Por muito rigorosas que sejam as reportagens cinematográficas (ou em vídeo) apresentadas nos noticiários televisivos, com documentos filmados no próprio momento dos acontecimentos, muitas vezes com o risco da própria vida, nunca conseguiriam alcançar o seu pleno estatuto de notícia se não fossem acompanhadas pelas palavras do locutor, fornecendo elementos precisos acerca das cenas registadas. Sem as palavras definindo rigorosamente os referentes situacionais - localização espácio-temporal, identificação dos intervenientes, etc. - a mensagem visual perderia parte do seu rigor como notícia. Uma cena de um episódio de uma guerra, desprovida da linguagem verbal, perde grande parte da sua significação. Embora as imagens só por si sejam passíveis de leitura (o tipo de armamento poderá ajudar a situar mais ou menos no tempo, dependendo da cultura do espectador e a cena seria facilmente identificada como uma situação de «guerra» e  / 22 / como tal rotulada com este vocábulo ou outros afins), muitos elementos ficariam perdidos. Mas isto não invalida que não se possa comunicar pela imagem desprovida de palavras. Podemos ter sequências narrativas de imagens sem qualquer palavra susceptíveis de uma leitura e interpretação mais ou menos correcta, desde que entre essas imagens se estabeleçam conexões lógico-semânticas. É que os elementos que constituem as imagens são, tal como as palavras, unidades significativas susceptíveis de serem descodificadas. E tal como dentro de um texto as palavras estabelecem diversas relações de natureza sintáctica, constituindo unidades significativas mais amplas e rigorosas, também os elementos constituintes das imagens se organizam em grupos mais amplos carregados de significação.

No entanto, uma vez mais Christian Metz nos alerta para um problema importante, que é o da rede de significações subjacentes a uma imagem e para o facto desta, relativamente ao ensino, dever evitar ser brutalmente normativa: «O ensino da imagem deverá evitar tornar-se brutalmente normativo», pois enquanto a linguagem verbal obedece a regras precisas de carácter morfossintáctico, uma imagem é sempre passível de diferentes interpretações, em função da cultura e também da subjectividade de cada um. «Porque o ensino apenas transmite a cultura e porque a imagem desempenha um grande papel na nossa cultura, um ensino da imagem parece desejável, sob condição de não se tornar a ocasião de uma sequência de fanatismo "audiovisual"[3].»

Todos os objectos, tudo quanto existe no mundo percepcionado pelo homem é constituído por uma multiplicidade de redes de significação. Qualquer objecto, mesmo se a sua existência ocorre fora de qualquer intencionalidade de comunicar, acaba sempre por adquirir, perante o sujeito que o observa, uma determinada carga significativa, dependente de diversos factores e ainda que variável de sujeito para sujeito. Tudo quanto existe no universo e é passível de ser percepcionado pelo homem acaba sempre por adquirir uma determinada carga significativa. Esta característica, inerente a tudo quanto existe, dependente ou independentemente da acção do homem, foi já suficientemente demonstrada por diversos autores. Por exemplo, a moda constitui, conforme o provou Roland Barthes[4], ao construir um «sistema da moda», uma forma de comunicação. Se bem que o vestuário tenha como função primordial a protecção do corpo contra as agressões climáticas, a maneira como cada um se veste acaba sempre por adquirir uma determinada carga significativa e por ser apreciada favorável ou desfavoravelmente pelos diferentes observadores. Se uma pessoa se apresenta de chapéu de palha, óculos escuros, calções e toalha, todos os que a observam atribuem imediatamente uma significação, podendo mesmo adivinhar quais as intenções do portador de tal indumentária. Do mesmo modo, se a uma dada / 23 / hora da noite, essa mesma pessoa se apresenta impecavelmente vestida, com fato a rigor, laço ao pescoço e colarinhos engomados, segurando numa mão um par de luvas, a significação atribuída será totalmente diversa. A observação do conjunto, a imagem visual que chega ao cérebro do observador, é portadora de elementos susceptíveis de permitir determinadas descodificações, entrando na interpretação da imagem não só os elementos referentes ao trajo, como, inclusive, os referentes situacionais, ou seja, as características envolventes, tais como o local e a hora, que permitem alcançar significações mais precisas.

Se qualquer objecto, bem como tudo quanto é criado pelo homem, é susceptível de ser portador de uma determinada carga significativa, logo, qualquer imagem, produzida manual ou mecanicamente, terá de ser também necessariamente portadora de significação, podendo por isso funcionar como uma forma de comunicação. Todavia, segundo os linguistas, somente a linguagem verbal é o único sistema verdadeira e completamente significante, pelo que, segundo Barthes, «objectos, imagens, comportamentos podem significar, e fazem-no abundantemente, mas nunca de maneira autónoma; todo o sistema semiológico se completa com a linguagem»[5], os objectos significantes não linguísticos são apoiados por significantes de natureza linguística.

Se, como atrás foi referido, todos os objectos, naturais ou artificiais, acabam por ficar impregnados, em maior ou menor grau, de uma carga significativa, então será lógico concluir que qualquer imagem, seja de que tipo for e qualquer que seja o meio como foi obtida, terá obrigatoriamente de ser portadora de significação, poderá encerrar, também ela, uma determinada mensagem, podendo adquirir um papel idêntico ao das palavras, entidades duplas, simultanea­mente significantes e significadoras, isto é, objectos físicos[6] e entidades portadoras de significação, susceptíveis de evocarem na mente dos sujeitos falantes determinadas imagens mentais. Como tal, à semelhança das palavras, susceptíveis de serem organizadas segundo determinadas estruturas lógico-semânticas, permitindo codificar e transmitir mensagens, também as imagens materiais, independentemente da maneira como foram obtidas ou criadas, poderão ser portadoras de sentido e desempenhar diversas funções.

As imagens, de acordo com o seu grau de complexidade e com a maneira como estão organizados os seus elementos constituintes, poderão ser comparadas a textos mais ou menos complexos, susceptíveis de serem lidos e interpretados pelos receptores.

 / 20 / Os mesmos princípios e a mesma terminologia utilizada na linguística e teorias da comunicação poderão ser aplicados ao estudo da imagem, enquanto forma de comunicação. Tal como a linguagem verbal e outros sistemas de comunicação que lhe andam frequentemente associados, a imagem constituirá uma forma de comunicação. No entanto, constitui uma forma de comunicação específica e uma das formas mais antigas utilizadas pelo homem e, frequente­mente, associada, desde há longa data, à linguagem verbal. Embora numa fase inicial a imagem tenha sido utilizada (e ainda hoje continue a ser em muitas situações) de maneira autónoma, independentemente da linguagem verbal, a partir do momento em que o homem conseguiu criar símbolos visuais (como a própria imagem!) capazes de tornar mais duradoura a linguagem verbal, imagens e palavras passaram a constituir duas formas de comunicação que frequentemente se completam, sendo, na vida moderna, tecnologicamente cada vez mais avançada, duas formas de comunicação muitas vezes indissociáveis.

Embora fisicamente imagens e palavras apresentem grandes diferenças, há muitas semelhanças entre imagem e texto , enquanto formas de comunicação. Além de ambos constituírem registos fixos, não voláteis, susceptíveis de uma comunicação diferida sem necessidade da presença física dos interlocutores, capazes de vencerem a barreira do tempo e da sua recepção se efectuar através da visão, a imagem pode ser comparada, em muitos aspectos, ao texto escrito. As mensagens transmitidas por estes dois tipos de "texto", por vezes coexistentes, têm de ser descodificadas mediante leitura dos «semas» neles presentes. No texto linguístico, é necessário efectuar a leitura e descodificação das palavras; na "imagem-texto", é necessário analisar os diferentes elementos que a compõem. No texto linguístico, os diferentes vocábulos constituem unidades significativas mais extensas, as frases, cuja leitura permite efectuar a ligação lógico-semântica e alcançar o sentido global da mensagem textual; num quadro, a análise dos diferentes objectos ou grupos de objectos, situados nos diferentes planos e entre os quais se estabelecem relações, relações de forma e de cor, constitui a leitura que permite chegar à descoberta da mensagem global. Do mesmo modo que os textos linguísticos podem desempenhar diversas funções, de acordo com os objectivos do sujeito emissor, que codifica e, mediante um acto de fala, transmite a mensagem, de igual modo uma imagem pode desempenhar uma multiplicidade de funções, de acordo com os objectivos do seu autor.

           

De tudo quanto foi anteriormente exposto, pode-se concluir que a imagem, do ponto de vista semiótico, constitui uma forma específica de comunicação, muitas vezes associada à linguagem verbal, com características próprias e susceptível de ser estudada. Estamos, no entanto, muito longe de ter dado uma noção completa do conceito de imagem, tendo em conta as várias áreas do conhecimento em que ele nos surge. No nosso caso concreto, interessa-nos / 25 / essencialmente considerar a imagem enquanto objecto material, enquanto sistema de representação sensorial materializado num documento. E, concomitantemente, interessam-nos também não só os sistemas utilizados para a obtenção ou captura destes objectos materiais, a que damos o nome de imagens, como efectuar uma breve análise diacrónica dos meios utilizados para a sua apresentação. Enquanto objecto material, podemos afirmar que uma imagem é uma reprodução de uma determinada realidade, obtida por diferentes processos, que vão desde a produção manual, feita a partir de uma observação (caso de um desenho, da pintura ou da escultura), até à produção mecânica através da objectiva de uma câmara, podendo mesmo passar por uma técnica mista, recorrendo à reprodução manual de uma imagem obtida sobre uma superfície plana através de um sistema óptico, como ocorreu num período da vida do homem anteriormente à invenção de suportes foto-sensíveis (caso da moderna película fotográfica), em que o desenhador recorria a um aparelho baseado no mesmo princípio da câmara escura. Com a invenção da película, da máquina fotográfica e dos modernos sistema de registo, o vocábulo imagem passou a ser também aplicado à reprodução mecânica feita através da objectiva de uma câmara (fotográfica, de cinema ou de vídeo) e fixada sobre um determinado suporte físico (película, papel, fita magnética), quando empregamos, por exemplo, as expressões « imagem fotográfica », « imagem fílmica », « imagem digital ».



[1] - Vd. Louis PORCHER, Introduction à une sémiotique des images. Sur quelques exemples d'images publicitaires, 1ª ed., Paris, Edições Didier, 1987, cap. II, p. 10.

[2] - Christian METZ, Images et pédagogie, in: "Communications", nº 15, Paris, Ed. Seuil, 1970, pp. 162-168.

[3] - Christian Metz, op. cit., pp. 167-168

[4] - Roland BARTHES, Système de la mode, Paris, Ed. Seuil, 1967.

[5] - Roland BARTHES, "Eléments de sémiologie", in: Le degré zéro de l'écriture, col. Médiation, Paris, Ed. Gonthier, 1953, p. 80.

[6] - Recorde-se que todo o sinal linguístico é uma entidade dupla, como o demonstrou Saussure, constituída simultaneamente por um significante, isto é, um objecto físico formado por uma cadeia sonora, e um significado, na medida em que esse objecto acústico evoca no sujeito falante uma imagem mental, correspondente ao arquétipo do objecto representado pela palavra.

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