Henrique J. C. de Oliveira, Os Meios Audiovisuais na Escola Portuguesa, 1996.

Conceito filosófico e psicológico

Do ponto de vista filosófico e psicológico, imagem, imagem mental e imaginação têm sido motivo de reflexão desde tempos remotos da história do homem.

Para Aristóteles, a imagem não é mais do que a representação analógica deixada na alma pela sensação, que persiste e pode renovar-se com uma certa liberdade mesmo após ter cessado o acto da percepção. Significa, pois, que as imagens são inicialmente como as próprias coisas sensíveis, delas diferindo pelo facto de não possuírem matéria. Embora resultantes da observação  / 11 / de objectos materiais, acabam por adquirir uma vida própria, podendo na mente do observador combinar-se, associar-se entre elas e reaparecer à superfície da consciência, por força da imaginação. É nesta capacidade de inter-relacionação que reside a grande diferença, segundo Aristóteles, entre os homens e os animais:

«De qualquer modo, os animais que não sejam o homem vivem reduzidos às imagens e às lembranças; eles só participam de um modo ténue no conhecimento empírico, enquanto o género humano se eleva até à arte e aos raciocínios. É da memória que provém a experiência para os homens: com efeito, uma multiplicidade de lembranças da mesma coisa chega para construir finalmente uma única experiência; e a experiência parece, de facto, ser mais ou menos da mesma natureza que a ciência e a arte, com a diferença, no entanto, de que a ciência e a arte advém aos homens através da experiência, porque a experiência (empeiria) criou a arte (techne), como diz Polos com razão, e a falta de experiência, o acaso. A arte surge logo que, de uma quantidade de noções da experiência, resulta um único juízo universal, aplicável a todos os casos semelhantes. Com efeito, ornar o juízo que tal remédio aliviou Calias, sofrendo de tal doença, depois Sócrates, depois outros tomados individualmente, é o facto da experiência; mas julgar que tal remédio aliviou todos os indivíduos com tal constituição, entrando nos limites de uma classe determinada, atingidos com uma tal doença, como por exemplo, os fleumáticos, os biliosos ou os febris, isso releva da arte[1]

Da leitura do excerto de Aristóteles, podemos verificar que ele começa por nos apresentar a forma mais simples, ténue e confusa de conhecimento, que é a resultante do conhecimento puramente sensível, isto é, o resultado do simples acto fisiológico de captar a realidade pelo uso dos sentidos. Mas o verdadeiro conhecimento, ainda segundo ele, só se verifica pela experiência, que se eleva do fluxo das sensações e da multiplicidade das lembranças. Portanto, num primeiro sentido, a imagem é a própria sensação ou percepção do objecto no momento da observação; mas, por outro lado, é também o resultado da imaginação. Num sentido epistemológico, a imagem é a forma inicial do homem aceder ao conhecimento das coisas, podendo este conhecimento situar-se a dois níveis: por um lado, o homem, pela faculdade de permutar, de combinar os conhecimentos, pode chegar à criação e ao alcance de conhecimentos mais elevados, que são, quer a arte (techne), quer a ciência (episteme). A arte nasce quando de uma quantidade de noções da experiência resulta um juízo universal aplicável a todos os casos semelhantes. A ciência surge quando o homem procura conhecer o estudo das causas primeiras, a que Aristóteles atribui quatro sentidos, ou seja, quatro tipos de causas (formal, material, eficiente, final).

Os escolásticos incluem a imaginação entre as faculdades sensíveis internas e definem-na, segundo a tradição aristotélica, como a capacidade de fixar, reproduzir e combinar as imagens das coisas sensíveis.

O sentido de imagem como sensação ou percepção do objecto no momento da sua observação, por oposição ao de resultado da imaginação, é um sentido que ainda hoje se conserva e que passou a designar, num sentido corrente, todo e qualquer objecto real susceptível de poder ser observado, abrangendo, mediante alargamento semântico do vocábulo, toda e qualquer / 12 / criação humana que tem por objectivo reproduzir, mais ou menos fielmente, objectos reais ou imaginários, tendo em vista não só a sua difusão, como também a sua conservação no tempo.

Para Descartes, «a imagem é uma impressão orgânica, resíduo ou vestígio da acção dos objectos sobre os sentidos, figura material destes objectos, que se imprime nos nervos e no cérebro[2]», como resultado da sensação. Assim, segundo este filósofo, sensação e imagem são aspectos distintos, dependendo esta da anterior. A sensação é a impressão corporal resultante da observação dos objectos pelos sentidos. A partir do momento em que esta sensação se torna consciente, passa a constituir a imagem. Por outro lado, a imagem é também distinta da ideia. Esta é para Descartes a única fonte válida de conhecimento e de verdade; mas como o espírito pode agir sobre o corpo, a imaginação pode tornar-se um precioso auxiliar do conhecimento, pois se é pelos sentidos que as imagens chegam ao cérebro, é pela imaginação que se torna possível reconstitui-las e analisá-las. Todavia, como Descartes refere, muitas vezes as imagens que chegam ao cérebro são fonte de erro, pelo que o homem terá de proceder à análise metódica daquilo que observa, para poder chegar ao verdadeiro conhecimento.

Contrariamente a Descartes, Locke nega a existência de ideias inatas e valoriza em extremo a experiência sensível, a única fonte que o homem tem de poder aceder ao conhecimento. John Locke (1632-1704) desenvolveu a teoria da tábua rasa, segundo a qual a mente humana se encontra vazia no momento em que o homem nasce e que todas as ideias que vão sendo adquiridas provêm originariamente dos sentidos. A teoria de Locke foi o ponto de partida para a valorização pelos psicólogos do meio ambiente em detrimento da hereditariedade, tendo levado a que, no plano pedagógico, os professores, numa dada fase da história da educação, tenham desenvolvido um método educativo baseado mais no desenvolvimento das faculdades sensoriais do que das faculdades de raciocínio.

No século XVIII, Kant reabilita a imaginação, considerando-a como uma forma de elaboração do conhecimento e de apreensão do real e também como actividade criadora e fonte de prazer estético. Retomando a tradição que considera a imaginação como o acto intermédio entre os sentidos e a inteligência, Kant considera a imaginação como uma actividade de passagem entre os dados sensoriais e o conceito empírico.

«A sensibilidade unifica, no tempo e no espaço, a matéria das sensações, produzindo assim intuições sensoriais isoladas. Estas unificam-se pela intervenção da imaginação transcendental em esquemas, dotados de certa generalidade. É necessária uma síntese ulterior, regulada pelas categorias do entendimento, para se obter o conceito. Sem categorias e sem imagens transcendentais ou esquemas, a percepção seria impossível[3]

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Husserl deu também um grande contributo no sentido da reabilitação do conceito de imaginação, passando a considerá-la como um acto ou fenómeno psíquico tão válido como qualquer outro. Ele estabelece uma distinção entre percepção e imaginação. A percepção exige presença do objecto no espaço e no tempo, ao passo que a imaginação, baseada na percepção, é uma modificação intencional, distinguindo-se da percepção na medida em que não precisa da presença do objecto, podendo reconstitui-lo através de imagens mentais .

«A imaginação é uma "presentificação" (Gegenwärtigung) do objecto anteriormente dado à intuição perceptiva, (...) faz ver o objecto de uma maneira específica, é quase-presença ou presença "como se", radicalmente diferente da perceptiva (...)[4]»

A imagem mental é a «representação mental evocadora das qualidades sensoriais de um objecto ausente do campo perceptivo». A imagem será, neste caso, um facto psicológico que tem por objectivo restituir a aparência figurativa dos objectos ou dos acontecimentos fora das condições materiais de realização de um campo perceptivo, podendo os indivíduos, graças à capacidade da imaginação, não só reportarem-se cognitivamente a experiências passadas como antecipar e construir situações que ainda não foram vividas[5].

Segundo Sartre, Husserl contribuiu decisivamente para a renovação do problema da imaginação, graças ao conceito da intencionalidade. O problema da imaginação «conhece um brilhante renascimento no início do século», com o desenvolvimento das ciências humanas, «nomeadamente da psicologia patológica e da etnologia[6]», sendo objecto de análise por diferentes investigadores, entre os quais se contam os nomes de Freud, Bachelard, Sartre, etc., sendo talvez o nome mais importante o de Gilbert Durand.

Para Jean Paul Sartre, a imagem mental é uma maneira específica que a consciência tem de representar um objecto, chamando a atenção para o facto de que não se trata da consciência de uma imagem, mas sim da consciência de um objecto como imagem.

Para Bachelard, as imagens que captamos da realidade envolvente, dos objectos que observamos, podem não ser e não são frequentemente a fonte de um saber completo, pois «toda a objectividade, devidamente verificada, desmente o primeiro contacto com o objecto.» Se as imagens nos fornecem uma primeira visão da realidade, o conhecimento científico só existe a partir do momento em que se verifica uma verdadeira ruptura com o conhecimento sensível. Na  / 14 / obra A psicanálise do fogo[7], Bachelard chama-nos a atenção para o facto de, «nos maravilhar­mos perante um objecto eleito» e de acumularmos sobre ele hipóteses e devaneios, formando deste modo as nossas convicções, que «têm a aparência de um saber», cuja fonte é impura. As imagens que captamos desse objecto acabam por nos fornecer um conhecimento distorcido, que não corresponde ao conhecimento científico. Este só é possível a partir do momento  em que se verifica uma ruptura com o mundo sensível, ideia que é retomada na obra A formação do espírito científico[8]: «(...) É portanto necessário aceitar uma verdadeira ruptura entre o conhecimento sensível e o conhecimento científico», uma vez que o nosso conhecimento, num primeiro estádio, se baseia nas imagens que captamos do mundo exterior através dos nossos órgãos sensoriais, dando lugar a um conhecimento que poderá estar deturpado devido às nossas próprias convicções, sem nunca nos permitir chegar a um conhecimento sistemático e controlado das coisas: «Um espírito pré-científico, no momento em que tentamos embaraçá-lo com objecções sobre o seu realismo inicial, sobre a sua pretensão em aprender o seu objecto ao primeiro gesto, desenvolve sempre a psicologia desta estimulação que é o verdadeiro valor da convicção, sem nunca chegar de forma sistemática à psicologia do controle objectivo[9].»

 

De acordo com os psicólogos cognitivistas, e como também refere Josette Sultan[10], as imagens mentais são produtos da actividade humana, bem distintos das imagens materiais. Uma das principais propriedades da imagem mental é o seu isomorfismo relativamente à percepção. «A imagem mental conserva as propriedades estruturais, particularmente espaciais, dos objectos representados. Enquanto instrumento de representação analógica dos objectos do mundo, ela apresenta um carácter funcional e operatório. Ela é um meio não só de convocar esses objectos» ou seja, ela permite, tal como anteriormente referimos, evocar não só as qualidades sensoriais dos objectos ausentes do campo perceptivo, como permite também «operar transformações, combinações e comparações.»

Estudos experimentais efectuados por psicólogos permitiram pôr em evidência que a «propriedade de isomorfismo diz respeito não apenas às representa­ções de objectos estáticos, mas também aos processos postos em jogo no decurso das actividades perceptivas e imaginativas e no decurso de acções sobre os / 15 / próprios objectos[11]», de tal modo que operações de «rotação mental» podem ser similares às operações exercidas fisicamente sobre os pró­prios objectos reais.

Outros trabalhos puseram também em evidência que a imagem mental não se limita a ser uma simples cópia figurativa do mundo real, mas é também e sobretudo uma construção activa operada pelos indivíduos, apresentando uma função referencial (na medida em que reenvia para o referente evocado pela imagem) e uma função construtiva («elaborativa») posta em jogo quando se trata de organizar conteúdos imagísticos em relações novas. Estas duas características funcionais, já implícitas na definição que fornecemos inicialmente, quando afirmámos que a imagem mental constitui um facto psicológico que permite reconstituir a aparência figurativa dos objectos na sua ausência e não só recordar factos passados como antecipar e construir novas situações, foram também postas em evidência por Piaget e Inhelder[12], quando se referem a «imagens reprodutoras» e «imagens antecipadoras».

Para Jean Piaget, as imagens que directamente captamos da realidade envolvente constituem percepções da totalidade, pelo que as sensações visuais constituem elementos estruturados: «Quando vejo uma casa não vejo primeiro a cor da telha, o tamanho da chaminé, etc., e finalmente a casa! Percebo logo a casa como "Gestalt" e só em seguida passo à análise do pormenor.[13]»

Significa isto que, segundo Piaget, os conhecimentos que adquirimos não resultam imediatamente das imagens visuais que percepcionamos, mas da acção de que a percepção constitui a função de sinalização. O conhecimento humano resulta, pois, de duas fases importantes: a percepção dos objectos, fase primordial, e a acção que exercemos sobre as imagens percepcionadas. O conhecimento propriamente dito só se verifica a partir da acção que exercemos sobre os objectos percepcionados. O conhecimento não é uma mera contemplação, mas o resultado de uma série de acções realizadas pelo sujeito observador, podendo ser consideradas duas formas de transformar o objecto a conhecer: primeiro, através de uma acção física, mediante modificação das posições, movimentos e propriedades para exploração da natureza do objecto; segundo, através de uma sequência de acções lógico-matemáticas, enriquecendo o objecto da observação de propriedades ou relações novas que, conservando as anteriores, as completam por sistemas de classificação, ordenação, enumeração, correspondência, etc.

«Os nossos conhecimentos não provêm unicamente nem da sensação nem da percepção, mas de toda a acção de que a percepção apenas constitui a função de sinalização. O próprio da inteligência não é, efectivamente, contemplar, mas "transformar", e o seu mecanismo é essencialmente operatório. Ora, as operações consistem em / 16 / acções interiorizadas e coordenadas em estruturas de conjunto (reversível, etc.) e se queremos atender a este aspecto operatório da inteligência humana, é, portanto, da própria acção e não unicamente da percepção que temos de partir.[14]»

De acordo com o que nos diz António R. Damásio[15], todo o pensamento humano está dependente das imagens. «O conhecimento factual que é necessário para o raciocínio e para a tomada de decisões chega à mente sob a forma de imagens.» E as imagens podem ser de dois tipos: imagens perceptivas, as que chegam ao cérebro e são portadoras de informações do mundo exterior, e imagens evocadas, as que ocorrem à medida que «evocamos uma recordação de coisas do passado.» As imagens evocadas podem dizer respeito tanto a factos ou processos de reconstituição de factos passados, como a factos relativos ao futuro, apresentando umas e outras as mesmas características.

As imagens são geradas por uma maquinaria neural complexa de percepção, memória e raciocínio, sendo a sua construção regulada, por vezes, pelo mundo exterior ao cérebro, outras vezes inteiramente dirigida pelo interior do nosso cérebro, mediante o processo do pensamento. E todas as imagens «são baseadas directamente nas representações neurais, e apenas nessas, que ocorrem nos córtices sensoriais iniciais e são topograficamente organizadas.»

Ainda segundo o que nos diz A. Damásio, todo o nosso pensamento é constituído por imagens. Ainda que o pensamento inclua também palavras e símbolos, a verdade é que tanto umas como outros são baseados em representações topograficamente organizadas sendo, eles próprios, imagens; até mesmo os símbolos utilizados na representação mental de um problema matemático são imagens, pois se não fossem imagináveis, nunca os poderíamos conhecer e manipular conscientemente. O que importa salientar «é que as imagens são provavelmente o principal conteúdo dos nossos pensamentos, independentemente da modalidade sensorial em que são geradas...».



[1] - Aristóteles, Metafísica, I, 980 b 25-981 a 30.

[2] - M. MORAIS, Imaginação, In: Logos Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, Lisboa, Editorial Verbo, 1989-92, vol. II, cols. 1336-1340.

[3] - M. MORAIS, op. cit. cols. 1338-1339.

[4] - M. Morais, op. cit., col. 1339.

[5] - Relacionado com o problema das imagens mentais seria igualmente interessante referir não só as suas propriedades funcionais, como também o seu carácter analógico. No entanto, por ultrapassar o âmbito do nosso trabalho, remetemos para o artigo de Eliane VURPILLOT, "Image ou image mentale", in: Grand dictionnaire de la psychologie, Larousse, Paris, 1993, pp. 364-366.

[6] - M. Morais, op. cit. col. 1340.

[7] - G. BACHELARD, La psychanalyse du feu, Paris, Gallimard, 1972, pp. 9-10.

[8] - G. BACHELARD, La formation de l'esprit scientifique, Paris, Ed. Vrin, p. 239.

[9] - E Bachelard reforça a sua afirmação com uma referência a Baldwin: «Com efeito, como entrevê Baldwin, este controlo resulta desde logo de uma resistência. Por controle entende-se em geral the checking, limiting, regulation of the constructive process.»

[10] - Josette SULTAN, "Faire l'image: une activité de connaissance. Éléments pour un cadre théorique". In: Faire/voir et savoir. Connaissance de l'image et connaissance. Images technologiques en arts plastiques et en histoire, col. Rencontres Pédagogiques, nº 31, Institut National de Recherche Pédagogique, Paris, 1992, pp. 16-32.

[11] - Josette SULTAN, op. cit., p. 24.

[12] - Vd. PIAGET e INHELDER, Les images mentales, Paris, P. U. F., 1963.

[13] - Vd. Jean PIAGET, Psicologia da inteligência, A. Colin, pp. 78-79.

[14] - J. Piaget, op. cit., pp. 78-79.

[15] - António R. DAMÁSIO, O erro de Descartes. Emoção, razão e cérebro humano, 1ª ed., Mem Martins, Publicações Europa-América, 1995, pp. 99-129.

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