Do ponto de vista filosófico e psicológico,
imagem,
imagem mental e imaginação têm sido motivo de reflexão desde tempos remotos da história do
homem.
Para
Aristóteles, a imagem não é mais do que a representação analógica
deixada na alma pela sensação, que persiste e pode renovar-se com uma
certa liberdade mesmo após ter cessado o acto da percepção. Significa,
pois, que as imagens são inicialmente como as próprias coisas sensíveis,
delas diferindo pelo facto de não possuírem matéria. Embora resultantes da
observação
/
11 /
de objectos materiais, acabam por adquirir uma vida própria, podendo na
mente do observador combinar-se, associar-se entre elas e reaparecer à
superfície da consciência, por força da imaginação. É nesta capacidade de
inter-relacionação que reside a grande diferença, segundo Aristóteles,
entre os homens e os animais:
«De
qualquer modo, os animais que não sejam o homem vivem reduzidos às
imagens e às lembranças; eles só participam de um modo ténue no
conhecimento empírico, enquanto o género humano se eleva até à arte e
aos raciocínios. É da memória que provém a experiência para os
homens: com efeito, uma multiplicidade de lembranças da mesma coisa chega
para construir finalmente uma única experiência; e a experiência
parece, de facto, ser mais ou menos da mesma natureza que a ciência e a
arte, com a diferença, no entanto, de que a ciência e a arte advém aos
homens através da experiência, porque a experiência (empeiria) criou a
arte (techne), como diz Polos com razão, e a falta de experiência, o
acaso. A arte surge logo que, de uma quantidade de noções da experiência,
resulta um único juízo universal, aplicável a todos os casos
semelhantes. Com efeito, ornar o juízo que tal remédio aliviou Calias,
sofrendo de tal doença, depois Sócrates, depois outros tomados
individualmente, é o facto da experiência; mas julgar que tal remédio
aliviou todos os indivíduos com tal constituição, entrando nos limites
de uma classe determinada, atingidos com uma tal doença, como por
exemplo, os fleumáticos, os biliosos ou os febris, isso releva da arte[1].»
Da
leitura do excerto de
Aristóteles, podemos verificar que ele começa por nos apresentar a forma mais
simples, ténue e confusa de conhecimento, que é a resultante do
conhecimento puramente sensível, isto é, o resultado do simples acto
fisiológico de captar a realidade pelo uso dos sentidos. Mas o verdadeiro
conhecimento, ainda segundo ele, só se verifica pela experiência, que se
eleva do fluxo das sensações e da multiplicidade das lembranças.
Portanto, num primeiro sentido, a imagem é a própria sensação ou
percepção do objecto no momento da observação; mas, por outro lado, é
também o resultado da imaginação. Num sentido epistemológico, a imagem
é a forma inicial do homem aceder ao conhecimento das coisas, podendo
este conhecimento situar-se a dois níveis: por um lado, o homem, pela
faculdade de permutar, de combinar os conhecimentos, pode chegar à criação
e ao alcance de conhecimentos mais elevados, que são, quer a arte (techne),
quer a ciência (episteme). A arte nasce quando de uma quantidade de noções
da experiência resulta um juízo universal aplicável a todos os casos
semelhantes. A ciência surge quando o homem procura conhecer o estudo das
causas primeiras, a que Aristóteles atribui quatro sentidos, ou seja,
quatro tipos de causas (formal, material, eficiente, final).
Os
escolásticos incluem a
imaginação
entre as faculdades sensíveis internas e definem-na, segundo a tradição
aristotélica, como a capacidade de fixar, reproduzir e combinar as
imagens das coisas sensíveis.
O
sentido de
imagem como sensação ou percepção do objecto no momento da sua
observação, por oposição ao de resultado da imaginação, é um
sentido que ainda hoje se conserva e que passou a designar, num sentido
corrente, todo e qualquer objecto real susceptível de poder ser
observado, abrangendo, mediante alargamento semântico do vocábulo,
toda e qualquer
/ 12 / criação humana que tem por objectivo reproduzir, mais ou
menos fielmente, objectos reais ou imaginários, tendo em vista não só a
sua difusão, como também a sua conservação no tempo.
Para
Descartes, «a
imagem
é uma impressão orgânica, resíduo
ou vestígio da acção dos objectos sobre os sentidos, figura material
destes objectos, que se imprime nos nervos e no cérebro[2]»,
como resultado da sensação. Assim, segundo este filósofo, sensação e
imagem são aspectos distintos, dependendo esta da anterior. A sensação
é a impressão corporal resultante da observação dos objectos pelos
sentidos. A partir do momento em que esta sensação se torna consciente,
passa a constituir a imagem. Por outro lado, a imagem é também distinta
da ideia. Esta é para Descartes a única fonte válida de conhecimento e
de verdade; mas como o espírito pode agir sobre o corpo, a imaginação
pode tornar-se um precioso auxiliar do conhecimento, pois se é pelos
sentidos que as imagens chegam ao cérebro, é pela imaginação que se
torna possível reconstitui-las e analisá-las. Todavia, como Descartes
refere, muitas vezes as imagens que chegam ao cérebro são fonte de erro,
pelo que o homem terá de proceder à análise metódica daquilo que
observa, para poder chegar ao verdadeiro conhecimento.
Contrariamente
a Descartes,
Locke
nega a existência de ideias inatas e valoriza em extremo a experiência
sensível, a única fonte que o homem tem de poder aceder ao conhecimento.
John Locke
(1632-1704) desenvolveu a teoria da tábua
rasa, segundo a qual a mente humana se encontra vazia no momento em
que o homem nasce e que todas as ideias que vão sendo adquiridas provêm
originariamente dos sentidos. A teoria de Locke foi o ponto de partida
para a valorização pelos psicólogos do meio ambiente em detrimento da
hereditariedade, tendo levado a que, no plano pedagógico, os professores,
numa dada fase da história da educação, tenham desenvolvido um método
educativo baseado mais no desenvolvimento das faculdades sensoriais do que
das faculdades de raciocínio.
No século
XVIII,
Kant reabilita a imaginação, considerando-a como uma forma de elaboração
do conhecimento e de apreensão do real e também como actividade criadora
e fonte de prazer estético. Retomando a tradição que considera a
imaginação como o acto intermédio entre os sentidos e a inteligência,
Kant considera a imaginação como uma actividade de passagem entre os
dados sensoriais e o conceito empírico.
«A
sensibilidade unifica, no tempo e no espaço, a matéria das sensações,
produzindo assim intuições sensoriais isoladas. Estas unificam-se pela
intervenção da imaginação transcendental em esquemas, dotados de certa
generalidade. É necessária uma síntese ulterior, regulada pelas
categorias do entendimento, para se obter o conceito. Sem categorias e sem
imagens transcendentais ou esquemas, a percepção seria impossível[3].»
/
13 /
Husserl deu também um grande contributo no sentido da reabilitação
do conceito de imaginação, passando a considerá-la como um acto ou fenómeno
psíquico tão válido como qualquer outro. Ele estabelece uma distinção
entre percepção e imaginação. A
percepção exige presença do objecto no espaço e no tempo, ao passo
que a imaginação, baseada na percepção, é uma modificação intencional,
distinguindo-se da percepção na medida em que não precisa da presença
do objecto, podendo reconstitui-lo através de
imagens mentais
.
«A
imaginação é uma "presentificação" (Gegenwärtigung) do
objecto anteriormente dado à intuição perceptiva, (...) faz ver o
objecto de uma maneira específica, é quase-presença ou presença
"como se", radicalmente diferente da perceptiva (...)[4]»
A
imagem mental é a «representação mental evocadora das qualidades sensoriais de um
objecto ausente do campo perceptivo». A imagem será, neste caso, um
facto psicológico que tem por objectivo restituir a aparência figurativa
dos objectos ou dos acontecimentos fora das condições materiais de
realização de um campo perceptivo, podendo os indivíduos, graças à
capacidade da imaginação, não só reportarem-se cognitivamente a experiências
passadas como antecipar e construir situações que ainda não foram
vividas[5].
Segundo
Sartre, Husserl contribuiu decisivamente para a renovação do problema
da imaginação, graças ao conceito da intencionalidade. O problema da
imaginação «conhece um brilhante
renascimento no início do século», com o desenvolvimento das ciências
humanas, «nomeadamente da
psicologia patológica e da etnologia[6]»,
sendo objecto de análise por diferentes investigadores, entre os quais se
contam os nomes de Freud, Bachelard, Sartre, etc., sendo talvez o nome
mais importante o de Gilbert Durand.
Para
Jean Paul Sartre, a imagem mental é uma maneira específica que a consciência tem de
representar um objecto, chamando a atenção para o facto de que não se
trata da consciência de uma imagem, mas sim da consciência de um objecto
como imagem.
Para
Bachelard, as imagens que captamos da realidade envolvente, dos objectos
que observamos, podem não ser e não são frequentemente a fonte de um
saber completo, pois «toda a objectividade, devidamente verificada, desmente o primeiro
contacto com o objecto.» Se as imagens nos fornecem uma primeira visão
da realidade, o conhecimento científico só existe a partir do momento em
que se verifica uma verdadeira ruptura com o conhecimento sensível. Na
/
14 / obra A psicanálise do fogo[7],
Bachelard chama-nos a atenção para o facto de, «nos
maravilharmos perante um objecto eleito» e de acumularmos sobre ele
hipóteses e devaneios, formando deste modo as nossas convicções, que «têm
a aparência de um saber», cuja fonte é impura. As imagens que
captamos desse objecto acabam por nos fornecer um conhecimento distorcido,
que não corresponde ao conhecimento científico. Este só é possível a
partir do momento em que se
verifica uma ruptura com o mundo sensível, ideia que é retomada na obra A
formação do espírito científico[8]:
«(...) É portanto necessário
aceitar uma verdadeira ruptura entre o conhecimento sensível e o
conhecimento científico», uma vez que o nosso conhecimento, num
primeiro estádio, se baseia nas imagens que captamos do mundo exterior
através dos nossos órgãos sensoriais, dando lugar a um conhecimento que
poderá estar deturpado devido às nossas próprias convicções, sem
nunca nos permitir chegar a um conhecimento sistemático e controlado das
coisas: «Um espírito pré-científico,
no momento em que tentamos embaraçá-lo com objecções sobre o seu
realismo inicial, sobre a sua pretensão em aprender o seu objecto ao
primeiro gesto, desenvolve sempre a psicologia desta estimulação que é
o verdadeiro valor da convicção, sem nunca chegar de forma sistemática
à psicologia do controle objectivo[9].»
De
acordo com os psicólogos
cognitivistas, e como também refere
Josette Sultan[10],
as imagens mentais são produtos da actividade humana, bem distintos das
imagens materiais. Uma das principais propriedades da imagem mental é o
seu isomorfismo relativamente à percepção.
«A imagem
mental conserva as propriedades estruturais, particularmente espaciais,
dos objectos representados. Enquanto instrumento de representação analógica
dos objectos do mundo, ela apresenta um carácter funcional e operatório.
Ela é um meio não só de convocar esses objectos»
ou seja, ela permite, tal como anteriormente referimos, evocar não só as
qualidades sensoriais dos objectos ausentes do campo perceptivo, como
permite também «operar transformações,
combinações e comparações.»
Estudos
experimentais efectuados por psicólogos permitiram pôr em evidência que
a «propriedade
de isomorfismo diz respeito não apenas às representações de objectos
estáticos, mas também aos processos postos em jogo no decurso das
actividades perceptivas e imaginativas e no decurso de acções sobre os
/ 15 / próprios objectos[11]»,
de tal modo que operações de «rotação mental» podem ser similares às
operações exercidas fisicamente sobre os próprios objectos reais.
Outros
trabalhos puseram também em evidência que a
imagem mental não se limita a ser uma simples cópia figurativa do
mundo real, mas é também e sobretudo uma construção activa operada
pelos indivíduos, apresentando uma função referencial (na medida em que
reenvia para o referente evocado pela imagem) e uma função construtiva («elaborativa»)
posta em jogo quando se trata de organizar conteúdos imagísticos em relações
novas. Estas duas características funcionais, já implícitas na definição
que fornecemos inicialmente, quando afirmámos que a imagem mental
constitui um facto psicológico que permite reconstituir a aparência
figurativa dos objectos na sua ausência e não só recordar factos
passados como antecipar e construir novas situações, foram também
postas em evidência por
Piaget e
Inhelder[12],
quando se referem a «imagens reprodutoras» e «imagens antecipadoras».
Para
Jean Piaget, as imagens que directamente captamos da realidade envolvente constituem
percepções da totalidade, pelo que as sensações visuais constituem
elementos estruturados: «Quando
vejo uma casa não vejo primeiro a cor da telha, o tamanho da chaminé,
etc., e finalmente a casa! Percebo logo a casa como "Gestalt" e
só em seguida passo à análise do pormenor.[13]»
Significa
isto que, segundo Piaget, os conhecimentos que adquirimos não resultam
imediatamente das imagens visuais que percepcionamos, mas da acção de
que a percepção constitui a função de sinalização. O conhecimento
humano resulta, pois, de duas fases importantes: a percepção dos
objectos, fase primordial, e a acção que exercemos sobre as imagens
percepcionadas. O conhecimento propriamente dito só se verifica a partir
da acção que exercemos sobre os objectos percepcionados. O conhecimento
não é uma mera contemplação, mas o resultado de uma série de acções
realizadas pelo sujeito observador, podendo ser consideradas duas formas
de transformar o objecto a conhecer: primeiro, através de uma acção física,
mediante modificação das posições, movimentos e propriedades para
exploração da natureza do objecto; segundo, através de uma sequência
de acções lógico-matemáticas, enriquecendo o objecto da observação
de propriedades ou relações novas que, conservando as anteriores, as
completam por sistemas de classificação, ordenação, enumeração,
correspondência, etc.
«Os
nossos conhecimentos não provêm unicamente nem da sensação nem da
percepção, mas de toda a acção de que a percepção apenas constitui a
função de sinalização. O próprio da inteligência não é,
efectivamente, contemplar, mas "transformar", e o seu mecanismo
é essencialmente operatório. Ora, as operações consistem em
/ 16 / acções
interiorizadas e coordenadas em estruturas de conjunto (reversível, etc.)
e se queremos atender a este aspecto operatório da inteligência humana,
é, portanto, da própria acção e não unicamente da percepção que
temos de partir.[14]»
De
acordo com o que nos diz António R. Damásio[15],
todo o pensamento humano está dependente das imagens. «O
conhecimento factual que é necessário para o raciocínio e para a tomada
de decisões chega à mente sob a forma de imagens.» E as imagens
podem ser de dois tipos: imagens perceptivas, as que chegam ao cérebro e
são portadoras de informações do mundo exterior, e imagens evocadas, as
que ocorrem à medida que «evocamos uma recordação de coisas do passado.» As imagens
evocadas podem dizer respeito tanto a factos ou processos de reconstituição
de factos passados, como a factos relativos ao futuro, apresentando umas e
outras as mesmas características.
As
imagens são geradas por uma maquinaria neural complexa de percepção,
memória e raciocínio, sendo a sua construção regulada, por vezes, pelo
mundo exterior ao cérebro, outras vezes inteiramente dirigida pelo
interior do nosso cérebro, mediante o processo do pensamento. E todas as
imagens «são baseadas directamente
nas representações neurais, e apenas nessas, que ocorrem nos córtices
sensoriais iniciais e são topograficamente organizadas.»
Ainda
segundo o que nos diz A. Damásio, todo o nosso pensamento é constituído
por imagens. Ainda que o pensamento inclua também palavras e símbolos, a
verdade é que tanto umas como outros são baseados em representações
topograficamente organizadas sendo, eles próprios, imagens; até mesmo os
símbolos utilizados na representação mental de um problema matemático
são imagens, pois se não fossem imagináveis, nunca os poderíamos
conhecer e manipular conscientemente. O que importa salientar «é
que as imagens são provavelmente o principal conteúdo dos nossos
pensamentos, independentemente da modalidade sensorial em que são
geradas...».
[1]
- Aristóteles, Metafísica,
I, 980 b 25-981 a 30.
[2]
- M. MORAIS, Imaginação,
In: Logos Enciclopédia
Luso-Brasileira de Filosofia, Lisboa, Editorial Verbo, 1989-92,
vol. II, cols. 1336-1340.
[3]
- M. MORAIS, op. cit. cols. 1338-1339.
[4]
- M. Morais, op. cit., col. 1339.
[5]
- Relacionado com o problema das imagens mentais seria igualmente
interessante referir não só as suas propriedades funcionais, como
também o seu carácter analógico. No entanto, por ultrapassar o âmbito
do nosso trabalho, remetemos para o artigo de Eliane VURPILLOT, "Image
ou image mentale", in: Grand
dictionnaire de la psychologie, Larousse, Paris, 1993, pp.
364-366.
[6]
- M. Morais, op. cit. col. 1340.
[7]
- G. BACHELARD, La psychanalyse du feu, Paris, Gallimard, 1972, pp. 9-10.
[8]
- G. BACHELARD, La formation de l'esprit scientifique, Paris, Ed. Vrin,
p. 239.
[9]
- E Bachelard reforça a sua afirmação com uma referência a Baldwin:
«Com efeito, como entrevê
Baldwin, este controlo resulta desde logo de uma resistência. Por
controle entende-se em geral the
checking, limiting, regulation of the constructive process.»
[10]
- Josette SULTAN, "Faire l'image: une activité de connaissance.
Éléments pour un cadre théorique". In: Faire/voir
et savoir. Connaissance de l'image et connaissance. Images
technologiques en arts plastiques et en histoire, col. Rencontres
Pédagogiques, nº 31, Institut National de Recherche Pédagogique,
Paris, 1992, pp. 16-32.
[11]
- Josette SULTAN, op. cit., p. 24.
[12]
- Vd. PIAGET e INHELDER, Les images mentales, Paris, P. U. F., 1963.
[13]
- Vd. Jean PIAGET, Psicologia da
inteligência, A. Colin, pp. 78-79.
[14]
- J. Piaget, op. cit., pp. 78-79.
[15]
- António R. DAMÁSIO, O erro
de Descartes. Emoção, razão e cérebro humano, 1ª ed., Mem
Martins, Publicações Europa-América, 1995, pp. 99-129.
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