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Desapareceu esse templozinho primevo, vazado nas proporções de um
oratório maior, e edificado tam perto do Tejo que as águas, por vezes
alteradas, conseguiam atingi-lo, ou pelo menos salpicar os fiéis que
nele entravam. Seria nervada a sua abóbada, com artesões finos radiando
de bocetes onde o alvenel esculpira a saudosista divisa da Rainha e o
emblemático pelicano. Existem, porém, ainda do lado norte, um gracioso
claustrim manuelino que mais parece um pátio de casa solarenga, e o
claustro construído no tempo de D. João III, clássico nas suas linhas de
arquitectura pura, sem ornatos. Na pequena crasta interessa o seu
pavimento inferior.
Para a visitarmos desce-se uma escada, que dá para o átrio da Escola
Profissional D. Maria Pia, revestida de bons azulejos do século XVIII,
com cenas de montaria ao veado e ao javali. Cobre o claustrim uma
abóbada de estuque que substituiu a primitiva, costelada por nervuras
que se cruzavam e nasciam de mísulas ainda hoje existentes, lavradas à
mourisca. Belos azulejos seiscentistas revestem as suas paredes como uma
tapeçaria de filigranados desenhos. É pelo pavimento superior - onde o
arquitecto que restaurou o mosteiro no século XIX, deixou tantas provas
de mau gosto, – que penetramos no antecoro do templo, ou capela de Santo
António forrada de painéis de azulejo com cenas de tebaida, e de telas
alusivas à vida do taumaturgo português, narrada enfaticamente por um
pintor do século XVIII, André Gonçalves, imitador de Marata, e que foi
encarregado de substituir no mosteiro os quadros de Bento Coelho,
destruídos pelo terramoto. E deste vestíbulo se passa ao coro superior,
a parte melhor do templo pelo seu ambiente, hoje bastante esfriado com a
ausência do culto. É todo ele um grande relicário de ouro, cheio de
quadros que revestem as paredes e o tecto de apainelados. Um friso de
telas, algumas com apreciáveis efeitos de luz e de cor, sobrepuja o
duplo cadeiral de boa talha, onde se abrem nichos que contêm as
relíquias de muitos santos e mártires. Ergue-se ao centro, como um
resplendor, encimando o vão envidraçado que dá para a igreja, um
tabernáculo, coroado pelas três virtudes teologais, e ladeando-o vemos
alguns dos melhores painéis do mosteiro, possivelmente integrados
outrora no grande políptico mandado fazer por D. João III para o
retábulo da capela-mor. Da escola portuguesa, essas tábuas são
atribuídas a Cristóvão Lopes. Delas se destacam, pela segurança de
técnica e beleza de cor, a Anunciação, com seu grande fundo bem
perspectivado de um palácio do renascimento, e a Entrega dos Estatutos
da Ordem de Santa Clara, representando na nave de uma igreja, em cuja
capela-mor se distingue o retábulo com um Calvário que dir-se-ia saído
da escola de Van der Weyden, a figura sorridente de S. Francisco de
Assis, acolitada por S. Boaventura e S. Luiz de Tolosa, tendo diante de
si, ajoelhadas, Santa Clara e as suas duas companheiras Santa Agnés e
Santa Colecta, e como que a participar daquela cerimónia longínqua da
Idade Média, vê-se uma professa coroada, talvez alusão à Rainha D.
Leonor, que se dirige para o Poverello, acompanhada de duas monjas, e
conduzindo numa almofada a outra coroa que parece lhe vai oferecer / 10
/ com humildade. Excelente debuxo, o deste painel, onde há para admirar
o realismo dos personagens no expressivo das cabeças cheias de carácter,
o acabamento, a virtuosidade na pormenorização das roupagens e das jóias
que nelas brilham com recato.
Os excelentes retratos de D. João III e de sua mulher a rainha D.
Catarina, ambos graves na sua solenidade sombria, que ali se encontram,
também presumivelmente fizeram parte deste conjunto artístico, como seus
doadores, e de tantas outras riquezas, ao mosteiro da Madre de Deus.
Colocado do mesmo lado, e num plano inferior ao da outra tábua do
políptico, o Pentecostes, está o quadro Panorama da Palestina,
um testemunho ainda vivo da devoção da Fundadora, que o recebeu, segundo
a tradição, das mãos de seu primo Maximiliano I, rei dos Romanos e
imperador da Alemanha, espírito culto, a quem os artistas, como Alberto
Dürer, tam grande protecção deveram. Intimamente relacionado com a corte
portuguesa, por várias vezes ele patenteou bem a estima que em especial
lhe merecia a viúva do seu generoso resgatador, mantendo com ela
correspondência em latim e oferecendo-lhe valiosos presentes que não
deixavam de ser largamente retribuídos. Este painel tem todos os
caracteres de proveniência germânica; não é uma obra-prima mas vale como
documento artístico. Pertenceu talvez a um oratório gótico, como o
indicam os vestígios da moldura conopial que o enquadrou outrora. A
Palestina é representada numa fantasiosa visão de conjunto dos lugares
santos, onde decorrem as cenas da Paixão. A própria D. Leonor vestida de
nona foi aposta ali por um artista nosso, ajoelhada diante do seu livro
de horas.
Mas passemos à igreja, reparando primeiro no claustro, contemporâneo da
reedificação joanina, muito clássico, com as suas paredes cobertas de
azulejos provenientes do convento das Grilas, e também timbradas com o
pelicano e o camaroeiro, divisas muito provavelmente utilizadas dentre
os restos do edifício primitivo. Ao meio da crasta, há uma fonte gótica
onde a água flui, caindo no tanque, de duas taças sobrepostas,
assentando a maior num pilar central, ladeado de colunelos e ornado com
meninos ali dispostos à maneira de botaréus, suportando o peso e
comunicando uns aos outros, por filactérios, estes dizeres: Ajuda-me
bem – O melhor que posso – E tu que não ajudas – Não posso mais – Muito
pesado – Deus nos ajude.
Uma dependência do claustro chama ainda a nossa atenção: é a capela
árabe, nome que dão a uma sala quadrada pouco conhecida por ser raras
vezes visitada e que merece menção muito especial pelo seu friso
renascença e pelo tecto em madeira, bom espécime de trabalho mudejar,
ornado ao centro e nos ângulos com pendentes em estalactites douradas,
sendo o resto dos motivos geométricos traçados não com fitas, como é
mais característico no alfarje, mas por meio de uma corda, esculpida na
madeira e dourada também.
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