|
Da primitiva traça do templo pouco mais existe do que, na fachada do
edifício voltada ao sul, o pórtico manuelino reproduzido num painel
valioso, / 7 / como adiante se verá, e os restos de uma torre de
quadrangular alçado, outrora rematada por elegante coruchéu. Uma ou
outra pedra conservada nas arrecadações..., e eis tudo o que ficou do
original quinhentista, cuja alma gótica inteiramente se perdeu com o
decorrer dos anos. E não foram precisos muitos para que a alteração da
fisionomia arquitectónica tivesse sido completa: a modificação deu-se
logo no tempo de D. João III que monumentalizou mais as suas linhas,
certamente num sentido clássico, ampliando o convento e transformando
até a pequena igreja construída pela fundadora, em simples casa do
capítulo. É muito provável que o edifício joanino conservasse largo
tempo o seu aspecto, sem alterações de maior, como se pode ver numa
gravura – exemplar raríssimo – reproduzindo o convento, da autoria do
pintor holandês Stoop, que esteve ao serviço de D. João I V: o artista
perspectivou de longe um' grande templo sobre um envasamento, perto do
cais bem construído e animado pela faina da beira-rio, tendo à esquerda
uma ampla escadaria que conduz ao largo empedrado da igreja, de alta
fachada, com um campanário prismático a oeste, e onde' se abre o pórtico
clássico e se desenha mais para oriente um corpo enquadrado por
pilastras que deve corresponder ao cruzeiro – encimado ao centro por um
coruchéu piramidal – ornado com colunas em que se esteia o frontão, cujo
vértice ascende à linha da empêna da nave. A calcular pelas figurinhas
populares que Stoop distribuiu pelo areal junto aos barcos, pelo cais,
adro e escadaria, a igreja devia ser enorme, contrastando, portanto
muito, com o modesto templozinho erguido pela Fundadora.
D. João V não deixou de beneficiar o mosteiro da Madre de Deus,
privilegiado sempre com a devoção e liberalidade dos monarcas seus
predecessores. Talvez não tivesse alterado sensivelmente o que estava,
as linhas ainda sóbrias do clássico, mas sem dúvida o Magnânimo
contribuiu para o maior enriquecimento da fábrica conventual, já de si
afamada pelas preciosidades, doadas desde a sua fundação pela
munificência régia.
O terramoto de 1755, que destruiu da velha Lisboa tantas construções
magníficas, com seus tesouros artísticos de valor, incalculável arruinou
também o mosteiro da Madre de Deus, desmoronando-lhe a igreja cheia de
maravilhas, e de tal modo que pode dizer-se tê-la D. José totalmente
reedificado. Inutilmente procuramos na caminhada até Xabregas restos
daqueles antigos palácios que outrora se levantavam na margem do Tejo,
na sua maioria construídos nos tempos áureos do ciclo heróico das
descobertas. Desse florilégio arquitectónico só remanesce a fachada da
igreja da Conceição Velha, e uma modesta parte da frontaria da Casa dos
Bicos, construída em cerca de 1523 por Brás de Albuquerque, filho de
Afonso de Albuquerque, e onde foi a sede da associação do comércio da
Índia.
Também da igreja da Madre de Deus só hoje aflora da primitiva fachada,
voltada ao sul, o pórtico / 8 / manuelino, que não é dos melhores
exemplares do estilo, com seus arcos trilobados e intradorso ornado de
vegetação em relevo, entre decorativos colunelos de fustes retorcidos e
capitel em coroa, rematando pelo pentágono de lados curvilíneos, onde se
inscrevem as armas reais ladeadas pelo camaroeiro e pelo pelicano, as
divisas simbólicas de D. Leonor e de D. João II. Foi o arquitecto
Nepomoceno que no ano de 1872, ao restaurar o monumento, pôs a
descoberto este portal que se encontrava entaipado – por causa das
cheias – desde a época em que D. João III ali fez grandes remodelações.
Como seria o templozinho originário, traçado pela Fundadora? Com sua
silharia lavrada, e, interiormente, com seus painéis magníficos, ele
lembraria um grande escrínio como aqueles que os toreutas ogivais
cinzelavam e enriqueciam das mais edificantes pinturas. Uma guirlanda
gótica, diferente da que lá se vê hoje, coroaria a nave e a capela-mor
com a sua reduzida ábside rectangular. Medalhões de faiança esmaltada
vindos das oficinas Della Robbia animavam as paredes com a sua viva
policromia. Uma rosa flamejava na fachada voltada a poente onde abria
outro pórtico, talvez alpendrado, dando para o coro das monjas, e que
desapareceu com a anexação ao templo das construções mandadas fazer por
D. João III.
A Fundadora deve ter sido de um apuradíssimo gosto no levantamento deste
edifício, como já fora noutros monumentos que por sua iniciativa se
erigiram: assim a capela do hospital, construída em 1503 e que tem o seu
nome, nas Caldas da Rainha, hoje igreja matriz da vila, ou a outra que
erigiu no mosteiro da Batalha, a mais bela em decoração que se vê na
rotunda da «Capela Imperfeita), onde jazem seu marido D. João II e seu
filho o Príncipe D. Afonso, caído nas areias de Almeirim. D. Leonor
exerceu sobre a arte do seu tempo uma influência enorme, tam decisiva
como a do irmão, D. Manuel I. Sua mãe, D. Beatriz, foi um espírito culto
a quem o renascimento literário muito deveu nos seus inícios. D. Leonor
seguiu o exemplo materno: intelectual, também, animadora das artes e das
letras, o seu nome aparece associado a iniciativas notáveis como a da
impressão da Vita Christi, em 1495, hoje um precioso incunábulo
para a história da gravura e da tipografia europeias. Ela, «uma
feminista segundo o cânon neo-platónico», preside aos jogos de «gaia
ciência», «cria em volta de si esse doirado gineceu da sua donzelaria,
que nos serões da corte inspira a casuística amorosa dos poetas
palacianos», rodeia-se dos pintores, iluminadores, arquitectos,
escultores, ourives e letrados que a coadjuvam na sua obra de renovadora
inspirada. Gil Vicente fez parte deste grupo ilustre de artistas, e
fê-lo duplamente na qualidade de poeta e de lavrante. Ele foi chamado
pela Rainha a colaborar nas festas do mosteiro da Madre de Deus,
escrevendo a letra e compondo a música do Auto da Sibila Cassandra que
em Xabregas se representou na sua régia presença, no ano de 1513, por
ocasião das matinas do Natal.
|