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Ao entrar na igreja reparamos em duas lápides tumulares referentes à
Fundadora e a sua irmã / 11 / D. Isabel, Duquesa de Bragança. Do
claustro primitivo, onde jaziam em campa rasa, sob um epitáfio humilde –
Aqui está a Rainha D. Leonor – foram os seus ossos, para aquele
lugar mais tarde trasladados e piedosamente limpos antes de serem
encerrados num vaso de barro pelas infantas D. Isabel e D. Maria.
Penetremos na sombra do coro baixo: mal se vêem os quadros que o enchem,
distinguindo-se melhor o efeito policrómico dos azulejos quinhentistas
verdes e brancos, dos sevilhanos em relevo alfarje, e dos do século XVII
tam decorativos no seu revestimento que lembra tapeçaria. Subamos alguns
degraus do sub-côro sombrio, e logo nos encontramos na nave da igreja da
Madre de Deus, um templo do século XVIII, alto e bem iluminado, em que a
talha refulge mas não recama inteiramente os muros donde pendem quadros
sem valor. Também não merecem grande atenção os azulejos. Na parede do
lado da Epístola sobressai o púlpito talhado em formas exuberantes por
Félix Adauto da Cunha, que muito trabalhou nas obras do mosteiro. A meio
da igreja há uma balaustrada de ébano e mosaico florentino que D. João V
mandou fazer. Transpondo-a, encontramo-nos perto do arco triunfal. Ao
alto, enche o tímpano uma enorme e vistosa tela de André Gonçalves, com
a Coroação da Virgem, e sobre o fecho, no mármore, recortam-se
com elegância as armas de D. José I, o reedificador da Madre de Deus.
Se as telas da nave não são para que as fixem, valendo apenas num efeito
de conjunto, o mesmo se não pode dizer das tábuas que foram adaptadas ao
arco triunfal, que dominam sem a sua cor gritar ou as suas dimensões
surpreenderem: eis os restos do primeiro retábulo assim disperso! Duas
delas, voltadas para a nave, são de uma beleza tranquila. Representam S.
Francisco e Santa Clara, e é um enlevo fitá-las demoradamente,
abstraindo das molduras, do que está à volta, copioso em ouro e lavor,
para sentir a profundeza do seu horizonte clareado suavemente por uma
luz de vesperal beatitude. Os outros quatro, no interior do arco, e
ladeando o altar-mor, mais vivos em cor, são, como os primeiros, feitos
por mão de mestre, neerlandês, certamente. Ficariam bem no templozinho
primitivo, na harmonia gótica do conjunto, de uma simplicidade mais
recolhida e franciscana.
No altar lateral, da parte do Evangelho, guardam-se algumas relíquias de
Santa Auta – o seu crânio envolvido em prata e outros ossos que tiveram
antigamente uma enorme devoção. E mais despojos possuía o mosteiro que a
devoção encerrara em cofres de ouro, de prata e de marfim. A esta série
deve pertencer o formoso relicário da rainha D. Leonor exposto hoje no
Museu Nacional de Arte Antiga: a elegante edícula de ouro, pedradas e
translúcidos esmaltes, foi feita uns catorze anos depois da custódia de
Belém, a obra-prima do ourives de D. Leonor, Gil Vicente, o próprio
génio dos autos, que sem dúvida deixou mais peças da sua lavra, perdidas
ou desconhecidas hoje. O ostensório é uma concepção ogival, enquanto o
relicário da Madre de Deus é um templete clássico; mas dir-se-ia que as
duas composições provieram do mesmo autor. / 12 /
Entremos por fim na sacristia, construída entre 1746-1750, e os nossos
olhos que ainda há instantes penetraram na claridade sobrenatural dos
quadrozinhos da nave, restos do políptico primitivo, ficam deslumbrados:
é um pequeno recinto, mais requintado do que místico: nas paredes,
azulejos vistosamente decorativos, e uma série de telas de André
Gonçalves historiando a vida de José no Egipto, autor também da
Apoteose da Virgem que se vê no tecto; ao centro, sobre uma mesa de
mármore, a pia da água benta que pertenceu à Fundadora: um cubozinho de
pedra lavrada no estilo ogival, com o pelicano, o camaroeiro, as armas
reais e uma inscrição gótica; ao fundo, em frente à janela, um arcaz
precioso, em pau-santo, entalhado por Félix Adauto da Cunha, nesta obra
mais consumado artista do que no púlpito da nave, de uma sobrecarregada
opulência, complicado em ornatos de retorci das e túrgidas folhagens. No
arcaz admira-se o trabalho minucioso e fino do marceneiro e do toreuta
que moldou a espelharia dourada, as argolas e as vieiras de bronze que
tanto realçam na madeira escura do móvel, ainda embelezado com os três
quadros quinhentistas adaptados ao espaldar e representando Santa Luzia,
Santa Rita e Santa Catarina. Os olhos detêm-se novamente nas duas tábuas
que servem de portas aos armários abertos na parede, de um e de outro
lado do arcaz, interiormente guarnecidos com empanques das nossas velhas
naus. Do melhor que possui a arte portuguesa, essas tábuas, tidas
primeiro como de Cristóvão de Utrecht, encontram-se hoje incluídas na
obra de Gregório Lopes, artista contemporâneo do esplêndido ciclo de
ouro da nossa História. Pertenceram noutros tempos ao retábulo da capela
que D. Leonor consagrara a Santa Auta no mosteiro da Madre de Deus, e
onde foram guardadas as relíquias desta mártir oferecidas à Rainha pelo
imperador Maximiliano I. Trata-se de um belo tríptico que tinha ao
centro o Martírio das Onze Mil Virgens – na posse do Museu
Nacional de Arte Antiga – e lateralmente, no batente da esquerda, o
Encontro em Londres de Santa Orsula e Conan, e no batente da
direita o seu Casamento na catedral de Mogúncia. Mas fechando o
tríptico veríamos no anverso das duas tábuas o embarque na Áustria do
corpo de Santa Auta e a chegada deste a Lisboa, ao convento da Madre de
Deus.
Gregório Lopes, como que evocou um mistério, daqueles
representados nas catedrais, pintando a união mística dos noivos, ao som
de um quinteto de negros – verdadeiro jazz, na acepção da palavra
– que tocam bombardas e sacabuxa, numa tribuna donde pendem colgaduras
ricas. Santa Auta assiste com os outros personagens, ricamente ataviados
no seu traje de corte, ao enlace celebrado pelo bispo de Mogúncia
solenemente paramentado.
Sente-se um ambiente de maravilhoso no Encontro dos noivos.
E «coisa mais bem lustrosa», como diziam os antigos, é o «Saymento» da
nau para o mosteiro da Madre de Deus, com as relíquias de Santa Auta
encerradas num cofre de madrepérola coberto por panos bordados a ouro, e
transportado aos ombros dos frades sob o pálio, seguido do / 13 /
arcebispo de Lisboa, com clerezia e povo. E ao fundo, a igreja com seu
pórtico "de lóbulos mais ultrapassados e botaréus mais robustos do que
os actuais, e ao lado, numa tribuna improvisada, D. Leonor a rezar, de
mãos postas, acompanhada talvez de Sóror Colecta, a primeira abadessa do
mosteiro. No primeiro plano, Santa Auta com a palma do martírio e a
seta, lendo um breviário, e à esquerda, mais afastado, um barco
conduzindo o seu remador e um instrumentista tangendo no nymphate
alguma composição sacra para ritmar ou acompanhar o cortejo que
silencioso se encaminha para o templo.
No painel central, originariamente rectangular, desenrola-se o episódio
mais pungente da vida de Santa Úrsula e das suas companheiras,
massacradas pelos hunos ao chegarem a Colónia, vindas da Basileia e de
Roma, na companhia de dois cardiais e do próprio pontífice, cuja bênção
elas tinham ido receber à Cidade Eterna.
Gregório Lopes proporcionou-nos neste quadro de um muito sóbrio
dramatismo «uma magnífica sugestão da vida marítima de Portugal durante
o seu período heróico». É no próprio Tejo, «ainda que estilizado» que
ele representou esta passagem do martírio ursulino: lá se vê uma frota
das nossas velhas naus e caravelas, algumas com seus panos enfunados
pelo vento que crispa de maretas o rio glorioso; no cais, uma multidão
de bem-aventurados, e entre eles o papa lançando a bênção, e uma
religiosa coroada, possível personificação de D. Leonor, a abrir as mãos
no gesto de orante e desviando os olhos do massacre. Todos esperam o
batel, onde vem Santa Auta, em traje de corte, com a seta na mão, e
acompanhada de uma figurinha régia, também, que, com gracioso ademane,
inclina a cabeça na atitude de prece. Mais ao centro do painel, a virgem
britânica é trespassada pela flecha mortífera do huno, que cumpre as
ordens de Átila, enquanto Conan resignadamente aguarda, de mãos postas,
a morte que ao lado vai prostrando outras heroínas decepadas pelo
alfange dos bárbaros.
O cristianismo hialino de Jacques de Voragine envolve estes
protagonistas da lenda áurea, pintados com a mais tocante beleza por um
artista que de Memling teve a «doçura grave» e de Carpaccio a
predilecção pela áulica sumptuária.
Obra de um iluminador, vista ou realizada em grande, habituado a
miniaturar pergaminhos de missais e de livros de horas, tal nos parece o
tríptico admirável!
Gregório Lopes assistiu, como pintor régio, a festas de aparato. Ele
deixou reflectir no cerimonial destes painéis o esplendor da nossa
liturgia e dos serões palacianos, aljofrando de pérolas, de jóias
variegadas a indumentária vistosa das figuras, tocadas de idealismo, de
uma graça supra-terrestre! Olhando-as, somos levados a recordar a
descrição de Garcia de Resende da Hida da Infanta dona Beatriz pera
Saboya, assunto que uns anos mais tarde Gregório Lopes também pintou
à maneira de precursor dos grandes marinhistas de hoje, sabendo
tonalizar o céu e a água singrada pelas naus e caravelas das
descobertas. Era, na verdade, Portugal, a este tempo «o mais rico Reyno
de Christãos». / 14 /
Gregório Lopes não fantasiou a riqueza daquelas jóias, a opulência dos
brocados e a galanteria dos personagens.
Quantas obras mais não existiam no mosteiro? No Museu Nacional de Arte
Antiga, ainda pode ver-se outro tríptico que lhe pertenceu, e da autoria
provável de Gossen van der Weyden. Este remanescente das preciosidades
que noutros tempos guarneceram o convento, embora tam desbaratado,
ajudará a reconstituir antigos aspectos da Madre de Deus.
O velho paço de Enxobregas foi doado por D. João IV à condessa de Unhão,
e pertenceu mais tarde aos marqueses de Niza, sendo por fim adquirido
pelo Estado, que aí instalou o Asilo de D. Maria Pia, instituição a
quem, desde 1871, foi anexado o convento depois da morte da última clarista.

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