E tanto estas peças de arte necessitam de movimento que nos apetece vê-las na mão, para as /  11 / observarmos por todos os lados, expondo-as aos mais variados efeitos da luz.

Assim, julgo que o Museu de São Roque é um assunto interessantíssimo para um documentário artístico, que merece ser realizado, focando os objectos em vários ângulos e planos, com a ampliação em destaque de certos pormenores e caprichosas variações de iluminação, e cuja resultante será produzir em nós uma impressão tão viva e completa como inesperada.

É logo um filme que imaginamos, quando atravessamos o primeiro salão do Museu entre duas filas de manequins deslumbrantemente paramentados, no topo das quais dois pluviais estupendos representam a riqueza e a arte do bordado levadas ao auge.

Nas paredes, estão encaixilhados reposteiros, frontais, estolas, panos de púlpito, véus de ombros; e em armários, as rendas preciosas e as finíssimas roupas brancas, almofadas, bolsas de corporais, véus de cálice, livros e as mais finas peças modeladas e cinzeladas pelos primorosos artistas que colaboraram nesta gloriosa tarefa: relicários, sacras, cálices, galheteiro, campainha, turíbulo, apagador, naveta e o purificador – jóia suprema, coroada por duas encantadoras cabecinhas de anjos, de inexcedível primor.

Sobre um bufete, numa grande vitrina cuja talha é de Leandro Braga, estão dispostos com perfeição quatro esplendorosos relicários de prata doirada. Os dois do centro figuram um corpo arquitectónico, com colunas salomónicas cingidas de festões. As faces anterior e posterior são dois pórticos, que patenteiam a relíquia. Em cada uma das faces laterais está um nicho com uma figura e a cornija é encimada por anjos. Os medalhões das bases são alusivos ao martírio dos dois santos, Santo Urbano e S. Félix. Os dois outros relicários, contendo um as relíquias de S. Valentim, e o outro as de S. Próspero, são em forma de urna quadrangular, em cuja tampa esvoaçam anjos, que sustentam nas mãos coroas e palmas. Do pedestal sobem rolos de nuvens, sobre as quais duas esbeltas figuras conduzem triunfalmente a urna venerável. Nas bases, as armas reais e medalhões com cenas do martírio de S. Valentim e de S. João Baptista, em alto relevo.

A atmosfera desta sala é ainda enobrecida pelas três grandes cortinas de Anvers pavonaço, com bordado a oiro em relevo representando os instrumentos da Paixão, e que serviam para cobrir os quadros da Capela durante a Semana Santa.

A parede da galeria, que une os dois salões, revestida de porteiras é um teclado de lhama, ressumando oiro. Dois castiçais para credência, de cinzelado perfeitíssimo, retiram-se discretamente para o intervalo das janelas – e dá vontade de examiná-los com uma lente.

À sala seguinte preside uma grande Cruz, ladeada pelos seis castiçais da banqueta, sobre um frontal de prata e lápis-lazúli, cujo friso é sustentado por dois anjos magistralmente modelados.

Mas o que domina tudo são os dois tocheiros monumentais, que logo nos surpreendem de longe pela esbelta e bem proporcionada linha de contorno e que, ao pé, nos prendem e subjugam pela variedade e suma perfeição das inúmeras figuras e ornatos, / 12 / em que se juntam flores, frutos, louros, frondes, folhas aquáticas e farpadas, conchas, festões, etc. A severidade dos doutores da igreja, que se sentam nas bases, primorosamente drapejados, contrasta com figuras galantes de querubins, em atitudes requebradas, que lembram Tiepolo, Watteau e Boucher.

Todavia não alonguemos este discurso, pois a descrição resulta vã perante tão meritórios e tão numerosos detalhes, formando uma unidade tão perfeitamente equilibrada que não é mesmo possível dar aquilo que se chama uma pálida ideia. Se estes tocheiros se quebrassem em mil fragmentos, teríamos outras tantas peças de arte; mas ligá-las com o equilíbrio que apresentam seria o privilégio de um artista superior. E na arte de descrever era necessário possuir um dom de compositor semelhante ao desse artista raro.


Dois episódios dramáticos se podem enxertar neste filme de arte e de requintada cultura.

Primeiro foi o Terramoto de 1755, que produziu tantos destroços, aniquilou tantos templos e apenas destruiu a cimalha da fachada da igreja de São Roque, não atingindo a capela de São João Baptista nem o seu tesouro!

Em 15 de Fevereiro de 1808, por ordem do general Junot, são remetidas para a Casa da Moeda, bastantes peças deste tesouro, entre as quais os dois tocheiros grandes e o frontal de prata e lápis-lazúli. Cinco dias mais tarde já estavam fundidos um vaso com sua tampa de prata dourada, um apagador e quatro relicários, tudo de prata.

Pouco tempo depois, o general francês derrotado, embarcava no Tejo sem levar na sua bagagem as barras de prata em que pretendera transformar tantas e tão mimosas preciosidades artísticas...

Assim escaparam duas vezes, bem milagrosamente de um sismo formidável e da bestialidade humana!

Mas há outro risco que é fatal para os objectos de matéria preciosa: o sumiço! Por este processo desapareceram desta colecção numerosos objectos de prata e alguns totalmente de oiro. Com documentos se verifica que faltam: uma cruz processional de 13 palmos de altura, incluindo a haste, trinta castiçais com relevos, quatro lanternas para servirem na ocasião do viático, seis varas de pálio, um sacrário, espevitadores, caixas para hóstias, galhetas, lâmpadas, etc., – tudo de prata lavrada e doirada; de oiro, sumiram-se: uma custódia para exposição do Santíssimo, um cálice com sua patena, uma píxide de oiro de 24 quilates, com figuras e baixos-relevos, e duas galhetas com seu competente pratinho, semelhantes às que havia na capela pontifícia.

Contudo, não lastimamos a sua perda – de tal modo é notável tudo o que por fortuna existe ainda, formando tão portentoso conjunto.

          Lx.ª
20 de Setembro de 1933

 

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