Contemplando-se em conjunto o majestoso claustro, dir-se-ia que a sua concepção foi una, brotando de um só jacto da imaginação criadora e num ritmo de inspiração tranquila, como o movimento do mar em dias de bonança. Alçado manuelino e arcatura clássica prendem-se numa concatenação tam gémea de linhas, que os dois espíritos penetram num conúbio íntimo a sua idealidade antitética, em resoluto ensaio de aliança, cristianismo e paganismo unindo-se um momento em linhas osculadoras antes do triunfo final da Renascença. Repete-se aqui, na pedra, o enlace visionado por Camões na sua epopeia, a fusão do helenismo com a civilização cristã, e assim, o meio ambiente agitado por aspirações complexas estimula a sensibilidade dos artistas errantes, como que nacionalizando-os e fazendo-os, pela sua força propulsora, participar em visões heróicas.

A autoria do projecto dos Jerónimos, como pensamento inicial, não pode atribuir-se com segurança a determinado arquitecto. Desconhecedores das condições da produção artística na época medieval e ainda na face individualista da primeira Renascença, só em casos de uma documentação incontestável se pode concluir dos mestres que conceberam determinados monumentos. Boytac vem sendo considerado como ideador da primitiva traça, citando-se em abono desta identificação a semelhança da planta da igreja dos Jerónimos com a da igreja do Convento de Cristo, em Setúbal, disposição, aliás, tradicional entre nós desde o românico, como já fizemos observar. Não se pode nesta exposição sumarizada tratar a questão Boytac que interessa mais os arqueólogos que os críticos e os estetas. A sua actividade certa data do tempo de D. João 11, quando em 1490 Justa Rodrigues, ama de D. Manuel, mandou construir o aludido Convento de Setúbal. Em sonhos nas Itálias o viu e o trazia debuxado, segundo a lenda da Cr6nica Seráfica, o que é contraditado pelo goticismo do monumento, onde nem sequer o romanismo balbucia, a não ser nos meios berços das naves laterais. O documento mais antigo da sua intervenção nos Jerónimos é o caderno de férias de 1514, onde se vê que ali voltou a trabalhar depois de se ocupar de várias obras na Batalha, em Sintra e em Coimbra. Nesse ano fora a África em inspecção de edificações, voltando a Belém depois de três meses de ausência, mantendo-se aqui ainda em 1516, reaparecendo na Batalha em 1519, onde, segundo S. Luís, na Memória, já havia trabalhado em 1509, 1512 e 1514. É estranho este abandono frequente de Belém, dado o caso de ser ele o mestre inicial e principal; todavia, pela sua actividade infatigável e solicitações constantes, havemos de o considerar como artista de fortes recursos, devendo ter tido no convento hieronimita, posto durante a sua gerência as obras se arrastassem, uma intervenção de mestre respeitado. Apesar de ser tomado / 13 / como um corifeu do goticismo, quando dirige os trabalhos em 1516, sendo Castilho simples oficial, já aparecem nas ementas dos seus homens frequentes verbas para se pagarem pedras lavradas ao romano, sendo por isso a prática do antigo já vulgar nos alvenéis. Assim é observado nos pilares da igreja onde se manifesta a concorrência híbrida dos dois factores e nas arcaturas internas, manuelinas, do lanço norte do claustro. Até que ponto o traçado primitivo podia ser episodicamente modificado no decurso da construção pela intervenção decorativa? Era pretender discriminar o que poderia haver de individualista em chusma de tam mesclada étnica, neste momento a debater-se entre a força tradicional e o atractivo da novidade.

João de Castilho, ali entrado em 1516, depois de terminar a primeira parte da sua obra em Tomar, e nomeado mestre em 1517, é que dá maior impulso aos trabalhos, encarregando-se de uma empreitada considerável: «Item João de Castylho mestre empreyteiro da crasta primeyra e capytollo, sancrystia e portal da travessa ade trazer cento e dez hofyciaes e adeaver por mes cento e corenta mil rs.». É pois, Castilho, o continuador e o executor máximo de um plano anteriormente concebido e já iniciado, com o períbulo do templo erguendo-se, porque se lavram colunas para as frestas e capitéis para as capelas do cruzeiro, bem como pedras para a cimalha; e é uma colmeia cosmopolita trabalhando com intensidade sob" a direcção de um homem que uma longa permanência entre nós, bem como uma simpatia afectiva, tornou nosso compatriota e cujo exemplo de enraizamento nacionalizou tantos desses artistas transumantes. Porque se as companhas de Boytac eram exclusivamente de portugueses, as de Castilho e Chanterene são de origens diversas franceses, flamengos, biscainhos, espanhóis de variadas províncias, portugueses, carência de italianos. É que a primeira Renascença veio por via francesa imediata com o grupo de Coimbra e mediata através dos artistas espanhóis que antes de nós a haviam recebido. Uma tal babel de esforço artístico havia de, forçosamente, trazer uma certa disseminação interpretativa, mesmo técnica, cada qual com o dialecto da sua sensibilidade, mas tendendo, pelo trabalho comum e pelo entusiasmo que lhe insuflava o momento histórico português, para uma unidade de pensamento grandioso e homogéneo.

Perto dos Jerónimos, à beira do Tejo para poente, como jóia arrendada e desprendida do arcaboiço hieronimita, levanta-se o baluarte de S. Vicente, tritão pela força, ondina pelo donaire, refolhando-se em gruta encantada para as Tágides de Camões ali tecerem as teias das lendas oceânicas.

O artista que o concebeu, manifestando-se fiel à orgânica ogival dentro da tradição medieval hispânica, assentou os sólidos flancos da cantaria sobre a ilhota ribeirinha alcandorando, no interior da sua massa cúbica, quatro salas abobadadas.

Como primeiro reduto, avança um bastião hexagonal, ameado de escudetes com cruzes de Cristo, intervalados por guaritas de cúpulas gomeadas e / 14 / tendo nos silhares oblíquos as estreitas vigias das casamatas, por onde, ao rés das ondas, espreitavam as bocas das colubrinas. Um calabre cinge-lhe a amarra a toda a volta, de onde a onde enrolado em nós como envolvendo o costado de um galeão em repouso. Dentro, um pequenino claustro de arcatura apontada escava-se, subjacente à esplanada do bastião, coberto no seu períbolo poligonal com abóbadas fortemente cintadas por arcos plenos.

Sobre esta base, ergue-se a torre, de moderada altura, tendendo também para um cânone de horizontalidade, com as salas interiores abobadadas, as três inferiores de tijolo e tipo barrete de clérigo, a superior nervada, com liernes e terceletes, as ogivas dividindo-se em dois dos cantos para darem passagem às chaminés de dois fogões de ângulo das salas inferiores. No cruzamento dos arcos, rosetões com as quinas, a esfera armilar ou cruzes de Cristo.

Exteriormente, nas fachadas, filigranados varandins de bengalow indiano firmam-se em cachorros salientes como topos de travejamento, esculpidos os das sacadas laterais em sinuosidades de ornamentação lenhosa que o salgadio vai lurando como rochas de gruta marinha. Na sua ornamentária concorrem todos os elementos empregados pelo gótico-manuelino, arcos de volta redonda ou policêntricos, capitéis enrolados como turbantes, tetralóbulos, cruzes de Cristo, a esfera armilar, o motivo do torçal que sublinha cimalhas e parapeitos até ao terraço superior.

Por cima do andar das. varandas, também sobre cachorrada saliente, avança o caminho de ronda, repetindo-se as amei as guarnecidas de escudetes, e no chão da estreita passagem, ingénuo arremedo de castelo roqueiro preparado para longos e cruentos cercos, óculos de mata-cães abrem-se sobre o espaço para com o azeite a ferver e o chumbo derretido se repelir o exército invasor, a ameaça barbaresca, hostes que a imaginação antes visiona compostas das cinquenta filhas de Nereu, avançando com coroas de algas, ao som dos búzios, cavalgando delfins familiares. Uma porta levadiça concorre na entrada com mais um elemento de defesa feudal... Cinzelada como um tabernáculo, testemunha de glórias e desventuras, dir-se-ia um sonetilho plástico trabalhado ao ritmo da redondilha pelas mãos do aurífice-poeta Gil Vicente.

Apesar de tam aérea graça, a sua estrutura potente revela. a técnica de um arquitecto seguro dos seus processos, na posse de conhecimentos hidráulicos, por certo empíricos, em todo o caso consumado mestre de pedraria. Francisco de Arruda que em dois de Outubro de 1516 recebeu como mestre do baluarte do Restello setecentos e sessenta quãtos lavrados, é considerado o autor do projecto que uma leitura superficial atribuiu a Garcia de Resende. Segundo um documento sem data citado por Sousa Viterbo, Diogo Boytac também dirigiu as obras, ou como arquitecto ou como simples vedor.



 

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