O pórtico lateral, denominado por Damião de Góis porta da travessa, é a estrofe mais sonorosa deste grandioso poema. É da autoria de João de Castilho que dela tomou a empreitada juntamente com as do claustro, da sacristia e da sala do capítulo. Escava-se em galilé de abobadilha nervada, o arco-pleno composto de duas fachas de decoração vegetalista / 9 / entre toros lisos, a exterior de folhas de carvalho, a interior de pâmpanos modelados com fluxuoso e delicado naturalismo, onde meninos. espreitando por. entre as parras põem uma sorridente nota dionisíaca. O toro interno encurva-se em canopial cuja ponta se embebe no supedâneo que suporta a imagem da Virgem erecta na luz da janela. O tímpano, que como um sobrecéu domina o vão duplo da porta, é dividido por molduras em dois triângulos curvilíneos e um losango central onde se esculpe o brasão das quinas, aqueles ocupando baixos-relevos em que no meio de uma flora tropical, dispersa e de composição quase infantil, se representam dois episódios da vida de S. Jerónimo, a cura do leão à esquerda, e à direita a perene adoração do anacoreta ante a imagem do Crucificado. No mainel da porta poisa como vimos a figura do infante D. Henrique, de saial curto, com as quinas sobre as quais se traça o banco de pinchar, tendo na mão a espada com a ponta para baixo e não para riba como diz Damião de Góis.

É o tipo convencional dos retratos alegóricos da Renascença, maturidade meditativa, barba veneranda, bem longe do semblante glabro e seco da icónica autêntica, como se vê nas tábuas suas coevas, por isso denominadas do Infante.
A distribuição escultural reproduz com maior grandeza o assunto do pórtico de Tomar, também da autoria de João de Castilho, mas aqui em conclave completo dada a amplitude e sumptuosidade da moldura. Dois poderosos contrafortes ladeiam a composição trepando até à cimalha e contendo em baixo a teoria do Apostolado, graves figuras à sombra de baldaquinos flamejantes, pousadas sobre mísulas esteadas em colunelos ornamentados que apoiam no estilobato as espirais das suas molduras. De fisionomias impregnadas de intensa vida moral, a um tempo activa e contemplativa, panejados num deliberado arranjo com redundância quase barrôca, são a primeira voz do coral místico que constitui o tema simbólico deste ascensional agrupamento. Inicia-se a linha piramidante, os contrafortes passam do quadrado ao triângulo, e em cada uma das suas faces visíveis erguem-se dois Profetas, em atitudes de videntes, desenrolando as filactérias dos vaticínios. No plano imediatamente superior, erguem-se quatro figuras femininas coroadas ladeando a imagem da Virgem, erecta sobre uma peanha, que, como vimos, remata o canopial da porta. São as Sibilas, Sibyllas coronatas, com os livros das profecias que substituem as filactérias, podendo identificar-se as duas da esquerda pelos seus atributos: a primeira com uma espada, símbolo da Degolação dos Inocentes, é a Sibila Europa, a segunda com. uma flor, símbolo da Anunciação, é a Sibila Eritreia. Por baixo daquela está o profeta Zacarias, de profecia idêntica, por baixo desta o profeta Ezequiel, por igual motivo. As duas da direita, sem atributos especiais, não podem ser identificadas, bem como os respectivos profetas. Ao alto, como remate deste cântico espiritual, os quatro Doutores da igreja latina, S. Jerónimo com o barrete de cardial, Santo Ambrósio apresentando na mão aberta a pilha das suas obras, S. Gregório com a sua tiara papal e Santo Agostinho com uma coluna, emblema do esteio da / 10 / Fé. É a simbólica medieval alcandorando-se em coro para exaltar a Virgem, de cujo seio puro nasceu o Redentor: aos lados da Senhora os que vaticinaram o prodígio, os Profetas do israelismo e as Sibilas do paganismo, estas a fim de que o espírito do mundo antigo concorresse para se desvendarem as brumas do futuro, anunciando o Messias; em baixo, os que propagaram a doutrina, os Apóstolos; em cima os que lhe fizeram a exegese, os Doutores.

 

O claustro dos Jerónimos passa, com justa razão, pelo mais belo claustro do mundo. Ampla quadra de dois pisos transformada em octógono pelo corte dos ângulos de que resultam esbeltas abóbadas diagonais, compõe-se de seis tramos por lado, além dos quatro tramos angulares. O alçado manuelino, primitivo, é de arcatura abatida no rés-do-chão e de arco pleno no andar superior. Em baixo, bandeiras fitomórficas mostram linearmente a querena, com tetralóbulos, sob arcos duplos assentes em três mainéis de que resultam quatro vãos e em cima um tímpano triangular curvilíneo onde coroas de folhagem envolvem motivos ornamentais, cruzes de Cristo, o galeão velejando, o M do Venturoso. No andar superior, o vão é dividido por um só mainel de onde irrompem, divergindo, dois arcos plenos acairelados, como acairelado é o grande arco envolvente quase tangente ao torçal da platibanda. Forma esta um ático decorado de losangos, nos quais avultam caraças alternando com rosetões, e por vezes, assomando como a óculos, bustos em alto relevo de guerreiros romanos; contrafortes redondos, goivados de meias-canas obliquas decoradas de esferóides e terminadas em pináculos espiralados, aguentam as pressões da abóbada superior. As formas espiraladas são uma assinatura manuelina, vimo-las efectivamente nos colunelos que amparam as peanhas do Apostolado na porta lateral arrastando o torcido das bases, nas colunas ornamentais entre as capelas do transepto, no suporte dos púlpitos, nos arcos do coro, em vários mainéis do claustro. Nas contas de pagamento são frequentes os trocydos executados por vários pedreiros.

Esta profusa rítmica de geratrizes, a que se junta a joalharia dos capitéis e das bases, embaraça a ideia de estabilidade, arquitectónica por excelência, falibilidade compensada todavia pelos efeitos de cor que daí resultam, marcando uma mudança de registo, como se uma voz aguda rompesse os acordes de um coro grave. A lógica helénica, pautada pela austeridade da lira dória, cedeu o passo a uma musicalidade complexa, de um exotismo cosmopolita, mas ela em breve ressurgirá.

A fenestragem deste claustro evoca a da Batalha. A pedra é tratada pelo cinzel mais com técnica de entalhador que de alvanel, mais de modelador de gesso que de canteiro. O relevo, onde em certas combinações de complexa geometria parece aflorar o arabismo consuetudinário, é geralmente volumoso e gordo, às vezes fruste indicando insipiência ou atarefada pressa. Os temas curvilíneos coleiam numa fuga instável, os cogulhos enrolam-se nos extradorsos, o carvalho e o cardo vizinham intempestivamente com volutas e acantos, fazendo saltar bruscamente / 11 / a visão, como nos pilares das naves, da assimetria gótica para a simetria clássica. O manto discreto do tempo vestiu silharia e decoração com uma patina uniforme atenuando assim os desfalecimentos do escopro, apresentando à vista, a distância e no todo, um aspecto de rara e tranquila harmonia. Esta tranquilidade provém sobretudo da pautada e repousante linha da arcatura inferior, enxertada no alçado primitivo por João de Castilho, depois, afirma-se, da sua tam discutida conversão ao renascentismo. Por modificação do projecto inicial começando logo a construir-se em conjunto? Acrescento posterior com receio da pressão das abóbadas? Seja como for, a orgânica desta arcatura penetrou no arcabouço ogival com rara habilidade técnica, posto certos elementos da zona de contacto vacilem, se detenham ou se cortem. Abobadilhas nervadas e abatidas firmam-se em robustos pilares de secção quadrada que, ao nível do segundo andar, amparam nichos povoados com figuras do hagiológio e que se ligam aos pilares manuelinos por maneirinhos arcobotantes. Entre eles, corre a toda a volta o peitoril do piso superior, onde uma facha greco-romana desenrola as volutas da sua folhagem estilizada e zoomorfa, com urnas e caraças, num movimento ondulante e vigoroso. Nas três faces dos contrafortes repetem-se temas análogos: de urnas gomeadas partem em ascensão arbórea os motivos clássicos com rigorosa simetria bilateral, aves heráldicas de longos pescoços ligados com anilhas, grifos flanqueando as urnas que guardavam o oiro dos Arimaspes, motivo persa cedido à ornamentária heleno-latina, medalhões romanos pendendo da sinuosidade das cornucópias. Delgadas cornijas dividem estes pilares em dois sectores, o de cima pagando tributo ao manuelino nas caneluras oblíquas e estabelecendo assim uma transição para a forma curvilinear dos contrafortes superiores.

A perspectiva dos corredores é grandiosa, mantém o espírito gótico e revela a segura técnica do biscainho. A nervagem, composta de ogivas, liernes e terceletes, adornada com arcos suplementares que em volta de alguns fechos formam uma coroa poligonal, predominando noutros as linhas coleantes, firma-se de ambos os lados em mísulas robustas de variadas e fantasiosas formas. Delas partem troncos e volutas de folhagem, dispondo-se em sobrecéus que abrigam medalhões com perfis guerreiros ou escudetes com os emblemas da Paixão.

Na parede do corredor ocidental, rasga-se uma porta dupla, em cujos perfis de espessa silharia ascendem os mesmos motivos antigos dos contrafortes do claustro, obra onde trabalhou o aparelhador Rodrigo de Pontesilhas, da companha de Castilho, em 1517. Dá para a casa do capitulo, pequeno rectângulo reproduzindo a planta de uma capela gótica, com ábside poligonal, exalçado sobre degraus como um coro e em cujas faces se abrem nichos vastos e pouco fundos: é a mesma planta da casa capitular, incompleta, do convento de Cristo. Tendo também ficado por acabar, foi abobadada modernamente para abrigar o túmulo de Alexandre Herculano que ali se levanta ao centro. No extremo norte do corredor ocidental, uma porta abre-se para o refeitório, longo rectângulo coberto por uma abóbada / 12 / polinervada abatida, de um vigor de traçado e de uma robustez de perfis que a fazem assemelhar à cobertura de uma poderosa cripta. Ogivas, terceletes e formaletes firmam-se lateralmente em mísulas poligonais, de cuja folhagem cogulhada parte um torçal que cinge a sala em toda a volta, repetindo-se um pouco mais abaixo, de que. resulta uma facha circundante e nua.
 

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