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Nos pés direitos do arco triunfal engastam-se dois púlpitos poligonais,
em cujas faces se abrigam dentro de nichos com sobrecéus em concha, no
da esquerda os Evangelistas, os Apóstolos no da direita. Os nichos, que
contêm figuras graves e meditativas, cavam-se entre pilares fortes e
salientes terminados em pináculos, de acentuado vigor arquitectónico, e
frisos de folhagem em que domina o cardo, planta decorativa da agonia
gótica, correm junto do peitoril e da base, repetindo-se em formas
cogulhadas e torcionadas na peanha inferior apoiada em colunelos
espiralados. Baldaquinos altívolos piramidam em longa e trabalhada
ascensão até aos arranques do arco triunfal, cobrindo com a sua
abobadilha delicadamente nervada em estrutura fingida as portas dos
púlpitos que a perspectiva faz parecer baixas como tocas. O mesmo
contraste que nas naves entre esta profusa e quase madrepórica
ornamentária e a silharia nua que enquadra as duas janelas iluminantes
do muro oriental.
A capela-mor, que substituiu a primitiva abside manuelina, hoje apenas
rememorada na iluminura de um livro de Horas, foi mandada construir pela
rainha. D. Catarina a Jerónimo de Ruão, em 1571. É um panteão severo,
pautado em nobres linhas pelo cânone renascido da Roma imperial, mas de
uma tonalidade surda e cinzenta que mármores menos tristes quadriculando
a abóbada em berço e o fundo dos intercolúnios não conseguem fazer
sorrir. Como símbolos das páreas asiáticas, ladeiam-na melancólicos
proboscídios vergando o dorso sob o peso das urnas onde se contêm as
cinzas daquela geração real que em vida era levada por um turbilhão de fatalidade, como se
andasse já envolvida pelas adustas areias de Alcácer-Quibir...
Uma porta, no topo norte do transepto, conduz à sacristia por um pequeno
corredor. É esta uma quadra ao centro da qual se ergue uma coluna que
ampara a nervagem da abóbada irradiando como as varas de uma umbela e indo ao encontro de mais quatro sectores cujas
cadeias saem em leque de consolas espiraladas embebidas na parede. No
fuste da coluna central, baixos-relevos de temas clássicos, o acanto
estilizado onde pousam sereias com o tipo helénico da ave e pássaros
bebendo num vaso.
O efeito geral do sonoro âmbito da igreja é o de um vasto hinário cujos
sons entrechocando-se em larga polifonia, indefinidamente reboam
multiplicando-se indefinidamente. E contudo destes ecos sinfónicos não
se evola o sentimento religioso, o espírito cristão, porque a alma pagã
dos mármores antigos, ressurgindo do seu adormecimento secular e
inquinando a candura gótica, parece antes fazer vibrar a projecção das
geratrizes aos acordes de uma música profana. Para essa ausência de
comoção mística concorre talvez a vacuidade dos nichos, mudos das vozes
plásticas do hagiológio, viúvos das atitudes da sua meditação ou dos seus
êxtases. Assim, lembra antes um edifício civil, uma lonja de aplicação
laica,
sem recolhimento e sem mistério, destinada a provocar somente a comoção
estética. Depois, a capela-mor completa, com as suas formas romanas e a
sua preocupação de simetria e proporcionalidade, a ausência daquele
sentimento, e isto numa época em / 8 /
que os faustos de Renascença já haviam começado a tisnar as pétalas do
ramalhete medieval e o racionalismo católico da contra-reforma já estava
alinhando as bancadas para o Concílio de Trento.
A orientação da planta é ainda a tradicional, Leste-Oeste, ficando,
pois, a Ocidente a porta principal. É esta de arco policêntrico
desdobrado em linhas convexo-côncavas, tendo no fecho o escudo
português amparado por dois anjos suspensos. De modestas proporções,
devido à existência do coro interno e da galilé que devia cobri-la, é de
inspiração borgonhesa na distribuição das suas figuras principais,
–
réplica da dos Duques de Borgonha na porta da catedral de Champmol,
– D.
Manuel e a Rainha em adoração protegidos pelos seus santos padroeiros,
respectivamente S. Jerónimo e S. João Baptista. A icónica desta porta
foi ordenada por Nicolau Chanterene que dela tomou a empreitada e onde
deixou a sua rubrica formal. Um naturalismo ora doce ora vigoroso, aqui
poetizado, ali implacável, adapta cada figura à sua significação
intrínseca. A face do monarca adivinha-se de uma semelhança flagrante,
sem nenhuma atenuação de cortesanismo – feio, belfo, os olhos papudos;
sua mulher, envolta num vestido roçagante, tufado em amplitude cerimonial, ergue um perfil gracioso onde o escultor não deixou de
acentuar o vinco quase infantil do lábio inferior. Dos dois santos, é S.
Jerónimo o mais expressivo e forte, modelado em robustos panos
musculares, de epiderme áspera e seca como o areal do deserto.
Ao alto, um sobrecéu de escultura distribuído em três nichos, à
esquerda, a Anunciação, de uma
cristianíssima doçura, como que envolta num nimbo azulado, ao centro, o
Presépio, com o menino deitado, não nas palhas do chão, mas num humilde
cesto de vime, berço de pescador ou de marinheiro, à direita os reis
Magos com o incenso, o oiro e a mirra. As pequenas figuras que povoam os
nichos dos fundos e dos pilares são deliciosas miniaturas escultóricas,
trabalhadas com a minúcia de um cuidado torêutico, pondo ali
Chanterene, com a superior compreensão da modelação destinada a ser
vista de perto, a sua assinatura de delicado, na cinzelagem de vários
pormenores, sobretudo em algumas mãos elegantíssimas na sua posição e na
sua forma. Nos extremos, vêem-se, à direita, o mártir Vicente com a sua
inseparável caravela, à esquerda, o mártir Fernando, o infante-santo de
Fez, com a enxada do seu trabalho de escravo e os grilhões do seu
cativeiro; os quatro Evangelistas lembram humanistas da Renascença, coifados com os barretes coevos e envoltos em gibões de nobre linha,
pousando sob o dossel dos nichos com certo ar universitário; os
Apóstolos circundam os dois pináculos laterais que em remodelação tardia
viram a sua agulha terminal substituída por plintos clássicos onde
pousam vasos heráldicos.
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