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O MOSTEIRO DOS JERÓNIMOS levanta-se perto do lugar onde
outrora existia a praia do Restelo, palmo de um paralelo do globo que é
uma das grandes balizas da História. Dali partiu Vasco da Gama para a
descoberta do caminho marítimo da Índia, ali se iniciou a grande
rota que substituiu a concêntrica civilização mediterrânea, cadinho do
mundo antigo, pela excêntrica civilização atlântica, fulcro da idade
moderna. Não celebra este monumento, como se tem dito, o facto
memorando, pois foi doado, antes de se conhecer a chegada a Calecut, à
Ordem de S. Jerónimo por D. Manuel que escambou à Ordem de Cristo uma
ermida fundada naquele sítio pelo Infante D. Henrique para socorro
espiritual dos navegantes, motivo por que a efígie deste príncipe figura
no mainel da porta lateral. O rei venturoso
quis manter-lhe o mesmo destino, e apenas esse, pois plasticamente não
contém nenhuma alusão à empresa náutica, devendo tomar-se como mero tema
decorativo o galeão que veleja num dos espelhos do claustro.
Contemplando-se o conjunto deste belo edifício circunscrito nas linhas
de um alongado rectângulo, vê-se que na ordenação das suas sóbrias
geratrizes se manifesta o princípio da horizontalidade, espírito da
monumenta meridional já acentuado no nosso românico e mantido no nosso
gótico, contrastando com a nudez da silharia a abundância ornamental dos
dois portais, as molduras das janelas e a refolhada escultura do friso
terminal. Lacrimais e filetes que às vezes se alargam em zonas de
folhagem estilizada como varandins floridos, cingem-na acentuando o
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das horizontais e dividindo as fachadas em registos, de onde lhes provém
uma fisionomia calma e repousante, para maior relevo do seu cântico
escultural. Na extremidade oriental, a decoração suprime-se totalmente,
erguendo-se os muros da capela-mor numa nudez austera até à varanda de
balaústres que corre sobre a cornija misulada: é o fácies externo do
interior clássico. Uma longa alpendrada, espécie de galilé intérmina,
projecta para ocidente a sua arcatura forte, fazendo prevalecer ainda as
horizontais, e sobre a qual se erguiam outrora os dormitórios da
comunidade.
A planta desta igreja é de três naves à mesma altura, repartidas em oito
tramos, ao fundo dos quais corre um grandioso transepto a que se segue a
capela-mor, forma crucial simples que entre nós vinha acusando um
persistente romanismo, frequente sobretudo no norte e centro em igrejas
e capelas rurais. Um coro alto eleva-se no topo ocidental, novidade
ensaiada nos alvores da Renascença, assente sobre seis capelas de
abóbadas artezonadas, comunicando com as naves por três arcos quebrados,
o do meio mais largo, tricêntrico apontado da variedade denominada
tudor.
A ampla área interior cobre-se com uma resplandecente abóbada
polinervada em cantantes dicotomizações, esteada em oito pilares
octógonos, dois dos quais firmados sobre o coro, que fazem irradiar os
feixes divergentes das nervuras como palmeiras gigantescas e por cujas
faces, entre molduras torais segmentadas por astrágalos, trepam
simétricos motivos clássicos alternando por vezes com a sinuosidade
assimétrica dos motivos góticos. Alcandorados
de nichos vazios de imagens, a sua abundância escultural contrasta com
os panos dos muros, de uma nudez românica, onde apenas se rasgam as
janelas sobriamente ornamentadas e em baixo, ao longo da nave do
Evangelho, as tímidas portas dos confessionários, de dintel trilobado,
sobrepujadas por nichos onde se levantam sobre delgados colunelos as
imponentes tiaras dos baldaquinos.
A abóbada do cruzeiro, com suas cintas transversais, o que lhe dá um
soberano aspecto autónomo, projecta com temerário arrojo a sua curva da
largura de dezanove metros, esteando-se em amparos mínimos: concatenando
sabiamente as suas pressões, distribui as forças com audácia e
segurança, devido à sábia técnica de João de Castilho que em 1522 a
arremessou no ar. O transepto termina nas duas extremidades por quadras
de abóbada mais baixa, transformadas em frios panteões pelas arcaturas
clássicas que lhes revestem as paredes e em cujos vãos se abrigam as
marmóreas urnas dinásticas. No centro da quadra do sul vêem-se os dois
túmulos modernos, onde repousam os restos de Camões e de Vasco da Gama.
Quatro capelas flanqueando a capela-mor e duas na parede sul em ângulo
rasgam-se com pouco fundo, simples altares de arcos abatidos sobre
tímpanos pelos quais se espalha uma ornamentação difusa e desconcatenada
onde entre toros vergados em curvas e contra curvas avultam escudetes
com a esfera armilar, as cinco chagas e "as três hastes florais presas
por uma corda. Numa delas admira-se um S. Jerónimo, escultura cerâmica
de um realismo donatelesco.
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