Em 1896 – já
lá vão 88 anos – Jerónimo Pereira Campos – um dos artistas que,
em Aveiro, tanto honraram a sua classe, conforme já me referi na minha
ACHEGA número 25 – resolveu montar uma fábrica mecânica de cerâmica de
barro vermelho onde se fabricariam telhas do tipo de Marselha, e outras,
com o intuito de arrumar os filhos mais novos – o João e o Henrique –
pois os mais velhos, o Ricardo e o Domingos – já ele tinha arrumado,
montando, nos Arcos, ao primeiro, um estabelecimento de mercearia fina,
e, ao segundo, uma oficina de encadernação.
Com pouco
capital, foi à custa de muito trabalho e enormes sacrifícios que eles
conseguiram construir, nas Agras, (onde havia muito barro – e de boa
qualidade) o edifício da fábrica, e a puseram a trabalhar; e, depois de
começarem a produzir, tiveram enormes dificuldades em conseguir mercados
para a colocação do seu material, tanto mais que a Fábrica da Fonte
Nova, da família Melo Guimarães, que se dedicava, especialmente, à
cerâmica de barro branco, também fabricava telhas de barro vermelho e
tinha, já, o seu mercado organizado.
Esta fábrica
estava situada na Fonte Nova, onde hoje se encontram as oficinas de
reparação de automóveis.
Para vender,
fora da área de Aveiro, havia que estabelecer a concorrência e, para
tanto, era necessário procurar, com os meios de que então se dispunham –
o comboio e a bicicleta –, as povoações onde havia estabelecimentos de
venda de materiais de construção e, até, nelas, e em outras, criar
agentes e representantes que se encarregassem da venda das telhas, logo
que soubessem de alguém que tencionasse construir uma casita,
aconselhando o emprego da
/ 220 / telha marselha, pelas vantagens que
esta tinha quanto à aplicação da do tipo português (ou mourisca), de
cano e capa, que, então, se usava.
E foi o João
quem tomou, para si, este encargo, acontecendo muitas vezes andar dias
por fora de Aveiro, sem ter onde dormir e se alimentar convenientemente,
pois então – e em muitas terras – não havia quem, até a pagar,
fornecesse hospedagem a estranhos, chegando mesmo, segundo a sua
informação, a passar fome, ainda que com dinheiro no bolso.
Ao Henrique
coube a missão de acompanhar o fabrico do material e a continuação da
construção do edifício da fábrica, pois era um exímio e exigente
mestre-de-obras, não tendo jeito para ser administrador, e não sabia
lidar com a clientela, ao contrário do João que aliava à sua qualidade
de técnico a de administrador.
Fotografia de
cerca de 1925 obtida na Internet com um tandem para seis
pessoas.
Dizia-me
este que, uma vezes em bicicleta de uma só pessoa, outras vezes em
tender
(1), acompanhado de
João Coelho,
então ao serviço da fábrica (o qual terminou a sua vida como Informador
Fiscal, depois de ter sido, também, Ajudante de Farmácia) percorreu
centenas de quilómetros para fazer a propaganda da fábrica e vender as
telhas que a mesma produzia.
Por ele
soube, também, que a fábrica montou, nos barracões, há pouco tempo
demolidos, junto à Ponte-de-Pau, e que, ultimamente, serviam de armazém
a farrapeiros e a sucateiros – e que, hoje, são terrenos da entrada do
campo das feiras – uma secção para o fabrico de vidro, e, para isso,
contratou pessoal especializado na Marinha Grande. Houve dificuldade em
conseguir esse pessoal; no entretanto, os industriais que o dispensavam
faziam-no com má-fé, pois instruíram-no, e pagavam-lhe, para provocar
prejuízos na firma para onde vinha trabalhar – (que, de vidros, nada
sabia).
Esses
industriais tinham o maior empenho em arruinar um possível concorrente,
tanto mais que a Zona Norte do País era considerável cliente das
fábricas da Marinha Grande, importante centro vidreiro.
O pessoal de
Aveiro, que trabalhava na secção do vidro, parecendo-lhe fora do normal
as avarias que constantemente estavam a acontecer, começou a «magicar»
que elas seriam provocadas pelo pessoal vindo da Marinha: os técnicos,
como, hoje, lhe chamaríamos.
Juntaram-se
com o fim de conseguirem averiguar a razão de ser de tantos prejuízos
que a firma estava a suportar; e, concluindo que eles – que de vidros
nada sabiam – não tinham possibilidade de chegar a qualquer conclusão,
resolveram, para o efeito, consultar uma bruxa.
Foi
escolhida a de Adães
[Oliveira de Azeméis], então muito afamada na nossa região.
/ 221 /
Um dia, João
Campos entrou na fábrica do vidro e encontrou os fornos enfeitados com
arruda; como previu bruxaria no caso, barafustou e zangou-se a sério,
ameaçando meter dentro do forno o autor de tal acto, se tal se repetisse
e ele conseguisse averiguar quem tinha sido o autor dessa proeza.
Isto
passa-se num sábado; e, depois do pagamento (o pessoal, então, recebia o
seu salário semanalmente, ao sábado) um grupo de operários aveirenses –
dedicados à firma – procurou-o e disse-lhe que a arruda havia sido
colocada por eles, a conselho da bruxa de Adães a quem, por várias
vezes, tinham ido consultar e aonde lá iriam amanhã; que ela já lhes
havia indicado o nome do causador dos prejuízos que se davam na fábrica;
que estavam, mesmo, dispostos a darem-lhe uma sova mestra para que ele
terminasse com o seu mau-olhado e a sua influência perniciosa; e
obrigando-o até a pôr-se a mexer dali para fora. Ouviu João Campos esta
explicação e agradeceu àqueles operários a sua dedicação à fábrica e a
sua boa vontade e interesse em resolverem um problema tão grave,
dizendo-lhes, porém, que não acreditava nas mezinhas das bruxas nem nos
seus conselhos: que tivessem, pois, tento na cabeça e não procedessem
como estavam a pensar fazer. No entretanto, que no dia seguinte, Domingo,
iria com eles à consulta marcada e pagaria todas as despesas,
dando-lhes, a seguir, o dinheiro para o transporte por caminho-de-ferro,
até Estarreja, e combinando o local, onde, na estrada, se deveriam
encontrar, pois, ele e o João Coelho seguiriam no «tender».
Após o
encontro no local combinado, depois de averiguar a forma de proceder
dentro do consultório – passe o termo – determinou que a partir daquele
momento, sobre o assunto, só ele falaria.
Chegados que
foram à casa da bruxa, que tinha uma taberna por baixo do consultório (a
qual servia de sala de espera até os consulentes serem atendidos)
apareceu-lhes uma mulher a meter conversa e a querer saber o que os
levava a irem consultar a senhora.
João Campos
não lhe deu saída à conversa, apesar da mulher se mostrar muito
interessada em saber qual o assunto que os levava lá.
Reconhecendo
que não conseguia tirar nabos da púcara, desistiu da conversa e, daí a
pouco, mandou-os subir.
Tal qual os
operários o tinham informado, a bruxa perguntou-lhes:
– Ao que
vindes, meus meninos? Ao que vindes?
– João
Campos respondeu, conforme lhe haviam ensinado: – Os anjinhos o dirão...
os anjinhos o dirão...
/ 222 /
A bruxa
começou com os perliquitetes, como se estivesse a entrar em transe e
voltou a falar: – Vindes tarde, meus meninos!... Vindes tarde!... Não
vos posso acudir!... Ide procurar um homem de virtude que esses têm mais poder do que eu...
E onde os
há? – pergunta João Campos.
Resposta da
bruxa: – Há-os por aí; ide, ide, não vos demoreis que podeis chegar
tarde...
Paga a
consulta, na rua, João Campos pergunta:
– Que dizem
a isto? Pensem no erro que estavam para cometer... Um dos operários,
muito indignado – como, aliás, os seus colegas – respondeu:
– Oh patrão,
olhe que ela até nos indicou o nome de F. como o causador de toda aquela
desgraça havida na fábrica.
João Campos
ripostou:
– Não seriam
vocês, na conversa com a mulher da taberna, que lho disseram?
Voltemos,
porém, «à vaca fria». (Refiro-me à minha Achega 97).
Após a morte
dos pais, os dois irmãos mais velhos – o Ricardo e o Domingos –
resolveram ir dirigir a fábrica, atitude com a qual João Campos não
concordou, por entender que os irmãos já tinham a sua vida organizada à
custa do pai, e também, porque o que estava feito na fábrica, o havia
sido pelo muito trabalho e o muito sacrifício dele e do Henrique.
Este, porém,
deixou-se dominar pelos irmãos mais velhos – que nada conheciam nos
assuntos fabris – e aliou-se com eles contra o João que, estando em
minoria e não aceitando a situação criada – depois de muitos
desaguisados havidos entre eles, tanto mais que não puxavam certo quer
em política, quer em religião – resolveu separar-se, pensando, desde
logo, em montar uma fábrica só sua, pois tinha a bagagem necessária e a
força de vontade suficiente para o poder fazer.
Lançou as
suas vistas para uns terrenos da Quinta do Carril, pertencente à família
Magalhães Lima, junto ao Canal de S. Roque, e iniciou umas sondagens
para verificar se esses terrenos tinham barro em quantidade e de boa
qualidade, como ele presumia.
Certificado
dessa existência e verificando a excelente posição estratégica em que a
fábrica ficaria, pois teria acessos por estrada e pela ria e ainda, num
/ 223 / futuro próximo, pelo caminho de ferro (visto que a C.P. havia já
projectado a construção de um ramal, da Estação ao canal, a fim de
transportar o sal que, das marinhas, era aqui descarregado), resolveu
comprar uma parcela desses terrenos.
Não vou
contar as peripécias que se deram com esta aquisição pois não interessa
para o caso; o certo, porém, é que teve problemas – e grandes para
resolver e que lhe atrasaram a montagem.
Por volta de
1911, conseguiu arrumar contas com os irmãos e separar-se deles. Nessa
arrumação de contas sentiu-se muito prejudicado, mas muito satisfeito
por se ter visto livre deles – segundo nota escrita por seu punho num
caderno de apontamentos de capas de oleado que continha várias notas
referentes a este assunto.
Acompanhado
do seu cunhado Abílio Pereira Campos, que era mestre de obras, do
filho deste (o António) e de mais três ou quatro operários que com ele
se conservaram pela vida fora, deu início aos trabalhos da construção da
fábrica – um simples barracão – onde implantaram o forno contínuo e as
gaiolas para a seca do material a fabricar.
Todos
trabalhavam com afinco, desde manhã cedo até a luz do dia o permitir.
As máquinas
foram encomendadas em França, juntamente com as da fábrica das Quintãs
que, nessa ocasião, se estava a montar com capitais dos membros da
família Tavares Lebre.
Em 1912 a
fábrica estava pronta a funcionar e João Campos (segundo constava do já
referido livro de capas de oleado) tinha em caixa, unicamente,
a importância necessária para pagar uma semana de férias ao pouco pessoal
– o indispensável – que ele tinha admitido para iniciar a laboração.
A pouco e
pouco, trabalhando do nascer ao pôr do sol – era horário, então muito
usado – foi fazendo a sua casa. Conseguiu comprar os terrenos adjacentes
à fábrica, que eram diversas courelas com direito de saída para a
Travessa do Picadeiro e Viela da Folsa (a fim de, com mais facilidade,
poder carregar, com carros de bois, o seu material nos vagões do Vale do
Vouga), e bem assim arranjar uma boa e grande clientela.
A partir de
Oliveira de Azeméis e até Arouca, passando por Vale de Cambra, toda a
gente só comprava telha de João Campos, que era vendida por
José Dias
de Carvalho, não só no seu estaleiro da estação de Oliveira de
Azeméis, como também nas feiras de Vale de Cambra.
E os povos
das Gafanhas, desde a da Nazaré até à do Areão eram clientes, quase que
exclusivos da Cerâmica Aveirense do Canal de S. Roque,
nome que João Campos escolheu para a sua fábrica para a distinguir da
dos seus irmãos que usava o de «Cerâmica Aveirense». O transporte para
esta zona era feito,
/ 224 /
normalmente, nos barcos que, aos Domingos, tinham trazido os produtos
agrícolas para abastecer o mercado de Aveiro.
E
conseguia-se que os barqueiros fossem, sem protesto, carregar ao Canal
de S. Roque (apesar das Fábricas Campos ficarem mais perto do mercado),
porque os mestres preferiam empregar o material da Fábrica do Canal, e,
também porque lhes era oferecida uma «pinga» de um vinho parreirol,
fabricado com as uvas das videiras que havia na quinta da fábrica e do
qual os barqueiros eram grandes apreciadores, para «matarem o bicho».
Era um vinho
muito leve – como todos os «parreiróis» – com uma certa «agulha» e tirado
ao «espiche» na frente de quem o ia beber.
Acresce que
João Campos acompanhava as manobras do carregamento e conversava
com mestres e barqueiros, o que eles apreciavam imenso.
As zonas
ribeirinhas, até Ovar, por facilidade nas cargas do material, no cais,
em frente da fábrica, eram também clientes que pesavam no total das
vendas.
E, por
agora, deixo em sossego as fábricas de telhas e tijolos da nossa terra,
evitando, propositadamente falar da catastrófica maneira como se
afundaram.
É história
muito moderna...
O que
contei nas minhas três últimas ACHEGAS e o que, agora, vou contar, é não
só do meu conhecimento directo, como também daquele que adquiri das
conversas que, de vez em quando, tinha com o meu falecido Chefe, o
Sr. João Pereira Campos.
/ 225 /
Foi ele quem
me disse que a primeira fábrica de telha do tipo marselha que se montou
no país foi a da Cerâmica das Devezas, na Pampilhosa; e, para o fazer,
um dos sócios –António de Almeida Costa
– foi para Marselha
trabalhar, como simples operário, para aprender a arte, desde a escolha
e mistura dos barros até ao seu cozimento.
A Cerâmica
das Devezas, que então se dedicava ao fabrico de louças e peças
ornamentais em barro branco e olaria de barro vermelho, tinha a sua sede
em Vila Nova de Gaia, junto à estação do caminho de ferro.
No período
da febre dos negócios que se seguiu à Primeira Guerra Mundial (ou, como,
na altura, se chamava, a Grande Guerra) e porque o senhor Costa estava
cansado e doente, transformaram a firma individual numa sociedade
anónima sendo o Capital da nova firma subscrito por vários capitalistas;
e até João Campos – oficial do mesmo ofício, isto é, industrial de barro
vermelho – se aventurou a comprar um lote de acções, na convicção em que
estava pelo que conhecia dos progressos da Cerâmica das Devezas – que a
nova sociedade iria dar lucros bastante razoáveis e compensadores do
capital empregado.
Os
administradores (hoje chamam-se «gestores») da referida sociedade que, de
cerâmica nada percebiam – modificaram as estruturas existentes, quer as
comerciais, quer as industriais (que eles consideravam antiquadas). O
escritório, que tinha meia dúzia de funcionários – se tantos – passou a
ter uma quantidade de meninas, com várias categorias, que – palavras de
João Campos – era um autêntico pombal, no qual as «pombas» esvoaçavam de
um lado para o outro, de papéis nas mãos, para passarem o seu tempo,
sendo certo que os clientes, para conseguirem resolver qualquer
problema, se viam e desejavam pois naquele pombal ninguém sabia nada de
nada, visto o serviço estar disperso por muita gente; anteriormente, com
as estruturas antiquadas, o cliente era atendido, imediatamente, e o
assunto que ia tratar resolvido pelo funcionário que, do caso, tinha
conhecimento. Para a parte industrial, contrataram técnicos franceses, a
quem chamavam «químicos», que alteraram o sistema de trabalho usado
pelos operários portugueses, que era o mesmo que o patrão Costa lhes
ensinara e que eles foram aperfeiçoando com a prática adquirida. Esses
«químicos» iam dando «em pantanas» com uma organização que, até ali,
tinha dado rendimentos tão bons que entusiasmaram vários capitalistas a,
nela, empregar o seu dinheiro.
Felizmente
que a fábrica da Pampilhosa manteve, na parte laboral, a direcção do
pessoal português – os químicos não queriam ir viver para tal localidade
– e a produzir e a render o necessário para ir aguentando a firma,
evitando o afundamento total e rápido da sociedade anónima e permitindo
que os accionistas dessa companhia, incluindo os seus gestores,
conseguissem vender,
/ 226 / por preço ainda que muito inferior ao seu
valor nominal, as suas acções, pois a Companhia Cerâmica das Devezas,
não só tinha perdido a sua rentabilidade como até o seu crédito.
Os novos
accionistas, pondo de parte os «aperfeiçoamentos» que trouxeram os
«químicos» franceses (que atiraram de «pernas para o ar» com uma empresa
que era rentável) e, entrando com «dinheiro fresco» conseguiram
restabelecer o crédito da mesma e continuar a sua existência, ganhando,
então, dinheiro.
E porque foi
que António de Almeida Costa escolheu a Pampilhosa – no nosso
distrito – para montar a sua fábrica, após o seu regresso de França?
É o que
vamos ver, em seguida.
Além de ser
um local com muito e bom barro, a Pampilhosa fica no entroncamento com as
linhas dos caminhos de ferro do Norte e da Beira-Alta.
Assim, a
fábrica ficava situada no lugar certo, pois aí tinha a matéria-prima
necessária e os transportes para a expedição da mercadoria fabricada,
visto que, então, não havia os meios fáceis que hoje há, no que diz
respeito aos transportes. Nessa ocasião, todas as mercadorias destinadas
a locais afastados eram carregadas em vagões e estes enviados para as
estações mais próximas do consumidor e, daqui, transferidas para carros
de bois ou carroças de mulas, pois outros meios de transporte não havia.
Para
facilitar as cargas, a fábrica foi construída com um cais ao nível das
portas dos vagões, permitindo assim a entrada nestes dos carros com as
telhas e os tijolos, desde o local onde eram armazenados, depois de
saídos do forno e escolhidos, tudo num só plano.
Mais tarde,
foi construída, ao lado desta, e nos mesmos moldes, uma outra, pertença
da firma Mourão, Teixeira Lopes & C: Ld.ª com sede no Porto; e, mais
tarde, ainda, e do outro lado da linha, uma outra, com o nome de
Excelsior, pertencente à firma Barbosa & Ribeiro.
Antes da
introdução do fabrico da telha marselha e o dos tijolos feitos por meios
mecânicos e cozidos em fornos contínuos e semi-contínuos, havia as
«telheiras» que os fabricavam, manualmente, e com a ajuda de
rudimentares «balancés» e os coziam em «fornos intermitentes» que não
permitiam obter as temperaturas necessárias ao indispensável cozimento
do barro.
As telhas eram compostas de dois elementos
(os canos e as capas) e eram assentes no telhado com cal e, até, muitas
vezes, apenas sobrepostas.
/ 227 /
De vez em
quando, o telhado tinha de ser «virado», isto é, as telhas levantadas e
limpas e, novamente, assentes, para o manter eficiente.
Se uma
telha, por qualquer circunstância, saísse do lugar, ou rachasse,
provocava uma «beira», isto é, deixava entrar água e havia necessidade
do trolha ou do carpinteiro ir ao telhado remediar o caso, colocando a
telha no seu lugar, ou substituindo-a, se fosse caso disso.
Contava-se
que o velho Zé Padim, quando chamado a tirar as beiras de um telhado –
no que era especialista – ao descer, dava um soco numa outra telha, em
local diferente daquele que tinha ido reparar, arredando-a, ou
partindo-a; quando chovia, apareciam novas «beiras» e o ti Zé Padim era
chamado, novamente, para as vir tirar. Interpelado sobre o caso, ele
respondia ter feito a reparação no sítio que lhe foi indicado e, aí,
garantia que não chovia; se havia outras beiras, elas não lhe haviam
sido indicadas, e ele não adivinhava.
Era uma
maneira de ter serviço para fazer, e ganhar algum dinheiro, porque,
então, os trolhas nem sempre tinham trabalho, ou melhor ainda, tinham
falta de trabalho.
Os tijolos
fabricados nas telheiras a que atrás me referi eram maciços com as
dimensões de 22x10x3 centímetros e destinavam-se, na construção civil,
especialmente para fazer os archetes, pois, nessa altura, não havia o
cimento, como hoje há; mas também os empregavam noutros serviços como,
por exemplo, no de fazer canos para, subterraneamente, conduzir águas,
como se viu nas obras da Rua do Dr. Alberto Souto; neste caso, a água
que eles conduziam destinava-se aos conventos do Carmo e de Sá, canos
que ao autor do artigo que, neste jornal escreveu sobre a MINA, lhe
pareceu grande mistério e que eu esclareci no primeiro artigo que deu
lugar a esta série de Achegas.
Ainda é do
meu tempo haver estabelecimentos, em Aveiro, que vendiam telhas e
tijolos fabricados nas telheiras da Quinta do Gato e de Eixo. O material
desta última era de melhor qualidade, sendo certo que esta indústria
foi, outrora, muito importante nesta antiga vila do nosso concelho.
Julgo não
estar em erro afirmando que o último fabricante deste material foi o
falecido Sebastião Abreu que tinha barreiros seus, e de bons barros.
Porém, essas
telhas já então só eram empregadas na reparação dos telhados antigos.
Além das duas fábricas já referidas,
situadas, uma nas Agras Grandes e a outra no cais de S. Roque,
montou-se, nos finais de 1919, uma outra, na Forca, logo a seguir à
passagem de nível da linha do caminho de ferro.
/ 228 /
De Aveiro
exportavam-se muitos vagões de barro para as fábricas de Valadares e
Ermesinde, e, isto, porque a matéria-prima existente nos seus arredores
era de inferior qualidade dando, por isso, material poroso e quebradiço
com pouca, ou, mesmo, nenhuma aceitação no mercado; era o chamado barro
pobre que nas fábricas de Aveiro também era usado em pequenas
quantidades e destinado a afrouxar o da nossa região – o barro rico –
permitindo, assim, que este tivesse uma secagem mais lenta e com menor
risco de quebras durante esta operação.
Assim,
enquanto as fábricas de Aveiro, das Quintãs e, até, mesmo, as da
Pampilhosa fabricavam telhas quase que impermeáveis, e duras, as
fabricadas nas fábricas do norte absorviam muita água e eram frouxas,
defeitos que estas tentavam remediar – sempre com dificuldade em o
conseguir – misturando no seu barro algum do que importavam de Aveiro,
que lhes ficava muito caro, onerando, por conseguinte, o custo do seu
fabrico; daqui, a razão de ser da sua compra do barro de Aveiro, e da
sua dificuldade de fabricar produto que competisse com o das fábricas do
sul, pelo que tinham de o colocar no mercado por preço inferior e com
enormes dificuldades.
Eram
fornecedores daquelas fábricas, João da Paula Dias (mais
tarde Paula Dias & Filhos) e Manuel Bela.
Casado com a
única herdeira de Anselmo Ferreira que tinha um terreno junto
daquele em que o Manuel Bela fazia a exploração do barro, o tenente
coronel Gomes Teixeira entendeu – e bem – que seria mais rentável deixar a
agricultura e fazer, também, a exploração do barro do seu terreno, tanto
mais que obteria lucro na venda do barro e continuava proprietário do
terreno, pensando ao mesmo tempo, na montagem de uma fábrica que
gastasse esse barro, livrando-se, desta forma, de andar à guerra com os
actuais fornecedores que, dificilmente, desistiriam de manter o seu
negócio, ainda que, para tanto, tivessem de abastardar os preços, com o
que só ganhariam os compradores.
Transmitiu
as suas ideias à família e a um grupo de amigos – a quem pareceu
tratar-se de uma boa aplicação de capital a montagem dessa fábrica – e
organizou uma sociedade por quotas que denominou Empresa Cerâmica Vouga,
Ld.ª, ficando, desde logo, nomeado Director Delegado, não só porque ele
foi o autor da ideia e o seu entusiasta, como, também, porque ele e a
família tinham a maioria do Capital Social.
Nos seus impedimentos – ele tinha bastantes
– fez-se representar pelo major Geraldo (da Administração Militar)
pessoa de toda a sua confiança e que à fábrica consagrou todo o seu
carinho a ponto de montar uma escola primária, de que foi o professor e
onde habilitou para exame, quer da terceira, quer da quarta classe,
alguns operários e deixando, a grande maioria, a saber ler, escrever e
contar, o que, a todos, muito os ajudou a singrar pela vida fora.
/ 229 /
Aos seus
futuros sócios afirmou que a fábrica que iria montar se destinava a
fazer bom material, sem produzir cacaria, pois tinha tido a preocupação
de mandar analisar os barros dos barreiros do tio de sua esposa, que
seria o único fornecedor daquela matéria-prima, e, portanto, conhecer a
sua qualidade.
A Empresa
Cerâmica Vouga, Ld.ª comprou a Anselmo Ferreira apenas o terreno onde
seria implantada a fábrica (edifícios e seus anexos), nada tendo que ver
com o restante da quinta, que continuava pertença deste.
Entre o
Director-Delegado e os restantes sócios as relações nunca foram famosas;
e, mesmo antes da fábrica começar a laborar – possivelmente porque as
coisas não corriam como o previsto – houve, entre eles, vários
desaguisados.
A estrada a
seguir à passagem de nível da Forca para a Quinta do Gato (como, aliás,
acontecia com a Rua do Americano – hoje do Comandante Rocha e Cunha) era
um autêntico barranco, com uma sucessão de enormes buracos que exigiam
aos animais que puxavam os muitos carros de bois que, nelas, circulavam,
um enorme esforço, e, a quem os conduzia, uma dose enorme de paciência;
e, ainda, a quem, a pé, nela tinha de passar, a preocupação de reparar,
com atenção, onde punha os pés. Foi nesta estrada que foi implantada a
fábrica da Empresa Cerâmica Vouga, Ld.ª e foi esta firma que, a pouco e
pouco, a tornou mais transitável, depositando, nela, os cacos que se
juntavam na sua fábrica, que no início da laboração eram em quantidade
anormal.
Valeu, nesta
altura, à Cerâmica Vouga, o facto de um dos encarregados das Fábricas
Campos – o André Nogueira – ter tido um aborrecimento com a gerência
daquela fábrica e resolver despedir-se, indo dirigir a parte fabril da
Cerâmica Vouga, conseguindo melhorar o seu fabrico e suster a quantidade
de cacaria que ela estava a produzir.
Mais tarde,
a Empresa Cerâmica Vouga, para ver se obtinha maior rentabilidade,
montou uma serralharia mecânica e fundição de metais destinada, não só à
manutenção das suas máquinas, como, também, a servir quaisquer outros
clientes.
Não foram
felizes com esta experiência, e terminaram com a serralharia.
A pouco e
pouco foram sendo montadas novas fábricas de cerâmica de barro vermelho,
principalmente, no concelho de Águeda, com máquinas que conseguiam
obter o mesmo número de toneladas de fabrico, com muito menor número de
pessoal (refiro-me, sobretudo, ao tijolo) ainda que de inferior
qualidade, permitindo-lhes fazer concorrência às que estavam montadas
anteriormente, tornando estas menos rentáveis.
A maioria do Capital Social e a
Administração da Empresa Cerâmica Vouga estiveram, sempre, na posse da
família Gomes Teixeira.
/ 230 /
As suas
instalações e maquinismos estavam, desde alguns anos, desactualizadas e
nada rentáveis.
Para
conseguir manter a sua laboração sem prejuízos, havia que aplicar muito
dinheiro – que a Empresa Cerâmica Vouga não tinha. Resolveram, por tal
motivo, cessar a laboração, e fizeram-no indemnizando todo o pessoal com
as quantias que a Lei determina, depois da venda que fizeram à Câmara
Municipal.
Esta,
na altura em que escrevo esta Achega, anda, com a colaboração do
exército (da engenharia) a destruir as instalações da Empresa Cerâmica
Vouga, para aproveitar o terreno onde as mesmas estão implantadas.
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(1)
– TANDEM (e não tender) é uma bicicleta de pedais tripulada por duas
ou mais pessoas. Numa pesquisa na Internet, encontrámos veículos «cicláveis»
para 5 pessoas, com razoável comprimento, o que os tornaria de difícil
manobra em certas ruas e caminhos, se existissem na época na cidade de
Aveiro.
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