Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Centenário do nascimento de Lourenço Peixinho

O nosso amigo Eduardo Cerqueira – o homem que, segundo ele conhece mais gente dentro dos muros dos cemitérios do que cá fora, evocou, no Litoral, a propósito do centenário do seu nascimento, um dos seus conhecidos que estão do lado de dentro e que foi um aveirense que sentiu, como poucos, uma paixão pela terra que o viu nascer: o Dr. Lourenço Peixinho.

E fê-lo à sua maneira, numa linguagem arrevesada, com o emprego de palavras fora do uso comum – e que ele sabe manobrar muito bem – mas que exigem, a quem o quiser ler, ter de pegar no dicionário e mascar, parágrafo a parágrafo, todo o seu conteúdo para se enfronhar no pensamento do autor.

Linguagem própria para ser lida e ouvida pelos cidadãos muito cultos e afeitos a leituras profundas, não me parece – desculpe-me o amigo Cerqueira – aquele que se deva empregar num jornal de feição popular, que, para ter interesse, deve usar da que é corrente e que todos são capazes de ler – e compreender – sem esforço de maior.

Sei que o Dr. Narciso de Azevedo (que foi professor na Escola Comercial de Fernando Caldeira) dizia, uma vez, a Homem Cristo que o seu êxito como jornalista estava, não só naquilo que dizia, mas, e principalmente, na maneira por que o fazia, isto é, na clareza da linguagem que empregava.

Houve muita gente que não teve coragem de ler o artigo em referência devido à forma como está escrito e, com isso, foi prejudicada a intenção do amigo Cerqueira, que era a de dar a conhecer à geração nova quanto amor e quanta dedicação o Dr. Lourenço Peixinho teve pela sua terra natal.

Ele foi o grande Presidente da Câmara que idealizou, e rasgou, a avenida que hoje tem o seu nome, a qual iria dar feição de cidade à nossa terra, fazendo-o com poucos recursos financeiros e com processos técnicos rudimentares. / 231 /

Imaginem (os que estão habituados a ver as grandes máquinas a revolver terras e a transportá-las, mudando o aspecto do local das obras em poucos dias) o que seria aquele comprimento todo da actual avenida, a ser desaterrado, com vagonetas, sobre carris, e empurradas por homens que tinham, também, à picareta, à enxada e à pá, de cavar a terra, de a encher e descarregar no local, se serão capazes de se aperceberem do esforço despendido e da persistência necessária a, com o pouco dinheiro que a Câmara tinha, levar ao fim obra de tamanho vulto para a época.

Só o muito amor à sua terra e à obra que a si mesmo se impôs, fizeram que ele levasse a cabo aquela tarefa.

E é bom não esquecer que o cargo de Presidente da Câmara era de eleição e exercido gratuitamente.

O seu empenho na construção do Parque do Infante D. Pedro foi também enorme, conseguindo, com as suas amizades pessoais, obter, por um preço quase simbólico, que a casa da Viscondessa de Santo António lhe cedesse aquela quinta que, no sítio onde está o lago, tinha um paul em que cresciam o bunho e a tábua e onde viviam e cresciam milhares de mosquitos que infestavam toda aquela zona.

E, ao falar desta quinta, o meu pensamento não pode desassociar dela o seu caseiro, o velho Germano, de barbas brancas e grandes, sempre bem tratadas, e por quem toda a garotada tinha respeito e medo, apesar de o fazer «comer lume» com as suas invasões para umas «penhoras» nas árvores da fruta, que a havia lá e boa.

Outra obra de vulto para o interesse citadino foi a dos lavadouros públicos no Cais de S. Roque, aproveitando a água de uma fonte que nunca secou, mesmo nos períodos agudos da seca, pelos quais passámos há um bom par de anos.

Essa obra que, aos olhos da moderna geração, poderá não ter importância – pois uma grande parte tem em sua casa água canalizada e máquina de lavar – foi, no seu tempo, de enorme valia para as donas de casa da Beira-Mar que, não podendo pagar às lavadeiras profissionais da Quinta do Picado e seus termos, se viam obrigados a levantar-se de madrugada e ir lavar para a Pega e Vilar, e, até, para mais longe...

Como Presidente da Câmara teve erros; o principal, porém, foi o de se convencer – e isto pelo seu muito aveirismo – de que a Câmara e ele eram uma única pessoa, e que podia, sem dar satisfações aos seus colegas da vereação, fazer o que lhe aprazia e pondo-os em frente dos factos consumados.

Mas... o seu esforço e dedicação por Aveiro foi, também, o cargo que desempenhou como Provedor da Misericórdia – e da maneira como o desempenhou. / 232 /

Conseguiu acabar o Hospital, em construção há muitos anos, na Senhora da Ajuda, e transferir, para lá, o velho Hospital, que funcionava no edifício (propriedade da Misericórdia) onde está a casa comercial que foi pertença de Alberto Rosa, um casarão que, no seu interior, até metia medo, o que contrastava com o novo, cheio de luz e higiene e de limpeza impecável, que ele exigia que se mantivesse, exercendo, para isso, rigorosa fiscalização pessoal; e, quanto a limpeza, era intransigente.

Para conseguir obter roupas para o seu Hospital – tudo roupas novas – movimentou todos os seus conhecimentos pessoais e oficiais, conseguiu interessar toda a gente (pobres e ricos), organizou peditórios com a ajuda da mocidade e dos chefes de família.

Para o Hospital, exigia e impunha verbas a pessoas que ele sabia que o podiam fazer, e que não lhas negavam, pelos muitos favores que lhe deviam.

O Dr. Lourenço Peixinho foi um médico distinto no seu tempo, um pouco «João Semana», tratando da mesma maneira ricos e pobres e poucos proventos retirando da sua medicina, pois que aos primeiros não levava dinheiro e, aos segundos, fazia o serviço gratuitamente.

Dizia-se, então, que quem mantinha o consultório eram as companhias de seguros– era médico de quase todas elas.

Eu até o conheci como Homem que espalhava o bem em segredo e, até, como politiqueiro; e, mesmo, sob esta última faceta, foi sempre, e acima de tudo, o aveirense indefectível.

É, principalmente, para o médico – que eu bem conheci – que vai a minha homenagem, o meu respeito e a minha gratidão e o desejo de que o seu espírito viva em paz, isto, apesar de, por força de lugares que desempenhei, ter tido desaguisados com o Presidente da Câmara Municipal de Aveiro.

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