O nosso
amigo Eduardo Cerqueira – o homem que, segundo ele conhece mais
gente dentro dos muros dos cemitérios do que cá fora, evocou, no
Litoral, a propósito do centenário do seu nascimento, um dos seus
conhecidos que estão do lado de dentro e que foi um aveirense que
sentiu, como poucos, uma paixão pela terra que o viu nascer: o
Dr.
Lourenço Peixinho.
E fê-lo à
sua maneira, numa linguagem arrevesada, com o emprego de palavras fora
do uso comum – e que ele sabe manobrar muito bem – mas que exigem, a
quem o quiser ler, ter de pegar no dicionário e mascar, parágrafo a
parágrafo, todo o seu conteúdo para se enfronhar no pensamento do autor.
Linguagem
própria para ser lida e ouvida pelos cidadãos muito cultos e afeitos a
leituras profundas, não me parece – desculpe-me o amigo Cerqueira –
aquele que se deva empregar num jornal de feição popular, que, para ter
interesse, deve usar da que é corrente e que todos são capazes de ler –
e compreender – sem esforço de maior.
Sei que o
Dr. Narciso de Azevedo (que foi professor na Escola Comercial de
Fernando Caldeira) dizia, uma vez, a Homem Cristo que o seu êxito como
jornalista estava, não só naquilo que dizia, mas, e principalmente, na
maneira por que o fazia, isto é, na clareza da linguagem que empregava.
Houve muita
gente que não teve coragem de ler o artigo em referência devido à forma
como está escrito e, com isso, foi prejudicada a intenção do amigo
Cerqueira, que era a de dar a conhecer à geração nova quanto amor e
quanta dedicação o Dr. Lourenço Peixinho teve pela sua terra natal.
Ele foi o grande Presidente da Câmara que
idealizou, e rasgou, a avenida que hoje tem o seu nome, a qual iria dar
feição de cidade à nossa terra, fazendo-o com poucos recursos
financeiros e com processos técnicos rudimentares.
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Imaginem (os
que estão habituados a ver as grandes máquinas a revolver terras e a
transportá-las, mudando o aspecto do local das obras em poucos dias) o
que seria aquele comprimento todo da actual avenida, a ser desaterrado,
com vagonetas, sobre carris, e empurradas por homens que tinham, também,
à picareta, à enxada e à pá, de cavar a terra, de a encher e descarregar
no local, se serão capazes de se aperceberem do esforço despendido e da
persistência necessária a, com o pouco dinheiro que a Câmara tinha,
levar ao fim obra de tamanho vulto para a época.
Só o muito
amor à sua terra e à obra que a si mesmo se impôs, fizeram que ele levasse
a cabo aquela tarefa.
E é bom não
esquecer que o cargo de Presidente da Câmara era de eleição e exercido
gratuitamente.
O seu
empenho na construção do Parque do Infante D. Pedro foi também enorme,
conseguindo, com as suas amizades pessoais, obter, por um preço quase
simbólico, que a casa da Viscondessa de Santo António lhe cedesse aquela
quinta que, no sítio onde está o lago, tinha um paul em que cresciam o
bunho e a tábua e onde viviam e cresciam milhares de mosquitos que
infestavam toda aquela zona.
E, ao falar
desta quinta, o meu pensamento não pode desassociar dela o seu caseiro,
o velho Germano, de barbas brancas e grandes, sempre bem tratadas, e por
quem toda a garotada tinha respeito e medo, apesar de o fazer «comer
lume» com as suas invasões para umas «penhoras» nas árvores da fruta,
que a havia lá e boa.
Outra obra
de vulto para o interesse citadino foi a dos lavadouros públicos no Cais
de S. Roque, aproveitando a água de uma fonte que nunca secou, mesmo nos
períodos agudos da seca, pelos quais passámos há um bom par de anos.
Essa obra
que, aos olhos da moderna geração, poderá não ter importância – pois uma
grande parte tem em sua casa água canalizada e máquina de lavar – foi,
no seu tempo, de enorme valia para as donas de casa da Beira-Mar que,
não podendo pagar às lavadeiras profissionais da Quinta do Picado e seus
termos, se viam obrigados a levantar-se de madrugada e ir lavar para a
Pega e Vilar, e, até, para mais longe...
Como
Presidente da Câmara teve erros; o principal, porém, foi o de se
convencer – e isto pelo seu muito aveirismo – de que a Câmara e ele eram
uma única pessoa, e que podia, sem dar satisfações aos seus colegas da
vereação, fazer o que lhe aprazia e pondo-os em frente dos factos
consumados.
Mas... o seu esforço e dedicação por Aveiro
foi, também, o cargo que desempenhou como Provedor da Misericórdia – e
da maneira como o desempenhou.
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Conseguiu
acabar o Hospital, em construção há muitos anos, na Senhora da Ajuda, e
transferir, para lá, o velho Hospital, que funcionava no edifício
(propriedade da Misericórdia) onde está a casa comercial que foi
pertença de Alberto Rosa, um casarão que, no seu interior, até metia
medo, o que contrastava com o novo, cheio de luz e higiene e de limpeza
impecável, que ele exigia que se mantivesse, exercendo, para isso,
rigorosa fiscalização pessoal; e, quanto a limpeza, era intransigente.
Para
conseguir obter roupas para o seu Hospital – tudo roupas novas –
movimentou todos os seus conhecimentos pessoais e oficiais, conseguiu
interessar toda a gente (pobres e ricos), organizou peditórios com a
ajuda da mocidade e dos chefes de família.
Para o
Hospital, exigia e impunha verbas a pessoas que ele sabia que o podiam
fazer, e que não lhas negavam, pelos muitos favores que lhe deviam.
O Dr.
Lourenço Peixinho foi um médico distinto no seu tempo, um pouco «João
Semana», tratando da mesma maneira ricos e pobres e poucos proventos
retirando da sua medicina, pois que aos primeiros não levava dinheiro e,
aos segundos, fazia o serviço gratuitamente.
Dizia-se,
então, que quem mantinha o consultório eram as companhias de seguros– era
médico de quase todas elas.
Eu até o
conheci como Homem que espalhava o bem em segredo e, até, como
politiqueiro; e, mesmo, sob esta última faceta, foi sempre, e acima de
tudo, o aveirense indefectível.
É,
principalmente, para o médico – que eu bem conheci – que vai a minha
homenagem, o meu respeito e a minha gratidão e o desejo de que o seu
espírito viva em paz, isto, apesar de, por força de lugares que
desempenhei, ter tido desaguisados com o Presidente da Câmara
Municipal de Aveiro. |