Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

O amigo que estava no inferno

A história que vão ler foi-me contada por um ceboleiro que me afirmou que ela não foi inventada por nenhum cagaréu.

Aí vai ela: – Dois amigos, um dos quais muito pacato, com uma vida muito metódica, e, até, relativamente, religiosa, e o outro um «estoira vergas», «rapioqueiro» e desordenado, morreram na mesma ocasião, sendo a morte de ambos motivada por um desastre de automóveis.

Passado um ano, um amigo comum, também morreu; e, chegado que foi junto de S. Pedro, pediu-lhe informações acerca do caminho que cada um levou.

Prestou-se S. Pedro a dar essa informação; e, depois de consultar os seus apontamentos, disse-lhe que o primeiro estava no Purgatório; e, perante a admiração do amigo, S. Pedro informou-o de que, apesar da vida que ele fazia, havia uns «pecadinhos» pelos quais precisava de penitenciar-se. O segundo estava no Inferno; e mostrou-lhe um diorama no qual se via aquele cavalheiro muito bem instalado, com uma «loiraça» espampanante a seu lado, uma mesa com frascos, garrafas e copos e, na frente, uma piscina.

Em face do que viu, o amigo, muito entusiasmado, diz a S. Pedro que, se aquilo é o Inferno, também ele gostava de ir para lá. S. Pedro, porém, modera-lhe o entusiasmo e diz-lhe que, antes de tomar qualquer resolução, ouça a explicação que vai dar-lhe.

A «loiraça», diz S. Pedro, é a esposa que, durante todo o dia, e ralada de ciúmes, lhe quebra a cabeça; os frascos e garrafas são de «uísque» fabricado em Sacavém, e que ele tem que beber; a piscina é cheia com água do Canal Central da Ria de Aveiro, aquando da maré baixa.

Na verdade, a historieta não podia ser inventada por nenhum cagaréu, pois todos sabem que, se em certas ocasiões, o Canal Central e o da Praça do Peixe exalam cheio pouco agradável, não é menos verdade que, daí a pouco, a maré enche e temos um espectáculo lindíssimo e de que poucas terras se poderão orgulhar.

E, a propósito do termo cagaréu com que são designados os naturais de Aveiro, ou melhor, os da freguesia da Vera-Cruz, confesso que, de positivo, nada sei; no entretanto, numa conversa que tive, há anos, com o saudoso professor Dr. José Pereira Tavares e o meu ilustre amigo Dr. David Cristo, ouvi duas hipóteses para o caso. Uma delas é que cagaréu podia provir do termo cagarete que, nos barcos, é o lugar onde os barqueiros se assentam para satisfazerem as suas necessidades fisiológicas para a Ria; outra, que cagaréu era um caranguejo / 219 / muito pequeno, que então existia em muita abundância e que as gentes da beira-mar apanhavam para vender para «escaço», isto é, para adubar as terras, depois de, devidamente, curtido.

Este «escaço» era vendido para os lavradores das margens da Ria; e essa gente, quando se queria referir aos seus fornecedores chamava-lhes os «homens do cagaréu» ou, simplesmente, os «cagaréus».

Quanto ao termo ceboleiros parece não oferecer dúvidas, pois que a freguesia da Glória era composta de lugares onde imperava a horticultura: Santiago, Vilar, S. Bernardo e parte da Quinta do Gato, sendo os seus habitantes em muito maior número do que os da cidade, que daquela freguesia, faziam parte.

– Com estas achegas terei ajudado alguém a procurar a verdade?

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