Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Fontes de energia e calor

Noutros tempos era o reino vegetal o principal fornecedor das fontes de energia e de calor. E digo o principal porque, também, o vento, accionando os moinhos, a estes fornecia a energia necessária para tirar água dos poços, para fazer a moagem de cereais, para produzir electricidade, etc., etc.

Os moinhos de velas de pano que se destinavam a movimentar as moagens de milho e outros cereais, montadas no seu interior, tinham uma arquitectura igual em todo o mundo e eram colocados em lugares altos ou em planícies ventosas, começaram a ser substituídos por outros, montados em torres de ferro, de altura variáveis e convenientes, conforme os locais em que havia necessidade de fazer o seu uso.

Os Mónicas, de S. Bernardo, eram especialistas – e afamados – na construção desses moinhos; e, dos muitíssimos saídos das suas oficinas, havia-os espalhados por todo o País, principalmente no Ribatejo, e destinados a vários fins.

Este tipo de moinhos era conhecido por aeromotores.

Em Aveiro e nos arredores, havia alguns. Os últimos de que me lembro eram o do quintal da Dona Francisca Lemos, em parte do qual estão implantados alguns dos edifícios da Avenida 25 de Abril (moinho cuja torre ainda hoje se vê no referido quintal) e o da Estação dos Caminhos de Ferro, o qual se destinava a puxar água de um poço existente no Bairro do Vouga para abastecer, de recurso, as máquinas de vapor dos comboios da C.P., quando as caldeiras destas indicavam nível inferior à sua segurança, pois que o seu abastecimento normal e completo se fazia em Estarreja, com água sem calcário, ao passo que a do poço do Bairro do Vouga – como acontecia com a da maioria daquela de que Aveiro podia dispor para o seu consumo – continha muito daquele produto, o que prejudicava a conservação da tubagem dessas caldeiras.

Então, Aveiro tinha pouca e má água, convindo dizer – aos mais novos que me lerem – que o abastecimento caseiro se fazia com canecos de barro, / 209 / que se iam encher às fontes e aos marcos fontanários espalhados por vários pontos da cidade.

O moinho da C.P. desapareceu aquando do grande temporal de 16 de Janeiro de 1922, que tantos e enormes prejuízos causou em todo o País, mas, especialmente, na nossa região.

Na Cidade e arredores, destelhou casas, derrubou chaminés, etc., etc: e, nos pinhais, atirou a terra com grande quantidade de árvores de enorme porte.

A força do vento que actuou sobre o referido moinho foi tal, que rebentou o cadeado do travão e o moinho, com a velocidade adquirida, foi perdendo as velas que se iam descravando aos poucos, acontecendo que, algumas delas foram parar a grandes distâncias. No entretanto, a torre, em alguns pontos torcida, conservou-se de pé durante muito tempo.

Na Ria, houve muitos desastres e desgraças. Numerosos barcos que regressavam com o pessoal que tinha ido assistir à festa dos Santos Mártires, em Travassô, voltaram-se e afundaram-se, calculando-se, então, em 140 o número de mortos e desaparecidos em toda a Ria durante as 4 horas que durou o vendaval, havendo famílias inteiras que desapareceram no fundo das águas.

Abriram-se subscrições públicas para minorar a situação das vítimas da Ria – gentes da Murtosa e de Vagos – e, em Aveiro, realizou-se um bando precatório para o mesmo fim.

Um outro temporal, que assolou Aveiro e os seus arredores, foi o de 15 de Fevereiro de 1941, no qual a velocidade do vento atingiu os 200 quilómetros por hora. Na Cidade, derrubou grande quantidade de árvores no Jardim e no Parque, esgalhando o cedro centenário que fica junto ao quiosque do Noi, cedro que já havia sofrido bastante com o temporal de 1922; pôs em reboliço o abarracamento para a Feira de Março, que estava a ser montado; arrombou janelas no edifício do Governo Civil, sendo a Inspecção Escolar que mais sofreu, pois a papelada desta repartição foi parar a grandes distâncias, tendo-se perdido muita documentação; deitou abaixo chaminés e o frontão do edifício da Capitania, e destelhou muitíssimas casas, etc.

Na Ria, entre outras diabruras, descobriu montes de sal, ocasionando prejuízos de grande monta, devido à quantidade de sal que se perdeu.

Ambos os temporais, a que atrás me referi, foram superiores em estragos produzidos, àquele que, há poucos dias ainda, nos assolou e cujos efeitos nós temos na memória, sobretudo o que aconteceu às árvores do Jardim e do Parque que, se é verdade que chocou toda a gente que foi ver o estado em que elas ficaram, comoveu os que costumavam visitar aqueles lugares e os que têm o hábito de por lá se demorar e passar o seu tempo, pois desapareceram exemplares à sombra dos quais conversavam e recordavam tempos passados. Estas árvores eram como se fossem pessoas de família ou companheiros, que morreram e nos deixaram imensas saudades. / 210 /

Os temporais desviaram-me do assunto que estava a tratar, pelo que vou voltar aos moinhos.

Para gerar electricidade destinada a usos caseiros, havia uns, pequenos, muito simples, normalmente de duas pás, denominados aerodínamos, que carregavam uma bateria de acumuladores.

Toda a aparelhagem de produzir electricidade para uso próprio foi proibida de se usar para – segundo presumo – obrigar a gastar a produzida pelas centrais eléctricas construídas nas barragens dos rios e que os técnicos, então, calculavam chegar e crescer para as necessidades do País, pelo que, para se obter a rentabilidade dos capitais empregados, havia necessidade de consumir o maior número possível de quilovátios produzidos por essas centrais. Propagandeou-se a necessidade de, nos serviços domésticos, e nas fábricas, mudar o combustível que se estava a usar e passar a consumir electricidade produzida pelas barragens; e, para isso, estabeleceram-se preços muito convidativos.

Antes das grandes barragens destinadas às centrais eléctricas, já, em vários rios, se faziam outras, pequenas e a título provisório, destinadas a regar os campos marginais e as marinhas de arroz; e, pelo Águeda e pelo Vouga, viam-se as noras que, movimentadas pela água dessas barragens, a elevavam a determinada altura e permitiam a rega desses campos.

A nora de Águeda, no Botaréu, fazia parte da paisagem daquela vila do nosso Distrito.

Devido à diferença de amplitude das marés, as águas da nossa Ria serviram para movimentar moinhos, ali postos pelos Pinto Basto (famosos criadores da Fábrica da Vista Alegre), sendo que, mais tarde, a Fábrica Aleluia os utilizou para moagem de vidro destinado às suas cerâmicas – moinhos que existiram no edifício onde hoje está instalada a Capitania do Porto de Aveiro, e, na antiga estrada da Barra, no local denominado MOINHOS.

A Empresa Electro-Oceânica, que se organizou para montar a electricidade em Aveiro, fê-lo com o sentido de aproveitar a diferença de marés nas Portas de Água – Ponte da Barra – que, segundo era convicção dos seus organizadores, baseada em vários estudos (entre os quais um do General João de Almeida, que era formado em Engenharia), essa diferença era suficiente para movimentar as turbinas que produziriam a electricidade necessária para o consumo da cidade. / 211 /

Era, à primeira vista, um grande negócio, pois não havia necessidade de combustível, nem de grandes obras para a produção de electricidade. Infelizmente, nunca se conseguiu alcançar este fim, apesar daquele General estar sempre à frente da referida Empresa que, na realidade, foi quem fez a montagem e forneceu a primeira electricidade que se consumiu na iluminação pública e particular em Aveiro, mas fê-lo com dínamo accionado por uma máquina de vapor das Fábricas Jerónimo Pereira Campos, Filhos, pois a referida empresa comprou, para aquele efeito, uma outra, velha e com necessidade de grande reparação, que, nas suas mãos, pouco tempo trabalhou.

A Empresa Electro-Oceânica deixou de ser – nunca o foi – rentável e estava em risco de terminar a sua actividade por falta de dinheiro; e Aveiro arriscava-se a ficar sem a luz eléctrica a que já estava habituada.

A Câmara Municipal, da presidência do Dr. Lourenço Peixinho, para evitar tal contratempo, entrou em acordo com a referida Empresa, tomando para si as dívidas da mesma e pagando uma importância para compensar as despesas feitas, importância que totalizou, se a memória não me atraiçoa, os 600 contos, ficando de posse de todos os valores da Empresa Electro-Oceânica e passando a electricidade a ser fornecida pela Câmara.

Perdoem-me o desvio que fiz – e voltemos ao fornecimento da energia pelo reino vegetal.

Nas cozinhas havia os fogões e as grelhas, a queimar lenha, e os fogareiros que queimavam carvão vegetal; e as pessoas de menores recursos usavam saricotés, feitos com um bidão usado e que já não servia para conter líquidos ou uma lata das grandes que havia servido de embalagem a qualquer produto.

Estes recipientes eram cheios de serradura de madeira bem calcada, com um furo ao centro – para servir de chaminé; depois do fogo atiçado, a serradura ardia, lenta e permanentemente. Quando não havia necessidade de cozinhar, colocava-se uma tampa, de forma a tapar o furo central, que, assim, não deixava entrar o ar necessário a fazer-se a combustão rápida, amuando a serradura, que voltava a arder logo que se retirasse a tampa. No Inverno, o saricoté não só servia para cozinhar como, também, para aquecimento das habitações.

Era um aparelhómetro muito barato, quer quanto ao fabrico, quer quanto à manutenção, pois, quando ele se começou a usar, as fábricas de serração de madeiras davam, gratuitamente, a serradura, que possuíam aos montões e ocupavam espaços de que tinham necessidade; certo é que, mais tarde, e em virtude da procura, vendiam-na, aos sacos, por preço irrisório, mesmo para a época.

Uma carga de serradura durava muito tempo.

O uso da lenha, na cozinha, era muito mais trabalhoso para as donas de / 211 / casa, e muito menos limpo do que os actuais processos de cozinhar; havia que ter espaço para a arrumar; rachá-la à medida de entrar no fogão; limpar este, não só para parecer bem, como ainda para trabalhar em condições, pois que sujo interiormente não funcionavam convenientemente.

Aveiro consumia então muita lenha de pinho, pois além da que se gastava nas casas particulares, as fábricas de cerâmica, quer de barro vermelho, quer as de faianças, e bem assim a Fábrica de Porcelana da Vista Alegre, usavam-na para alimentar os fornos de cozedura dos produtos dos eu fabrico.

As padarias aqueciam com ela e com carqueja os seus fornos. Esta também era indispensável nos usos caseiros, para se acenderem os fogões e os fogareiros, pois era com ela – desde que estivesse bastante seca – que se atiçavam os combustíveis que neles se consumiam.

O mercado da lenha e da carqueja era realizado no Cais Central da cidade, à excepção da que se destinava às fábricas; a destas era descarregada e contada nos cais em frente das mesmas, pois usualmente a sua aquisição era feita previamente por contrato entre o fornecedor e a fábrica.

O transporte destas lenhas fazia-se de barco, quer as que vinham dos lados de Águeda – eram as mais apreciadas por serem de pinheiros criados em melhores terrenos –, quer as da região de Pessegueiro do Vouga. Estas eram carregadas na Foz, local da confluência dos rios Vouga e Mau, sendo transportadas para aqui em carros de bois, ou em jangadas, ou ainda em achas soltas, pelo rio Vouga. Nas margens deste, e em locais previamente aprazados, de conformidade com as horas em que as lenhas tinham, sido lançadas ao rio, lá estavam os proprietários das lenhas e o seu pessoal, para recolhê-las e emedá-las na estrada, até serem carregadas nos barcos.

Não havia ainda as camionetas para fazer o transporte de porta-a-porta; e, além disso, o transporte de barco era muito mais barato.

A lenha vendia-se normalmente à conta – por centos de trezentas achas – e para as fábricas, muitas vezes, a peso; e outras a ester. Esta última era a maneira mais honesta de fazer o negócio, mas mais maçadora, por demorar muito tempo o seu empilhamento nas devidas condições de ser medida. À conta, o fornecedor tratava de misturar achas mais pequenas do que aquelas que / 213 / foram mostradas aquando do ajuste; a peso, fornecia achas de envergadura, para a lenha pesar mais, ainda que o contrato fosse feito para lenha seca.

Havia outra classificação da lenha: a faxina, cujo cento correspondia a novecentas achas: era lenha de ramos, etc.

A carqueja vendia-se aos molhos, ou melhor, às dúzias de molhos.

O facto de um cento serem trezentas achas, deu lugar a vários arranjinhos, pois houve quem fornecesse a desconhecedores do nosso mercado o cento por cem achas; sendo certo que o cliente achava caro o preço e mandava averiguar qual o custo do cento da lenha, chegava à conclusão de que estava a comprar por preço inferior ao que corria no mercado, certamente por adquirir grande quantidade.

E, porquê as trezentas achas para fazer um cento? O pinheiro era cortado em toros em medidas estandardizadas, pelos serradores; por sua vez, os rachadores rachavam ao alto esses toros em três; desta forma as trezentas achas correspondiam a cem toros. E até o ajuste do pagamento, feito entre o madeireiro e aqueles (que trabalhavam por conta própria) era feito por centos de toros cortados e rachados.

Os barqueiros serranos moravam todos, ou quase todos, no Sóligo, povoação situada perto de Sever do Vouga, e tinham uma mentalidade muito sua no que diz respeito ao transporte, contagem e venda de lenhas.

Faziam poiso numa taberna que existia no Poço de Santiago, junto à ponte, e lá faziam  despesas de comes e bebes por conta da lenha que transportavam, para o que, na contagem, na entrega, tratavam de fazer aldrabice, saltando de umas dezenas para as outras.

A contagem era feita em voz alta e monocórdica; e podia uma pessoa estar com muita atenção que aquela raça tinha artes de passar de 25 para 36, de 44 para 55, de 66 para 77, etc., sem que, quem estivesse a assistir à contagem  desse pela falcatrua. A diferença entre a quantidade recebida e a que eles tinham conseguido fazer crescer servia-lhes para eles fazerem as despesas da taberna do Poço de Santiago.

Havia quem dissesse que – quando a lenha vinha por conta de alguns fornecedores – eles aldrabavam por conta destes com os quais repartiam os lucros obtidos.

Nem aqueles, que se julgavam esperto e atentos ao serviço, escapavam a esta ladroíce.

Estou a lembrar-me de que, um dia, na Cerâmica Aveirense, um encarregado que se tinha – e era considerado – por muito esperto e proclamava que a ele ninguém o intrujava – o Manuel Maria – foi escalado para, de emergência, assistir a uma pequena descarga de lenha, resto de um barco que se destinava a outro local. Veio ao escritório pedir o talão referente a 6 centos / 214 / que havia recebido. Passado dias, o fornecedor – que era uma pessoa honestíssima – veio trazer o referido talão para rectificar, pois a lenha entregue fora apenas 4 centos. E, com este caso, lá se foi por terra a fama de esperto que tinha o Manuel Maria…

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