Noutros
tempos era o reino vegetal o principal fornecedor das fontes de energia e
de calor. E digo o
principal porque, também, o vento, accionando os moinhos, a estes
fornecia a energia necessária para tirar água dos poços, para fazer a
moagem de cereais, para produzir electricidade, etc., etc.
Os
moinhos de velas de pano que se destinavam a movimentar as
moagens de milho e outros cereais, montadas no seu interior, tinham uma
arquitectura igual em todo o mundo e eram colocados em lugares altos ou
em planícies ventosas, começaram a ser substituídos por outros, montados
em torres de ferro, de altura variáveis e convenientes, conforme os
locais em que havia necessidade de fazer o seu uso.
Os Mónicas,
de S. Bernardo, eram especialistas – e afamados – na construção desses
moinhos; e, dos muitíssimos saídos das suas oficinas, havia-os
espalhados por todo o País, principalmente no Ribatejo, e destinados a
vários fins.
Este tipo de
moinhos era conhecido por aeromotores.
Em Aveiro e
nos arredores, havia alguns. Os últimos de que me lembro eram o do
quintal da Dona Francisca Lemos, em parte do qual estão
implantados alguns dos edifícios da Avenida 25 de Abril (moinho cuja
torre ainda hoje se vê no referido quintal) e o da Estação dos
Caminhos de Ferro, o qual se destinava a puxar água de um poço existente
no Bairro do Vouga para abastecer, de recurso, as máquinas de vapor dos
comboios da C.P., quando as caldeiras destas indicavam nível inferior à
sua segurança, pois que o seu abastecimento normal e completo se fazia
em Estarreja, com água sem calcário, ao passo que a do poço do Bairro do
Vouga – como acontecia com a da maioria daquela de que Aveiro podia
dispor para o seu consumo – continha muito daquele produto, o que
prejudicava a conservação da tubagem dessas caldeiras.
Então,
Aveiro tinha pouca e má água, convindo dizer – aos mais novos que me
lerem – que o abastecimento caseiro se fazia com canecos de barro,
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que se iam encher às fontes e aos marcos fontanários espalhados por
vários pontos da cidade.
O moinho da C.P. desapareceu aquando do
grande temporal de 16 de Janeiro de 1922,
que tantos e enormes prejuízos causou em todo o País, mas,
especialmente, na nossa região.
Na Cidade e
arredores, destelhou casas, derrubou chaminés, etc., etc: e, nos
pinhais, atirou a terra com grande quantidade de árvores de enorme
porte.
A força do
vento que actuou sobre o referido moinho foi tal, que rebentou o cadeado
do travão e o moinho, com a velocidade adquirida, foi perdendo as velas
que se iam descravando aos poucos, acontecendo que, algumas delas foram
parar a grandes distâncias. No entretanto, a torre, em alguns pontos
torcida, conservou-se de pé durante muito tempo.
Na Ria,
houve muitos desastres e desgraças. Numerosos barcos que regressavam com
o pessoal que tinha ido assistir à festa dos Santos Mártires, em
Travassô, voltaram-se e afundaram-se, calculando-se, então, em 140 o
número de mortos e desaparecidos em toda a Ria durante as 4 horas que
durou o vendaval, havendo famílias inteiras que desapareceram no fundo
das águas.
Abriram-se
subscrições públicas para minorar a situação das vítimas da Ria – gentes
da Murtosa e de Vagos – e, em Aveiro, realizou-se um bando precatório
para o mesmo fim.
Um outro
temporal, que assolou Aveiro e os seus arredores, foi o de 15 de
Fevereiro de 1941, no qual a velocidade do vento atingiu os 200
quilómetros por hora. Na Cidade, derrubou grande quantidade de árvores
no Jardim e no Parque, esgalhando o cedro centenário que fica junto ao
quiosque do Noi, cedro que já havia sofrido bastante com o temporal de
1922; pôs em reboliço o abarracamento para a Feira de Março, que estava
a ser montado; arrombou janelas no edifício do Governo Civil, sendo a
Inspecção Escolar que mais sofreu, pois a papelada desta repartição foi
parar a grandes distâncias, tendo-se perdido muita documentação; deitou
abaixo chaminés e o frontão do edifício da Capitania, e destelhou
muitíssimas casas, etc.
Na Ria,
entre outras diabruras, descobriu montes de sal, ocasionando prejuízos
de grande monta, devido à quantidade de sal que se perdeu.
Ambos os temporais, a que atrás me referi,
foram superiores em estragos produzidos, àquele que, há poucos dias
ainda, nos assolou e cujos efeitos nós temos na memória, sobretudo o que
aconteceu às árvores do Jardim e do Parque que, se é verdade que chocou
toda a gente que foi ver o estado em que elas ficaram, comoveu os que
costumavam visitar aqueles lugares e os que têm o hábito de por lá se
demorar e passar o seu tempo, pois desapareceram exemplares à sombra dos
quais conversavam e recordavam tempos passados. Estas árvores eram como
se fossem pessoas de família ou companheiros, que morreram e nos
deixaram imensas saudades.
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Os temporais
desviaram-me do assunto que estava a tratar, pelo que vou voltar aos
moinhos.
Para gerar
electricidade destinada a usos caseiros, havia uns, pequenos, muito
simples, normalmente de duas pás, denominados aerodínamos, que
carregavam uma bateria de acumuladores.
Toda a
aparelhagem de produzir electricidade para uso próprio foi proibida de
se usar para – segundo presumo – obrigar a gastar a produzida pelas
centrais eléctricas construídas nas barragens dos rios e que os
técnicos, então, calculavam chegar e crescer para as necessidades do
País, pelo que, para se obter a rentabilidade dos capitais empregados,
havia necessidade de consumir o maior número possível de quilovátios
produzidos por essas centrais. Propagandeou-se a necessidade de, nos
serviços domésticos, e nas fábricas, mudar o combustível que se estava a
usar e passar a consumir electricidade produzida pelas barragens; e,
para isso, estabeleceram-se preços muito convidativos.
Antes das
grandes barragens destinadas às centrais eléctricas, já, em vários rios, se
faziam outras, pequenas e a título provisório, destinadas a regar os
campos marginais e as marinhas de arroz; e, pelo Águeda e pelo Vouga,
viam-se as noras que, movimentadas pela água dessas
barragens, a elevavam a determinada altura e permitiam a rega desses
campos.
A nora de
Águeda, no Botaréu, fazia parte da paisagem daquela vila do nosso
Distrito.
Devido à
diferença de amplitude das marés, as águas da nossa Ria serviram para
movimentar moinhos, ali postos pelos Pinto Basto (famosos criadores da
Fábrica da Vista Alegre), sendo que, mais tarde, a Fábrica Aleluia os
utilizou para moagem de vidro destinado às suas cerâmicas – moinhos que
existiram no edifício onde hoje está instalada a Capitania do Porto de
Aveiro, e, na antiga estrada da Barra, no local denominado MOINHOS.
A Empresa Electro-Oceânica, que se organizou para montar a electricidade em
Aveiro, fê-lo com o sentido de aproveitar a diferença de marés nas
Portas de Água – Ponte da Barra – que, segundo era convicção dos seus
organizadores, baseada em vários estudos (entre os quais um do
General João de Almeida, que era formado em Engenharia), essa
diferença era suficiente para movimentar as turbinas que produziriam a
electricidade necessária para o consumo da cidade.
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Era, à
primeira vista, um grande negócio, pois não havia necessidade de
combustível, nem de grandes obras para a produção de electricidade.
Infelizmente, nunca se conseguiu alcançar este fim, apesar daquele
General estar sempre à frente da referida Empresa que, na realidade, foi
quem fez a montagem e forneceu a primeira electricidade que se consumiu
na iluminação pública e particular em Aveiro, mas fê-lo com dínamo
accionado por uma máquina de vapor das Fábricas Jerónimo Pereira Campos,
Filhos, pois a referida empresa comprou, para aquele efeito, uma outra,
velha e com necessidade de grande reparação, que, nas suas mãos, pouco
tempo trabalhou.
A Empresa
Electro-Oceânica deixou de ser – nunca o foi – rentável e estava em
risco de terminar a sua actividade por falta de dinheiro; e Aveiro
arriscava-se a ficar sem a luz eléctrica a que já estava habituada.
A Câmara
Municipal, da presidência do Dr. Lourenço Peixinho, para evitar
tal contratempo, entrou em acordo com a referida Empresa, tomando para
si as dívidas da mesma e pagando uma importância para compensar as
despesas feitas, importância que totalizou, se a memória não me
atraiçoa, os 600 contos, ficando de posse de todos os valores da Empresa
Electro-Oceânica e passando a electricidade a ser fornecida pela Câmara.
Perdoem-me o
desvio que fiz – e voltemos ao fornecimento da energia pelo reino
vegetal.
Nas cozinhas
havia os fogões e as grelhas, a queimar lenha, e os fogareiros que
queimavam carvão vegetal; e as pessoas de menores recursos usavam
saricotés, feitos com um bidão usado e que já não servia para
conter líquidos ou uma lata das grandes que havia servido de embalagem a
qualquer produto.
Estes
recipientes eram cheios de serradura de madeira bem calcada, com um furo
ao centro – para servir de chaminé; depois do fogo atiçado, a serradura
ardia, lenta e permanentemente. Quando não havia necessidade de
cozinhar, colocava-se uma tampa, de forma a tapar o furo central, que,
assim, não deixava entrar o ar necessário a fazer-se a combustão rápida,
amuando a serradura, que voltava a arder logo que se retirasse a tampa.
No Inverno, o saricoté não só servia para cozinhar como, também, para
aquecimento das habitações.
Era um
aparelhómetro muito barato, quer quanto ao fabrico, quer quanto à
manutenção, pois, quando ele se começou a usar, as fábricas de serração
de madeiras davam, gratuitamente, a serradura, que possuíam aos montões
e ocupavam espaços de que tinham necessidade; certo é que, mais tarde, e
em virtude da procura, vendiam-na, aos sacos, por preço irrisório, mesmo
para a época.
Uma carga de
serradura durava muito tempo.
O uso da lenha, na cozinha, era muito mais
trabalhoso para as donas de
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casa, e muito menos limpo do que os actuais processos de cozinhar; havia
que ter espaço para a arrumar; rachá-la à medida de entrar no fogão;
limpar este, não só para parecer bem, como ainda para trabalhar em
condições, pois que sujo interiormente não funcionavam convenientemente.
Aveiro
consumia então muita lenha de pinho, pois além da que se gastava nas
casas particulares, as fábricas de cerâmica, quer de barro vermelho,
quer as de faianças, e bem assim a Fábrica de Porcelana da Vista Alegre,
usavam-na para alimentar os fornos de cozedura dos produtos dos eu
fabrico.
As padarias
aqueciam com ela e com carqueja os seus fornos. Esta também era
indispensável nos usos caseiros, para se acenderem os fogões e os
fogareiros, pois era com ela – desde que estivesse bastante seca – que
se atiçavam os combustíveis que neles se consumiam.
O mercado da
lenha e da carqueja era realizado no Cais Central da cidade, à excepção
da que se destinava às fábricas; a destas era descarregada e contada nos
cais em frente das mesmas, pois usualmente a sua aquisição era feita
previamente por contrato entre o fornecedor e a fábrica.
O transporte
destas lenhas fazia-se de barco, quer as que vinham dos lados de Águeda
– eram as mais apreciadas por serem de pinheiros criados em melhores
terrenos –, quer as da região de Pessegueiro do Vouga. Estas eram
carregadas na Foz, local da confluência dos rios Vouga e Mau, sendo
transportadas para aqui em carros de bois, ou em jangadas, ou ainda em
achas soltas, pelo rio Vouga. Nas margens deste, e em locais previamente
aprazados, de conformidade com as horas em que as lenhas tinham, sido
lançadas ao rio, lá estavam os proprietários das lenhas e o seu pessoal,
para recolhê-las e emedá-las na estrada, até serem carregadas nos
barcos.
Não havia
ainda as camionetas para fazer o transporte de porta-a-porta; e,
além disso, o transporte de barco era muito mais barato.
A lenha
vendia-se normalmente à conta – por centos de trezentas achas – e para
as fábricas, muitas vezes, a peso; e outras a ester. Esta última
era a maneira mais honesta de fazer o negócio, mas mais maçadora, por
demorar muito tempo o seu empilhamento nas devidas condições de ser
medida. À conta, o fornecedor tratava de misturar achas mais pequenas do
que aquelas que
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foram mostradas aquando do ajuste; a peso, fornecia achas de
envergadura, para a lenha pesar mais, ainda que o contrato fosse feito
para lenha seca.
Havia outra
classificação da lenha: a faxina, cujo cento correspondia a
novecentas achas: era lenha de ramos, etc.
A carqueja
vendia-se aos molhos, ou melhor, às dúzias de molhos.
O facto de
um cento serem trezentas achas, deu lugar a vários arranjinhos,
pois houve quem fornecesse a desconhecedores do nosso mercado o cento
por cem achas; sendo certo que o cliente achava caro o preço e mandava
averiguar qual o custo do cento da lenha, chegava à conclusão de que
estava a comprar por preço inferior ao que corria no mercado, certamente
por adquirir grande quantidade.
E, porquê as
trezentas achas para fazer um cento? O pinheiro era cortado em toros em
medidas estandardizadas, pelos serradores; por sua vez, os rachadores
rachavam ao alto esses toros em três; desta forma as trezentas achas
correspondiam a cem toros. E até o ajuste do pagamento, feito entre o
madeireiro e aqueles (que trabalhavam por conta própria) era feito por
centos de toros cortados e rachados.
Os
barqueiros serranos moravam todos, ou quase todos, no Sóligo,
povoação situada perto de Sever do Vouga, e tinham uma mentalidade muito
sua no que diz respeito ao transporte, contagem e venda de lenhas.
Faziam poiso
numa taberna que existia no Poço de Santiago, junto à ponte, e lá
faziam despesas de comes e bebes por conta da lenha que transportavam,
para o que, na contagem, na entrega, tratavam de fazer aldrabice,
saltando de umas dezenas para as outras.
A contagem
era feita em voz alta e monocórdica; e podia uma pessoa estar com muita
atenção que aquela raça tinha artes de passar de 25 para 36, de 44 para
55, de 66 para 77, etc., sem que, quem estivesse a assistir à contagem
desse pela falcatrua. A diferença entre a quantidade recebida e a que
eles tinham conseguido fazer crescer servia-lhes para eles fazerem as
despesas da taberna do Poço de Santiago.
Havia quem
dissesse que – quando a lenha vinha por conta de alguns fornecedores –
eles aldrabavam por conta destes com os quais repartiam os lucros
obtidos.
Nem aqueles,
que se julgavam esperto e atentos ao serviço, escapavam a esta ladroíce.
Estou a lembrar-me de que, um dia, na Cerâmica Aveirense, um encarregado
que se tinha – e era considerado – por muito esperto e proclamava que a
ele ninguém o intrujava – o Manuel Maria – foi escalado para, de
emergência, assistir a uma pequena descarga de lenha, resto de um barco
que se destinava a outro local. Veio ao escritório pedir o talão
referente a 6 centos
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havia recebido. Passado dias, o fornecedor – que era uma pessoa
honestíssima – veio trazer o referido talão para rectificar, pois a
lenha entregue fora apenas 4 centos. E, com este caso, lá se foi por
terra a fama de esperto que tinha o Manuel Maria… |