Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Entremezes

Poucas são já as pessoas que se lembram de ter assistido a um entremez.

O último que me recordo de ter visto foi numa festa da Senhora das Febres, no largo em frente à capela, já lá vão muitos, muitos anos.

Nos entremezes – espectáculos teatrais ao ar livre – representavam-se / 206 / farsas, peças bíblicas e históricas, dramalhões de faca e alguidar, comédias «amorudas», variedades, etc., etc., que entusiasmavam a assistência e a faziam vibrar, ou originavam o desencadear de pateadas quando o actor representava um papel antipático que, na peça, lhe tinha sido distribuído.

Os actores, normalmente gente com pouca instrução, representavam à sua maneira, tomando a sério a personagem que lhe coube na distribuição dos papéis.

Fecho os olhos e parece-me estar a ver um Herodes furibundo, de espadalhão feito de madeira, de cabeleira comprida, de grandes barbas e farta bigodeira – para acentuar bem a importância desse personagem – a arengar para a plateia, isto é, para o público que estava, de pé, a assistir à representação, com um enorme vozeirão, ameaçando que mandaria matar todas as crianças, para, assim, evitar que Aquele que lhe disseram ter nascido há pouco tempo e que viria a ser o Rei dos reis – como o anunciaram os Magos – viesse, de facto, a reinar sobre a Terra, correndo com os poderosos, o que para ele, Herodes, era uma ameaça.

Muitos desses entremezes eram ensaiados e representados por pessoal das aldeias nossas circunvizinhas; mas, também, entre as gentes da nossa Beira-Mar se organizaram grupos, não só para fazerem entremezes na festa da Senhora das Febres, como, também, para irem a outras terras mostrar as suas habilidades.

Do – possível – último destes grupos, que deu brado pelo que lhe aconteceu na Murtosa, onde se viram à rasca quando da sua actuação, resta, que eu saiba, apenas um elemento, o João Setenta (Setenta é alcunha) que, então ainda rapaz (era o mais novo do grupo ensaiado pelo amador Abel Costa), cantava a canção muito em voga chamada «Géni», e a representava, sendo muito aplaudido pela maneira por que o fazia.

De um desses entremezes há quem se lembre das seguintes quadras e da sua música:

Já ouço para aí banzé

Anda para aí traulitada.

Joaquina não tenhas medo

Pega aqui na minha espada.

 

Ai Joaquina!

Ai Setenta!

Assim agarradinhos

É que a gente se contenta. / 207 /

O Largo da Senhora das Febres, pela diferença de nível entre a capela e a rua, tinha diferente aspecto do que actualmente tem. Este foi-lhe dado pela Câmara Municipal quando, para alindar o local, mandou fazer ali uma mancha verde, arrelvando e plantando uns arbustos que o rapazio não soube respeitar. Então, havia uma rampa, que terminava no tanque do lavadoiro da fonte de S. Roque, rampa na qual, na noite de S. João, as pessoas que sofriam de doenças de pele – e outras que fingiam sofrer –, tapando o corpo com roupas muito ligeiras, se deitavam a rebolar por essa rampa, dizendo:

Em louvor de S. João

Para que o meu corpo fique são.

Prestava-se o largo para a montagem do palco, pois que, com umas cruzetas de madeira e umas poucas de tábuas, tapadas com serapilheiras, até se arranjava o lugar para o ponto, o qual se metia dentro de uma barrica, para evitar que os engraçados o espicaçassem com alfinetes e outros picos, atitude que esses ou outros engraçados tomavam, através das frinchas das tábuas ou da serapilheira, quando o homem do ponto se sentava sem qualquer defesa.

Mas... entremezes havia-os com quase todas as festas das nossas redondezas e até à Feira de Março vinham barracas onde eles eram representados. De um deles há quem se recorde das seguintes quadras:

Maldita marreca,

Maldito aleijão.

Esta alforreca

Não se endireita, não.

 

Não se endireita, não!

Maldito zagaz,

Confusão me faz.

Maldita marreca!

À Feira vinham barracas com teatros: representando peças ao gosto popular.

É de recordar o Dàló – de que eu não me lembro ver qualquer representação – que entusiasmava as gentes da Beira-Mar, ao ponto destas irem empenhar os valores que tinham em casa para não faltarem aos espectáculos, tão viciados estavam; isto numa época em que o dinheiro era pouco e, naquele bairro, se vivia parcamente.

Houve anos em que a Polícia teve de intervir, afastando à força, de Aveiro, aquela companhia teatral. Desta companhia ficaram em Aveiro o Joaquim Tainha (foi contínuo dos Galitos) e sua mulher, a Sancha. / 208 /

Mais tarde – e desse, sim, lembro-me bem – vinha o RINTINI, com casas sempre à cunha, não só devido às peças que representava, como, também, pela beleza, simpatia e gentileza das actrizes, familiares do empresário.

Quando eram necessários comparsas, elas encarregavam-se de os arranjar e eles tomavam parte, de borla, só para corresponder à gentileza dessas actrizes.

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