Poucas são
já as pessoas que se lembram de ter assistido a um entremez.
O último que
me recordo de ter visto foi numa festa da Senhora das Febres, no largo em
frente à capela, já lá vão muitos, muitos anos.
Nos
entremezes – espectáculos teatrais ao ar livre – representavam-se
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/ farsas, peças bíblicas e
históricas, dramalhões de faca e alguidar,
comédias «amorudas», variedades, etc., etc., que entusiasmavam a
assistência e a faziam vibrar, ou originavam o desencadear de pateadas
quando o actor representava um papel antipático que, na peça, lhe tinha
sido distribuído.
Os actores,
normalmente gente com pouca instrução, representavam à sua maneira,
tomando a sério a personagem que lhe coube na distribuição dos papéis.
Fecho os
olhos e parece-me estar a ver um Herodes furibundo, de espadalhão feito
de madeira, de cabeleira comprida, de grandes barbas e farta bigodeira –
para acentuar bem a importância desse personagem – a arengar para a
plateia, isto é, para o público que estava, de pé, a assistir à
representação, com um enorme vozeirão, ameaçando que mandaria matar
todas as crianças, para, assim, evitar que Aquele que lhe disseram ter
nascido há pouco tempo e que viria a ser o Rei dos reis – como o
anunciaram os Magos – viesse, de facto, a reinar sobre a Terra, correndo
com os poderosos, o que para ele, Herodes, era uma ameaça.
Muitos
desses entremezes eram ensaiados e representados por pessoal das aldeias
nossas circunvizinhas; mas, também, entre as gentes da nossa Beira-Mar se
organizaram grupos, não só para fazerem entremezes na festa da Senhora
das Febres, como, também, para irem a outras terras mostrar as suas
habilidades.
Do –
possível – último destes grupos, que deu brado pelo que lhe aconteceu na
Murtosa, onde se viram à rasca quando da sua actuação, resta, que eu
saiba, apenas um elemento, o João Setenta (Setenta é alcunha) que, então
ainda rapaz (era o mais novo do grupo ensaiado pelo amador
Abel Costa),
cantava a canção muito em voga chamada «Géni», e a representava, sendo
muito aplaudido pela maneira por que o fazia.
De um desses
entremezes há quem se lembre das seguintes quadras e da sua música:
Já ouço
para aí banzé
Anda para
aí traulitada.
Joaquina
não tenhas medo
Pega aqui
na minha espada.
Ai
Joaquina!
Ai
Setenta!
Assim
agarradinhos
É
que a gente se contenta.
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O Largo da
Senhora das Febres, pela diferença de nível entre a capela e a rua,
tinha diferente aspecto do que actualmente tem. Este foi-lhe dado pela
Câmara Municipal quando, para alindar o local, mandou fazer ali uma
mancha verde, arrelvando e plantando uns arbustos que o rapazio não
soube respeitar. Então, havia uma rampa, que terminava no tanque do
lavadoiro da fonte de S. Roque, rampa na qual, na noite de S. João, as
pessoas que sofriam de doenças de pele – e outras que fingiam sofrer –,
tapando o corpo com roupas muito ligeiras, se deitavam a rebolar por essa
rampa, dizendo:
Em louvor
de S. João
Para que
o meu corpo fique são.
Prestava-se
o largo para a montagem do palco, pois que, com umas cruzetas de madeira
e umas poucas de tábuas, tapadas com serapilheiras, até se arranjava o
lugar para o ponto, o qual se metia dentro de uma barrica, para evitar
que os engraçados o espicaçassem com alfinetes e outros picos, atitude
que esses ou outros engraçados tomavam, através das frinchas das tábuas
ou da serapilheira, quando o homem do ponto se sentava sem qualquer
defesa.
Mas...
entremezes havia-os com quase todas as festas das nossas redondezas e
até à Feira de Março vinham barracas onde eles eram representados. De um
deles há quem se recorde das seguintes quadras:
Maldita
marreca,
Maldito
aleijão.
Esta
alforreca
Não se
endireita, não.
Não se
endireita, não!
Maldito
zagaz,
Confusão
me faz.
Maldita
marreca!
À Feira
vinham barracas com teatros: representando peças ao gosto popular.
É de
recordar o Dàló – de que eu não me lembro ver qualquer
representação – que entusiasmava as gentes da Beira-Mar, ao ponto destas
irem empenhar os valores que tinham em casa para não faltarem aos
espectáculos, tão viciados estavam; isto numa época em que o dinheiro
era pouco e, naquele bairro, se vivia parcamente.
Houve anos
em que a Polícia teve de intervir, afastando à força, de Aveiro, aquela
companhia teatral. Desta companhia ficaram em Aveiro o
Joaquim
Tainha (foi contínuo dos Galitos) e sua mulher, a Sancha.
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Mais tarde –
e desse, sim, lembro-me bem – vinha o RINTINI, com casas sempre à cunha,
não só devido às peças que representava, como, também, pela beleza,
simpatia e gentileza das actrizes, familiares do empresário.
Quando eram necessários comparsas, elas encarregavam-se de os arranjar e
eles tomavam parte, de borla, só para corresponder à gentileza dessas
actrizes.
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