Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Outros ofícios

Quem se lembra, ainda, do homem dos sete instrumentos?

Numas andas (duas varas a fazer de pernas ou muletas, de pau, com um estribo em que apoiam os pés), apareciam pelas nossa ruas uns homens que transportavam sete instrumentos musicais e os tocavam ao mesmo tempo. Eram eles: bombo, caixa, pratos, ferrinhos, gaita de boca, sineta (que eles tocavam abanando a cabeça) e uma série de guizos (enrolados nos braços).

Para uma pessoa se equilibrar e caminhar nas andas, cujos estribos, nestas, do homem dos sete instrumentos, ficavam a cerca de um metro de altura, já era um caso muito sério; agora, com aquele instrumental todo, e a tocá-lo, era coisa muito difícil de executar.

Normalmente, apresentavam-se vestidos de fraque e com cartola, certamente para dar dignidade à sua profissão.

Estes homens, só por si, eram um espectáculo!

Mais tarde apareceram outros a cavalo; para estes era mais fácil a execução da sua música visto que iam comodamente sentados e quem carregava os instrumentos era o cavalo.

Quando vejo, na TV, a charanga da GNR, a cavalo, e nesta o músico que toca os tímpanos, recordo-me, imediatamente, do homem dos sete instrumentos.

Em certa altura, a rapaziada de então desatou a construir andas para as suas brincadeiras, organizando competições, principalmente de corridas.

E quantos se lembram do homem do realejo?

O realejo era uma caixa de música que tocava accionada por uma manivela; era montada sobre um carrito para se poder deslocar.

Nessa caixa havia gravadas várias músicas (talvez como hoje há as cassetes) que o homem tocava dando à manivela.

Juntava-se vária assistência à sua volta e às janelas, à qual ele estendia o chapéu para colher algumas moedas com que cada um queria contribuir, pois o realejo era, para ele, a ferramenta de que dispunha para angariar os vinténs de que necessitava para viver.

Já tenho visto, em barracas de feira, e em cafés, uns «aparelhómetros» que tocam a música que o cliente escolhe, das que constam de uma lista existente nos mesmos. Mas, nestes, nem é preciso dar à manivela, nem é necessário esperar que a assistência se esportule, porque eles tocam electricamente e só o fazem mediante a entrada, na sua caixa, de uma moeda de valor previamente estabelecido; é pago, adiantadamente, ao contrário do homem do realejo, que tinha de aguardar que a caridade dos ouvintes se manifestasse a seu favor, / 203 / depois dele se ter esfalfado a dar à manivela, acontecendo, algumas vezes, nada, ou quase nada, receber do público que havia assistido à sua execução.

E do homem dos robertos, quem se lembra?

Lugar que lhe servia para representar as suas pantominas limitava-se a um biombo de forma triangular, feito de ripas de madeira a que estavam pregados os panos de chita que defendiam o seu interior do olhar do público.

Era um objecto muito leve para poder ser transportado para qualquer lado (esta gente dos robertos percorria grande parte do país) e com a altura suficiente para encobrir o operador da vista dos assistentes às representações, que eram feitas em plena praça pública.

Além do biombo, o homem dos robertos, e a família que o acompanhava, pouco mais possuíam para organizar o seu espectáculo: a caixa com os fantoches e as diversas vestimentas para os vestir conforme a pantomina em que teriam de entrar; uma gaita feita de dois ferritos quadrados ligados por um pedaço de fita de nastro que o homem punha na boca e com a qual imitava, em falsetes, a fala dos personagens; e, ou, um macaquito, ou um cãozito, ou um gato que, colocados num dos cantos do biombo, serviam para chamar a atenção da pequenada e, até às vezes, eram desafiados a entrar, ou mesmo contra-vontade, na representação.

Quaisquer destes bichos, à força de prática, adquiriam a paciência necessária para estarem quietos durante o espectáculo, acontecendo que o macaquito, ou o cãozito, de pé, acompanhavam o familiar no peditório que este fazia pela assistência no intervalo do espectáculo.

Porque este espectáculo era gratuito e porque servia de divertimento, quer aos miúdos – que o adoravam –, quer aos graúdos, o homem dos robertos tinha de recorrer à generosidade dos assistentes, para ele, e a família, irem vivendo.

E que difícil vida eles viviam!

Já rapaz, eu admirava a pachorra – e a paciência do gato que um desses homens trazia, pois sendo o gato um animal muito arisco, conseguia, sem sair do seu posto, assistir às cenas de pancadaria entre os robertos e, até algumas vezes, ser envolvido na pantomina.

O homem dos robertos tinha de ter, além da habilidade indispensável para manobrar os seus fantoches, grande imaginação para inventar as pantominas que teria de representar, e que eram várias. Havia personagens que entravam em quase todas elas: o barbeiro, com a sua enorme navalha feita de madeira; o diabo, que, depois de fazer várias travessuras, acabava por ser um bombo de festa, apanhando bordoada de criar bicho; o juiz e o polícia, para imporem a sua autoridade, etc., etc.. / 204 /

Agora... as marionetes, com que querem substituir os robertos, são manejadas em locais cobertos, por pessoas com ordenado certo e subsídios estatais, ao passo que os familiares daqueles ambulantes passavam fome muitas vezes, por não conseguirem recolher, nas suas colectas, o dinheiro suficiente para comprarem o indispensável para se alimentarem.

Por Aveiro apareciam os Circos ambulantes, que davam os seus espectáculos no meio da rua, estendendo, para os seus componentes se exibirem, uma manta daquelas feitas com farrapos.

Era uma miséria pegada: um ou dois miúdos, filhos do casal proprietário do circo, davam umas cabriolas, uns saltos mortais e faziam contorcionismo – habilidades que aprenderam à força de os fazerem passar fome ou lhes darem bastante tapona –, ao mesmo tempo que os pais tocavam, normalmente, cornetim e tambor, para chamar a atenção do «respeitável público» – na sua maneira de dizer – reclamando a excelência e as dificuldades dos números do espectáculo.

Havia, também, uns outros circos mais completos, com alguns aparelhos de ginástica, nos quais se exibiam familiares dos seus proprietários que, deles, se sabiam servir.

Era vulgar aparecerem outros com ursos domesticados que, entre outras habilidades, sabiam dançar, tocar pandeireta, sendo com esta, e apoiados nas patas traseiras, que eles iam fazer o peditório pela assistência. Andavam presos a fortes cadeados, mas, na sua maioria, eram mansos.

Podia estar muita gente à volta das mantas onde estes artistas dos circos ambulantes se exibiam; certo era, porém, que mesmo antes do espectáculo terminar e começar o peditório, uma grande parte da assistência se punha a mexer para não contribuir com a sua moeda.

Toda esta gente vivia uma vida miserável e sujeita a ter de governar-se com o pouco que apurava da generosidade de algumas pessoas que assistiam aos seus espectáculos dados na via pública.

Desapareceram das ruas da nossa terra, há já muitíssimos anos, os homens que as percorriam batendo numa peça de cobre, estragada, para chamar a atenção do público, os quais faziam o seu negócio recebendo cobre e outros metais (especialmente, chumbo) e dando em troca castanhas piladas e figos passados (figos de ceira).

A garotada tratava de procurar por todos os lados, e obter de qualquer maneira, chumbo e pedaços de outros metais para os trocar pelas castanhas / 205 / piladas (que hoje custam à volta de cem escudos o quilo, segundo eu vi numa montra), e noutro tempo, além de se comerem cruas (eram rijas como os cornos do diabo, segundo era uso dizer-se) nos eram dadas no caldo da Quinta-Feira Santa, cozidas com feijão branco. Era uma sopa tradicional, mas muito adocicada e com a qual a maioria da petizada pouco engraçava mas que, naquele dia, era uso e costume servir-se na maioria das casas, quer as dos ricos, quer as dos pobres, e havia que comê-la.

Dizia-se, nesse tempo, que aqueles homens eram Zíngaros, descendentes dos naturais da Hungria, que tinham vindo para Portugal a fim de montar a indústria de caldeiraria, em que eram exímios.

Na nossa zona, principalmente em Eixo, Costa do Valado e Fermentelos, tal indústria é tradicional; nas duas últimas daquelas povoações mantém-se altamente aperfeiçoada, e os seus produtos são reputados, em todo o País, como dos mais perfeitos. Lembro-me dos alambiques, das máquinas de sulfatar e das miniaturas de objectos caseiros (dos que se usavam antigamente); estas são o encanto dos estrangeiros cultos que nos visitam e uma das prendas que eles mais apreciam.

Já tive o prazer de verificar a alegria e a satisfação de duas famílias francesas das minhas relações a quem ofereci uma dessas miniaturas, famílias das quais havia recebido umas prendas francesas.

Diziam-me não saber como agradecer tão gentil oferta.

Que é feito dos barquilheiros que, na tampa das suas caixas (que traziam às costas), tinham uma roleta e que nos entregavam os barquilhos que tínhamos tido a sorte (se eram muitos) ou a infelicidade (se eram poucos) de nos saírem nas jogadas que fazíamos por cinco réis, dez réis ou um vintém?

Onde param os homens dos caramilos que, pelas ruas, apregoavam «Quer chucha? Quer mama?»

Em vez dos barquilheiros há os que vendem – e já são poucos – guardanapos ou línguas de sogra; e, para substituir os caramilos, há, industrializados, os chupa-chupa.

Como as coisas mudaram e a vida de Aveiro foi alterada em tão pouco tempo!...

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