Quem se
lembra, ainda, do homem dos sete instrumentos?
Numas andas
(duas varas a fazer de pernas ou muletas, de pau, com um estribo em que
apoiam os pés), apareciam pelas nossa ruas uns homens que transportavam
sete instrumentos musicais e os tocavam ao mesmo tempo. Eram eles:
bombo, caixa, pratos, ferrinhos, gaita de boca, sineta (que eles tocavam
abanando a cabeça) e uma série de guizos (enrolados nos braços).
Para uma
pessoa se equilibrar e caminhar nas andas, cujos estribos, nestas, do
homem dos sete instrumentos, ficavam a cerca de um metro de altura, já
era um caso muito sério; agora, com aquele instrumental todo, e a
tocá-lo, era coisa muito difícil de executar.
Normalmente,
apresentavam-se vestidos de fraque e com cartola, certamente para dar
dignidade à sua profissão.
Estes
homens, só por si, eram um espectáculo!
Mais tarde
apareceram outros a cavalo; para estes era mais fácil a execução da sua
música visto que iam comodamente sentados e quem carregava os
instrumentos era o cavalo.
Quando vejo,
na TV, a charanga da GNR, a cavalo, e nesta o músico que toca os
tímpanos, recordo-me, imediatamente, do homem dos sete instrumentos.
Em certa
altura, a rapaziada de então desatou a construir andas para as suas
brincadeiras, organizando competições, principalmente de corridas.
E quantos se
lembram do homem do realejo?
O realejo
era uma caixa de música que tocava accionada por uma manivela; era montada
sobre um carrito para se poder deslocar.
Nessa caixa
havia gravadas várias músicas (talvez como hoje há as cassetes) que o
homem tocava dando à manivela.
Juntava-se
vária assistência à sua volta e às janelas, à qual ele estendia o chapéu
para colher algumas moedas com que cada um queria contribuir, pois o
realejo era, para ele, a ferramenta de que dispunha para angariar os
vinténs de que necessitava para viver.
Já tenho
visto, em barracas de feira, e em cafés, uns «aparelhómetros» que tocam
a música que o cliente escolhe, das que constam de uma lista existente
nos mesmos. Mas, nestes, nem é preciso dar à manivela, nem é necessário
esperar que a assistência se esportule, porque eles tocam electricamente
e só o fazem mediante a entrada, na sua caixa, de uma moeda de valor
previamente estabelecido; é pago, adiantadamente, ao contrário do homem
do realejo, que tinha de aguardar que a caridade dos ouvintes se
manifestasse a seu favor,
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depois dele se ter esfalfado a dar à manivela, acontecendo, algumas
vezes, nada, ou quase nada, receber do público que havia assistido à sua
execução.
E do
homem dos robertos, quem se lembra?
Lugar que
lhe servia para representar as suas pantominas limitava-se a um biombo de
forma triangular, feito de ripas de madeira a que estavam pregados os
panos de chita que defendiam o seu interior do olhar do público.
Era um
objecto muito leve para poder ser transportado para qualquer lado (esta
gente dos robertos percorria grande parte do país) e com a altura
suficiente para encobrir o operador da vista dos assistentes às
representações, que eram feitas em plena praça pública.
Além do
biombo, o homem dos robertos, e a família que o acompanhava, pouco mais
possuíam para organizar o seu espectáculo: a caixa com os fantoches e as
diversas vestimentas para os vestir conforme a pantomina em que teriam
de entrar; uma gaita feita de dois ferritos quadrados ligados por um
pedaço de fita de nastro que o homem punha na boca e com a qual imitava,
em falsetes, a fala dos personagens; e, ou, um macaquito, ou um cãozito,
ou um gato que, colocados num dos cantos do biombo, serviam para chamar
a atenção da pequenada e, até às vezes, eram desafiados a entrar, ou
mesmo contra-vontade, na representação.
Quaisquer
destes bichos, à força de prática, adquiriam a paciência necessária para
estarem quietos durante o espectáculo, acontecendo que o macaquito, ou o
cãozito, de pé, acompanhavam o familiar no peditório que este fazia pela
assistência no intervalo do espectáculo.
Porque este
espectáculo era gratuito e porque servia de divertimento, quer aos
miúdos – que o adoravam –, quer aos graúdos, o homem dos robertos tinha
de recorrer à generosidade dos assistentes, para ele, e a família,
irem vivendo.
E que
difícil vida eles viviam!
Já rapaz, eu
admirava a pachorra – e a paciência do gato que um desses homens trazia,
pois sendo o gato um animal muito arisco, conseguia, sem sair do seu
posto, assistir às cenas de pancadaria entre os robertos e, até algumas
vezes, ser envolvido na pantomina.
O homem dos
robertos tinha de ter, além da habilidade indispensável para manobrar os
seus fantoches, grande imaginação para inventar as pantominas que teria
de representar, e que eram várias. Havia personagens que entravam em
quase todas elas: o barbeiro, com a sua enorme navalha feita de madeira;
o diabo, que, depois de fazer várias travessuras, acabava por ser um
bombo de festa, apanhando bordoada de criar bicho; o juiz e o
polícia,
para imporem a sua autoridade, etc., etc..
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Agora... as
marionetes, com que querem substituir os robertos, são manejadas em
locais cobertos, por pessoas com ordenado certo e subsídios estatais, ao
passo que os familiares daqueles ambulantes passavam fome muitas vezes,
por não conseguirem recolher, nas suas colectas, o dinheiro suficiente
para comprarem o indispensável para se alimentarem.
Por Aveiro
apareciam os Circos ambulantes, que davam os seus espectáculos no
meio da rua, estendendo, para os seus componentes se exibirem, uma manta
daquelas feitas com farrapos.
Era uma
miséria pegada: um ou dois miúdos, filhos do casal proprietário do
circo, davam umas cabriolas, uns saltos mortais e faziam contorcionismo
– habilidades que aprenderam à força de os fazerem passar fome ou lhes
darem bastante tapona –, ao mesmo tempo que os pais tocavam,
normalmente, cornetim e tambor, para chamar a atenção do «respeitável
público» – na sua maneira de dizer – reclamando a excelência e as
dificuldades dos números do espectáculo.
Havia,
também, uns outros circos mais completos, com alguns aparelhos de
ginástica, nos quais se exibiam familiares dos seus proprietários que,
deles, se sabiam servir.
Era vulgar
aparecerem outros com ursos domesticados que, entre outras habilidades,
sabiam dançar, tocar pandeireta, sendo com esta, e apoiados nas patas
traseiras, que eles iam fazer o peditório pela assistência. Andavam
presos a fortes cadeados, mas, na sua maioria, eram mansos.
Podia estar
muita gente à volta das mantas onde estes artistas dos circos ambulantes
se exibiam; certo era, porém, que mesmo antes do espectáculo terminar e
começar o peditório, uma grande parte da assistência se punha a mexer
para não contribuir com a sua moeda.
Toda esta
gente vivia uma vida miserável e sujeita a ter de governar-se com o
pouco que apurava da generosidade de algumas pessoas que assistiam aos
seus espectáculos dados na via pública.
Desapareceram das ruas da nossa terra, há já muitíssimos anos, os homens
que as percorriam batendo numa peça de cobre, estragada, para chamar a
atenção do público, os quais faziam o seu negócio recebendo cobre e
outros metais (especialmente, chumbo) e dando em troca castanhas piladas
e figos passados (figos de ceira).
A garotada
tratava de procurar por todos os lados, e obter de qualquer maneira,
chumbo e pedaços de outros metais para os trocar pelas castanhas
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piladas (que hoje custam à volta de cem escudos o quilo, segundo eu vi
numa montra), e noutro tempo, além de se comerem cruas (eram rijas como
os cornos do diabo, segundo era uso dizer-se) nos eram dadas no caldo da
Quinta-Feira Santa, cozidas com feijão branco. Era uma sopa tradicional,
mas muito adocicada e com a qual a maioria da petizada pouco engraçava
mas que, naquele dia, era uso e costume servir-se na maioria das casas,
quer as dos ricos, quer as dos pobres, e havia que comê-la.
Dizia-se,
nesse tempo, que aqueles homens eram Zíngaros, descendentes dos naturais
da Hungria, que tinham vindo para Portugal a fim de montar a indústria
de caldeiraria, em que eram exímios.
Na nossa
zona, principalmente em Eixo, Costa do Valado e Fermentelos, tal
indústria é tradicional; nas duas últimas daquelas povoações mantém-se
altamente aperfeiçoada, e os seus produtos são reputados, em todo o
País, como dos mais perfeitos. Lembro-me dos alambiques, das máquinas de
sulfatar e das miniaturas de objectos caseiros (dos que se usavam
antigamente); estas são o encanto dos estrangeiros cultos que nos
visitam e uma das prendas que eles mais apreciam.
Já tive o
prazer de verificar a alegria e a satisfação de duas famílias francesas
das minhas relações a quem ofereci uma dessas miniaturas, famílias
das quais havia recebido umas prendas francesas.
Diziam-me
não saber como agradecer tão gentil oferta.
Que é feito
dos barquilheiros que, na tampa das suas caixas (que traziam às
costas), tinham uma roleta e que nos entregavam os barquilhos que
tínhamos tido a sorte (se eram muitos) ou a infelicidade (se eram
poucos) de nos saírem nas jogadas que fazíamos por cinco réis, dez réis
ou um vintém?
Onde
param os homens dos caramilos que, pelas ruas, apregoavam «Quer
chucha? Quer mama?»
Em vez dos
barquilheiros há os que vendem – e já são poucos – guardanapos ou
línguas de sogra; e, para substituir os caramilos, há, industrializados,
os chupa-chupa.
Como
as coisas mudaram e a vida de Aveiro foi alterada em tão pouco tempo!... |