Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Sociedade de Poupança

Há já muito, mesmo muito tempo, que não aparecem por Aveiro os homens que vendiam capachos feitos de palha braceja.

Quando eles apareciam era sinal de que o Inverno ia começar, pois, normalmente, o seu aparecimento dava-se pelas alturas do Natal.

Toda a população os considerava como anunciadores de chuva.

Era gente de Bezelga, concelho de Penedono, distrito de Viseu, que, no Verão, ia apanhar a palha à serra, e aos serões confeccionava os capachos. Havia-os rectangulares, para serem colocados às portas das casas; os redondos, que serviam de assento nas cadeiras e, no chão, junto destas, para repousar os pés; e, ainda, os enfia-pés, que se destinavam àquilo que o próprio nome indica. Estes, no Inverno, davam um jeitão às pessoas que tinham de estar um dia inteiro a trabalhar à secretária e, bem assim, às donas de casa que, nas suas horas de lazer, se entretinham com a costura e o «tricot», pois lhes conservavam os pés quentinhos.

É que nessa altura, não havia nem as escalfetas, nem os irradiadores, nem o ar condicionado, nem os outros sistemas de aquecimento de que hoje dispomos e se usam nos escritórios, nas oficinas e nas nossas casas.

É verdade que, em algumas, havia as braseiras, que eram alimentadas a pó de carvão vegetal, sobre o qual se colocavam as pratas que, durante o Verão, / 197 / se juntaram, quer as que envolviam os cigarros, quer as que serviam de invólucro aos chocolates que a miudagem – e os graúdos também – iam comendo, e que se guardavam para aquele efeito.

Quem, após o trabalho diário, tinha de ficar em casa, tirava a fatiota que usava durante o dia, vestia a roupa de trazer por casa, embrulhava-se numa manta, colocava os pés no capacho destinado a este fim, e dispunha-se a passar o serão, lendo, tricotando e conversando, pois que, então, não havia o rádio nem a televisão, que alteraram por completo a intimidade do viver das famílias.

Para se prestar atenção aos programas que aqueles aparelhos transmitem, não há oportunidade de se conversar a sério com os familiares.

Os capachos redondos – os de menor tamanho – tinham muita venda para as pessoas que frequentavam as igrejas, pois não tendo estas – como agora – os bancos, deles se serviam para se ajoelharem, visto serem de muito fácil transporte e de grande comodidade.

Na altura própria, os homens da Bezelga vinham por aí abaixo, da serra ao litoral, com os seus burros carregados de mercadoria, produto do seu trabalho, despachando, também, pelo caminho-de-ferro, para várias estações – Aveiro era uma delas – mais mercadoria para servir de reforço àquela que os burros haviam transportado.

Há quantos anos nós não ouvimos os capacheiros gritar: – Capachos! Compra capachos!...

Esta produção artesanal terá acabado?

E também deixaram de percorrer as nossa ruas os amoladores, com as suas rodas, que tanto serviam para transportar as suas oficinas ambulantes, como, ainda, para lhes fornecer a força motriz necessária a parte da sua ferramenta.

Afiavam-se tesouras, navalhas e facas de cozinha, pondo estes objectos a cortar uma folha de papel onde, ao freguês, os amoladores demonstravam a eficiência do seu trabalho; consertavam guarda-chuvas, quer a parte da ferragem (substituíam as varas partidas e as molas relaxadas, aplicavam emendas e ponteiras e punham arames novos para substituir aqueles que o tempo e a chuva enferrujaram e se quebraram), quer o pano (aplicando rodas no fecho que, as varas soltas haviam furado, e remendos nalguns buracos), enfim, entregavam ao freguês um objecto em condições de o defender da chuva e do sol e apto a enfrentar o vento. Consertavam louça partida, ou somente rachada (não apenas a de ornamentação como a de uso diário), pondo «gatos» e aplicando uma massa, de seu fabrico, que resistia à água.

Vivíamos, então, em sociedade de poupança e havia que economizar todos os tostões. Além disso, não existiam as bisnagas de cola-tudo, de que hoje podemos fazer uso. / 198 /

Os gatos eram umas pecinhas de ferro ou aço (uma espécie de agrafes) que os amoladores colocavam em cada um dos pedaços quebrados para os unir depois de furados com uma maquineta de concepção simples, que eles faziam girar por intermédio de um fio, que transformava o movimento vertical em movimento giratório e cuja velocidade eles regulavam conforme a qualidade do material em que o gato teria de ser aplicado.

Os amoladores eram, na sua maioria, naturais da Galiza e, normalmente, dotados de muita habilidade; com a sua oficina ambulante resolviam os problemas que lhes eram postos pelas donas de casa. Eram figuras tão típicas, em Aveiro, que mereceram ser focadas pelos autores de MÔLHO DE ESCABECHE, num quadro em que entram o amador de cacos, uma dama e o amolador. Tendo a dama deixado cair uma peça de louça que o amador de cacos reputava de muito valor – peça que havia descoberto em casa do antiquário aveirense Eduardo Sapateiro –, o amolador intervém cantando:

Por quem é

Não se aborreça

Com o banzé

Que acaba de causar...

Se quebrou

A linda peça

Eu posso-lha consertar...

 

Um pouquinho

De loção

E um ferrinho

Que o martelo vem bater,

Jamais o vaso se escacha,

Nem racha

Parece ter.

 E o coro acompanha:

Amola, amola, amola,

Enquanto a roda ligeira

Nunca pára de rodar

Amola, amola, amola,

Que esta vida passageira

Não se cansa de amolar.  / 199 /

O amolador volta a intervir:

Se calhar

Está precisado

De amolar

A tesoura que aí tem,

Mas se quer

Gume afiado

Ponho-a já a cortar bem.

 

Meia hora

E pouco mais,

A tesoura

Fica pronta a trabalhar...

Pode então com boa sorte

Dar corte

Em quem passar.

E o coro torna a responder:

Afia, afia, afia,

Que este ofício quer também

Singular agilidade.

Afia, afia, afia,

p'rá tesoura cortar bem

Nas casacas da cidade.

Volta o amolador:

Por favor

Tenha cautela

Que o calor

Também pode constipar...

Se estragou a sua umbela

Dê-ma já para arranjar.

 

Não é pêta,

Pode crer.

Se a varêta

Se entortou, com qualquer jeito

Compre a mim nova remessa,

Porque essa

Não tem proveito.  / 200 /

Na ACHEGA 87, publicada no n.º 1351, de 17 de Julho, dizia eu que deixaram de percorrer as nossa ruas os amoladores.

O certo é, porém, que, nessa semana, vários amigos chamaram a minha atenção para o facto de um desses «industriais» ter aparecido em várias ruas; e, até eu ouvi, em minha casa, o som da flauta (devo chamar-lhe flauta ou gaita?) com o toque característico com o qual os amoladores se fazem anunciar. Como o não vi, não me foi possível verificar se seria o Ramiro, aquele que se especializou não só no arranjo das ferramentas caseiras, como, também, na preparação das de mais fino corte, como navalhas de barba e outras. Se não me engano, era ele quem preparava as ferramentas de corte da Casa de Saúde da Vera-Cruz e, durante muito tempo, as do Hospital.

O Ramiro está, com a sua oficina, pelo menos uma vez por semana, à porta do Mercado Municipal (que, também, já se chamou de Manuel Firmino); e porque sei disto, não tive dúvida em dizer que já não se via percorrer as ruas da cidade os amoladores, pois sabia que o Ramiro não tinha ruas citadinas: a clientela procurava-o no local onde ele estaciona a sua oficina.

O que apareceu nessa semana seria outro que, por cá, arrolou?

Outros dos profissionais que desapareceram das ruas, foram os funileiros ou latoeiros, à porta.

Antigamente os industriais desta especialidade tinham muito que fazer, visto que os apetrechos de cozinha, ou eram de lata (folha-de-flandres) ou de barro vermelho (vidrado) ou preto. Só mais tarde apareceram os de ferro fundido, os de ferro esmaltado, os de alumínio repuxado e os de alumínio fundido, sendo estes concebidos, especialmente, para cozinhar sobre os discos dos fogões eléctricos.

Também de lata, e de chapa zincada, eram as bacias, mesmo aquelas que se destinavam a tomar banho, os baldes, os regadores, etc., etc., que se iam rompendo com o uso; e, porque estávamos em sociedade de poupança, havia que os consertar, pondo-lhes pingos, cravos, fundos, etc., para que esses apetrechos continuassem a servir por mais algum tempo e não fossem atirados ao lixo, ao contrário do que hoje aconselham os que se proclamam partidários da sociedade de consumo.

E tais serviços eram feitos por esses funileiros que, pelas ruas, à porta do freguês que deles necessitava, se deslocavam com as suas oficinas ambulantes, fazendo-se anunciar berrando por uma espécie de funil (possivelmente o inspirador dos actuais megafones). E tinham muito que fazer. / 201 /

Havia – dizem-me – uma dona de casa, na Beira-Mar, que todas as semanas tinha serviço para o funileiro à porta.

As oficinas de latoeiro que, em Aveiro, faziam obra nova – afamada pela sua perfeição – foram desaparecendo. Suponho que só existe a que pertenceu a Dionísio Coelho da Silva, na Rua dos Combatentes da Grande Guerra, o qual, nas feiras onde ia vender os seus artigos, um dia mandou distribuir uns panfletos com o seguinte reclame: «lá disse, digo e repito – quem dá cartas é o Rei Maldito!» (nome pelo qual ele, e os seus dois irmãos, estes chapeleiros, eram conhecidos.

Até pouco tempo antes de morrer, o Necas, na sua oficina de latoeiro junto da Sociedade Recreio Artístico, no local onde, hoje, está «O Serão» (estabelecimento de lãs e confecções para criança), substituiu os funileiros à porta, resolvendo os problemas que apareciam às donas de casa.

Voltando atrás, quero dizer que as banheiras que nesse tempo existiam e só as havia em casas ricas – eram de zinco e, para nelas se tomar banho, tinham que enchê-las e vazá-las com baldes, pois não havia, nem canalizações de água, nem esgotos a que elas estivessem ligadas. De zinco eram, também, os objectos destinados a tomar semicúpios, que eram muito aconselhados pelos médicos para determinados tratamentos.

Às panelas e aos tachos de esmalte, quando se rompiam, eram aplicados fundos de lata, para continuarem em uso, e as asas, quando se soltavam, eram cravadas com rebites de cobre.

E tudo isto era serviço que os funileiros faziam.

Outros profissionais que iam trabalhar, a dias, para casa dos fregueses, eram as costureiras (e, até, alfaiates).

Além das que viviam em Aveiro, vinham, de Ílhavo, a pé, grupos de raparigas e mulheres feitas, para este efeito; estas últimas eram as mestras, que já tinham a sua clientela e se faziam acompanhar das aprendizas de que necessitavam para o seu trabalho: obra nova, arranjo de vestidos e de calças, adaptação das roupas dos filhos mais velhos para os mais novos, remendar roupas interiores e as de uso doméstico.

E, ao sábado, lá voltava aquele bando de cachopas para Ílhavo, sendo acompanhadas, até ao Eucalipto (lugar onde, hoje, se cruza a Rua do Dr. Mário sacramento com as estradas da Variante, a de Aradas e a de Ílhavo) por rapaziada de Aveiro, com o que os seus patrícios davam «muita sorte», chegando a haver brigas, quando os ilhavenses vinham esperá-las.

Se, porventura, entre uma ilhavense e um aveirense já havia «derriço», este não avançava para além de Verdemilho– e já era atrevimento –, pois teria de enfrentar os de Ílhavo, já que se julgavam dentro dos limites do seu território, e, então, eram provocadores e atrevidos.

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196-201