Há já muito,
mesmo muito tempo, que não aparecem por Aveiro os homens que vendiam
capachos feitos de palha braceja.
Quando eles
apareciam era sinal de que o Inverno ia começar, pois, normalmente, o
seu aparecimento dava-se pelas alturas do Natal.
Toda a
população os considerava como anunciadores de chuva.
Era gente de
Bezelga, concelho de Penedono, distrito de Viseu, que,
no Verão, ia apanhar a palha à serra, e aos serões confeccionava os
capachos. Havia-os rectangulares, para serem colocados às portas das
casas; os redondos, que serviam de assento nas cadeiras e, no chão,
junto destas, para repousar os pés; e, ainda, os enfia-pés, que
se destinavam àquilo que o próprio nome indica. Estes, no Inverno, davam
um jeitão às pessoas que tinham de estar um dia inteiro a trabalhar à
secretária e, bem assim, às donas de casa que, nas suas horas de lazer,
se entretinham com a costura e o «tricot», pois lhes conservavam os pés
quentinhos.
É que nessa
altura, não havia nem as escalfetas, nem os irradiadores, nem o ar
condicionado, nem os outros sistemas de aquecimento de que hoje dispomos
e se usam nos escritórios, nas oficinas e nas nossas casas.
É verdade
que, em algumas, havia as braseiras, que eram alimentadas a pó de carvão
vegetal, sobre o qual se colocavam as pratas que, durante o Verão,
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/ se juntaram, quer as que envolviam os cigarros, quer as que serviam de
invólucro aos chocolates que a miudagem – e os graúdos também – iam
comendo, e que se guardavam para aquele efeito.
Quem, após o
trabalho diário, tinha de ficar em casa, tirava a fatiota que usava
durante o dia, vestia a roupa de trazer por casa, embrulhava-se numa
manta, colocava os pés no capacho destinado a este fim, e dispunha-se a
passar o serão, lendo, tricotando e conversando, pois que, então, não
havia o rádio nem a televisão, que alteraram por completo a intimidade
do viver das famílias.
Para se
prestar atenção aos programas que aqueles aparelhos transmitem, não há
oportunidade de se conversar a sério com os familiares.
Os capachos
redondos – os de menor tamanho – tinham muita venda para as pessoas que
frequentavam as igrejas, pois não tendo estas – como agora – os bancos,
deles se serviam para se ajoelharem, visto serem de muito fácil
transporte e de grande comodidade.
Na altura
própria, os homens da Bezelga vinham por aí abaixo, da serra ao litoral,
com os seus burros carregados de mercadoria, produto do seu trabalho,
despachando, também, pelo caminho-de-ferro, para várias estações –
Aveiro era uma delas – mais mercadoria para servir de reforço àquela que
os burros haviam transportado.
Há quantos
anos nós não ouvimos os capacheiros gritar: – Capachos! Compra
capachos!...
Esta
produção artesanal terá acabado?
E também
deixaram de percorrer as nossa ruas os amoladores, com as suas rodas, que
tanto serviam para transportar as suas oficinas ambulantes, como, ainda,
para lhes fornecer a força motriz necessária a parte da sua ferramenta.
Afiavam-se
tesouras, navalhas e facas de cozinha, pondo estes objectos a cortar uma
folha de papel onde, ao freguês, os amoladores demonstravam a eficiência
do seu trabalho; consertavam guarda-chuvas, quer a parte da ferragem (substituíam
as varas partidas e as molas relaxadas, aplicavam emendas e ponteiras e
punham arames novos para substituir aqueles que o tempo e a chuva
enferrujaram e se quebraram), quer o pano (aplicando rodas no fecho que,
as varas soltas haviam furado, e remendos nalguns buracos), enfim,
entregavam ao freguês um objecto em condições de o defender da chuva e
do sol e apto a enfrentar o vento. Consertavam louça partida, ou somente
rachada (não apenas a de ornamentação como a de uso diário), pondo «gatos»
e aplicando uma massa, de seu fabrico, que resistia à água.
Vivíamos,
então, em sociedade de poupança e havia que economizar todos os tostões.
Além disso, não existiam as bisnagas de cola-tudo, de que hoje podemos
fazer uso.
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Os
gatos eram umas pecinhas de ferro ou aço (uma espécie de
agrafes) que os amoladores colocavam em cada um dos pedaços quebrados
para os unir depois de furados com uma maquineta de concepção simples,
que eles faziam girar por intermédio de um fio, que transformava o
movimento vertical em movimento giratório e cuja velocidade eles
regulavam conforme a qualidade do material em que o gato teria de ser
aplicado.
Os
amoladores eram, na sua maioria, naturais da Galiza e, normalmente,
dotados de muita habilidade; com a sua oficina ambulante resolviam os
problemas que lhes eram postos pelas donas de casa. Eram figuras tão
típicas, em Aveiro, que mereceram ser focadas pelos autores de MÔLHO DE
ESCABECHE, num quadro em que entram o amador de cacos, uma dama e o
amolador. Tendo a dama deixado cair uma peça de louça que o amador de
cacos reputava de muito valor – peça que havia descoberto em casa do
antiquário aveirense Eduardo Sapateiro –, o amolador intervém cantando:
Por quem é
Não se
aborreça
Com o banzé
Que acaba de
causar...
Se quebrou
A linda peça
Eu posso-lha
consertar...
Um pouquinho
De loção
E um
ferrinho
Que o
martelo vem bater,
Jamais o
vaso se escacha,
Nem racha
Parece ter.
E o coro
acompanha:
Amola,
amola, amola,
Enquanto a
roda ligeira
Nunca pára
de rodar
Amola,
amola, amola,
Que esta
vida passageira
Não se cansa
de amolar. / 199 /
O amolador
volta a intervir:
Se calhar
Está
precisado
De amolar
A tesoura
que aí tem,
Mas se quer
Gume afiado
Ponho-a já a
cortar bem.
Meia hora
E pouco
mais,
A tesoura
Fica pronta
a trabalhar...
Pode então
com boa sorte
Dar corte
Em quem
passar.
E o coro
torna a responder:
Afia, afia,
afia,
Que este
ofício quer também
Singular
agilidade.
Afia, afia,
afia,
p'rá tesoura
cortar bem
Nas casacas
da cidade.
Volta o
amolador:
Por favor
Tenha
cautela
Que o calor
Também pode
constipar...
Se estragou
a sua umbela
Dê-ma já
para arranjar.
Não é pêta,
Pode crer.
Se a varêta
Se entortou,
com qualquer jeito
Compre a mim
nova remessa,
Porque essa
Não tem
proveito.
/ 200 /
Na ACHEGA
87, publicada no n.º 1351, de 17 de Julho, dizia eu que deixaram de
percorrer as nossa ruas os amoladores.
O certo é,
porém, que, nessa semana, vários amigos chamaram a minha atenção para o
facto de um desses «industriais» ter aparecido em várias ruas; e, até eu
ouvi, em minha casa, o som da flauta (devo chamar-lhe flauta ou
gaita?) com o toque característico com o qual os amoladores se
fazem anunciar. Como o não vi, não me foi possível verificar se seria o
Ramiro, aquele que se especializou não só no arranjo das ferramentas
caseiras, como, também, na preparação das de mais fino corte, como
navalhas de barba e outras. Se não me engano, era ele quem preparava as
ferramentas de corte da Casa de Saúde da Vera-Cruz e, durante muito
tempo, as do Hospital.
O Ramiro
está, com a sua oficina, pelo menos uma vez por semana, à porta do
Mercado Municipal (que, também, já se chamou de Manuel Firmino); e
porque sei disto, não tive dúvida em dizer que já não se via percorrer
as ruas da cidade os amoladores, pois sabia que o Ramiro não tinha ruas
citadinas: a clientela procurava-o no local onde ele estaciona a sua
oficina.
O que
apareceu nessa semana seria outro que, por cá, arrolou?
Outros dos
profissionais que desapareceram das ruas, foram os funileiros
ou latoeiros, à porta.
Antigamente
os industriais desta especialidade tinham muito que fazer, visto que os
apetrechos de cozinha, ou eram de lata (folha-de-flandres) ou de barro
vermelho (vidrado) ou preto. Só mais tarde apareceram os de ferro
fundido, os de ferro esmaltado, os de alumínio repuxado e os de alumínio
fundido, sendo estes concebidos, especialmente, para cozinhar sobre os
discos dos fogões eléctricos.
Também de
lata, e de chapa zincada, eram as bacias, mesmo aquelas que se destinavam
a tomar banho, os baldes, os regadores, etc., etc., que se iam rompendo
com o uso; e, porque estávamos em sociedade de poupança, havia que os
consertar, pondo-lhes pingos, cravos, fundos, etc., para que esses
apetrechos continuassem a servir por mais algum tempo e não fossem
atirados ao lixo, ao contrário do que hoje aconselham os que se
proclamam partidários da sociedade de consumo.
E tais serviços eram feitos por esses
funileiros que, pelas ruas, à porta do freguês que deles necessitava, se
deslocavam com as suas oficinas ambulantes, fazendo-se anunciar berrando
por uma espécie de funil (possivelmente o inspirador dos actuais
megafones). E tinham muito que fazer.
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Havia –
dizem-me – uma dona de casa, na Beira-Mar, que todas as semanas tinha
serviço para o funileiro à porta.
As oficinas
de latoeiro que, em Aveiro, faziam obra nova – afamada pela sua
perfeição – foram desaparecendo. Suponho que só existe a que pertenceu a
Dionísio Coelho da Silva, na Rua dos Combatentes da Grande
Guerra, o qual, nas feiras onde ia vender os seus artigos, um dia mandou
distribuir uns panfletos com o seguinte reclame: «lá disse, digo e
repito – quem dá cartas é o Rei Maldito!» (nome pelo qual ele, e
os seus dois irmãos, estes chapeleiros, eram conhecidos.
Até pouco
tempo antes de morrer, o Necas, na sua oficina de latoeiro junto da
Sociedade Recreio Artístico, no local onde, hoje, está «O Serão»
(estabelecimento de lãs e confecções para criança), substituiu os
funileiros à porta, resolvendo os problemas que apareciam às donas de
casa.
Voltando
atrás, quero dizer que as banheiras que nesse tempo existiam e só as
havia em casas ricas – eram de zinco e, para nelas se tomar banho,
tinham que enchê-las e vazá-las com baldes, pois não havia, nem
canalizações de água, nem esgotos a que elas estivessem ligadas. De zinco
eram, também, os objectos destinados a tomar semicúpios, que eram
muito aconselhados pelos médicos para determinados tratamentos.
Às panelas e
aos tachos de esmalte, quando se rompiam, eram aplicados fundos de lata,
para continuarem em uso, e as asas, quando se soltavam, eram cravadas
com rebites de cobre.
E tudo isto
era serviço que os funileiros faziam.
Outros
profissionais que iam trabalhar, a dias, para casa dos fregueses, eram as
costureiras (e, até, alfaiates).
Além das que
viviam em Aveiro, vinham, de Ílhavo, a pé, grupos de raparigas e
mulheres feitas, para este efeito; estas últimas eram as mestras, que
já tinham a sua clientela e se faziam acompanhar das aprendizas de que
necessitavam para o seu trabalho: obra nova, arranjo de vestidos e de
calças, adaptação das roupas dos filhos mais velhos para os mais novos,
remendar roupas interiores e as de uso doméstico.
E, ao
sábado, lá voltava aquele bando de cachopas para Ílhavo, sendo
acompanhadas, até ao Eucalipto (lugar onde, hoje, se cruza a Rua do
Dr. Mário sacramento com as estradas da Variante, a de Aradas e a de
Ílhavo) por rapaziada de Aveiro, com o que os seus patrícios davam
«muita sorte», chegando a haver brigas, quando os ilhavenses vinham
esperá-las.
Se,
porventura, entre uma ilhavense e um aveirense já havia «derriço»,
este não avançava para além de Verdemilho– e já era atrevimento –, pois
teria de enfrentar os de Ílhavo, já que se julgavam dentro dos limites
do seu território, e, então, eram provocadores e atrevidos.
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