Achegas para a Historiografia Aveirense - 1988

Antigos usos e costumes da beira-mar

Todo ou quase todo o pessoal da Beira-Mar dedicava a sua actividade à Ria, e, isso, ocasionava a existência de muitas e diversas profissões, algumas das quais já hoje não existem, ou não são praticadas pelos seus moradores. / 179 /

O marnoto, de quem toda a gente conhece a profissão, explorava, a meias, com o proprietário, a marinha, tomando-a como coisa sua, e dispensando-lhe toda a assistência, mesmo de Inverno, visitando-a com toda a regularidade, a fim de evitar que o mau tempo ou as correntes mais fortes danificassem a propriedade.

Mas... dizer que a exploração era feita a meias, não corresponde à realidade dos factos, pois aos marnotos competia o pagamento de todas as despesas da exploração, como os ordenados aos moços, etc., ao passo que o proprietário da marinha – a quem eles chamavam patrão – recebia metade do produto da venda do sal, sem descontarem quaisquer despesas, pois, até da venda, os marnotos tinham de tratar e tomar para si a responsabilidade do pagamento, isto é, se o comprador não efectuasse a liquidação, teria o marnoto de liquidar, ao patrão, a parte que a este competia receber.

Quando a safra era fraca – e isso acontecia algumas vezes – o dinheiro recebido pelo marnoto não chegava para pagar as despesas feitas – ou pouco lhe sobrava – este tinha que empenhar-se para satisfazer os compromissos tomados e sustentar a família; no entanto, o patrão recebia, limpinha, a sua quota-parte, isto é, metade do produto da venda do sal sem se importar da situação em que ficava o seu marnoto. Era, assim, o contrato existente na exploração das marinhas.

É verdade que havia patrões – poucos – que acertavam com os marnotos à maneira destes não terem de tirar de casa os seus bens para obterem os empréstimos necessários, ou hipotecarem a sua casita, como aconteceu a alguns, que acabaram por ficar sem ela.

Patrões havia que se recusavam a fazer as obras indispensáveis à conservação da sua propriedade, tendo o marnoto de as fazer à sua custa, se é que queria trabalhar com algum proveito.

É que, então, acontecia haver marnotos que ficavam sem marinhas, por estas não chegarem para todos...

Agora, as coisas passam-se de maneira diferente, como todos sabem: virou-se o bico ao prego. Há quem faça a exploração a meias, cabendo a cada uma das partes metade do produto líquido apurado. Outros são contratados como encarregados, mediante uma quantia fixa pela safra (quer o patrão ganhe ou perca dinheiro), acontecendo que há deles que não tomam a sério a missão que se obrigaram a desempenhar, abandonando a marinha a horas a que a sua presença ainda era de utilidade para obter um melhor rendimento.

Para obviar a este inconveniente, há patrões que contratam dar uma percentagem por cada vagão que a marinha produzir, além do rendimento normal (quantidade esta estabelecida, previamente, entre ambas as partes). / 180 /

Ligados à faina das marinhas temos os barqueiros que, nelas, carregam os barcos à e à padiola e transportam o sal para os locais da descarga: armazéns, vagões, camionetas, etc., competindo-lhes, também, carregarem, dentro do barco, as canastras das salineiras ou as padiolas dos homens que depositam o sal nos locais que lhes são indicados pelos negociantes que o compraram nas marinhas.

A descarga do barco tinha preço estabelecido; e o armazenista pagava, no fim da semana, o valor do número de barcos que para ele foram descarregados, competindo a uma das salineiras distribuir a importância recebida pelas colegas que, do seu grupo, intervieram nas várias descargas; e, apesar de não serem sempre as mesmas, nem mesmo o número delas a trabalhar em cada descarga, raro era que as contas não batessem certo logo na altura do pagamento, acabando, sempre, por acertá-las, sem que, para tal, houvesse necessidade de usar papel e lápis.

Este trabalho também está um pouco facilitado, pois há marinhas em que a carga do sal avulso é feita por telas transportadoras, o mesmo acontecendo com a descarga no Cais de S. Roque.

Como já disse numa outra ACHEGA, antes da C.P. ter montado o Ramal do Cais de S. Roque, o grande movimento do sal processava-se no Cojo, junto à Ponte-de-Pau que, por estar em muito mau estado, foi substituída por uma outra, a qual, por sua vez, deu lugar à que hoje veio facilitar a ligação das duas freguesias da cidade, principalmente depois que o trânsito dos veículos que vêm do Sul se começou a fazer pelo Bairro do Dr. Álvaro Sampaio, pelas novas ruas que nele se abriram.

Os carros de bois, para onde era baldeado o sal vindo nos barcos, dirigiam-se para a Estação da C.P. pela Rua do Americano, muito esburacada (actualmente, Rua do Comandante Rocha e Cunha, mas com outro perfil) e carregado para os vagões que o levavam para os centros de consumo.

O mercado do Porto era o principal cliente do sal de Aveiro, não só porque servia uma grande área como, também, porque pelo porto do Douro se faziam as exportações para Espanha.

A montagem do Vale do Vouga veio facilitar o abastecimento das zonas interiores, pois que, até então, os moradores dessas zonas até Viseu, tinham de recorrer às localidades com estações da C.P. e tinham que o fazer com os carros de bois, ou carroças de mulas, que outros meios de transporte não existiam. / 181 /

Pela Ria eram abastecidos os mercados ribeirinhos, quer os do Sul (até Mira), quer os do Norte (até Ovar).

Por barco, e para estes mercados, iam de Aveiro outras mercadorias, como materiais de construção, objectos de cerâmica de barro branco e outros artigos que por lá não havia.

Aos domingos, o pessoal das Gafanhas trazia de barco os seus produtos agrícolas para vender no mercado – batata, feijão, etc. –, levando em troca mercearias, fazendas e outros artigos, que adquiriam nos estabelecimentos da cidade.

Para facilitar o transporte do sal para a Estação do Vale do Vouga foi construída a Estrada Nova do Canal, na qual só muito mais tarde se começaram a fazer construções.

Aí por 1914 ou 1915, houve uma grande crise no salgado aveirense. Os comerciantes não só pagavam o sal por muito baixo preço, como se faziam com os barqueiros que, em vez das 10 toneladas que lhes competia trazer das marinhas, transportavam 12, 13 e até mais toneladas em cada barco; no entanto, para efeitos de liquidação, cada barco era considerado como trazendo as 10 T.

Foi então que um grupo de armazenistas do Porto e Matosinhos se lembrou de organizar a Empresa do Sal da Ria de Aveiro, comprometendo-se a comprar todo o sal dos produtores que, com a dita Empresa fizessem contrato a preço certo, (25$00 por vagão de 10 T.), que era muito melhor do que a média do que então corria.

Só depois de obterem o compromisso da grande maioria dos produtores – poucos foram os que ficaram de fora – é que os organizadores da Empresa a puseram a funcionar.

Senhores da produção, e com capital suficiente para pagarem o sal que lhes era entregue, puderam os gerentes da Empresa do Sal estabelecer preços compensadores, que deram bastantes lucros aos seus accionistas e algum sossego aos produtores que, a manter-se o mesmo estado de coisas, iriam acabar na miséria e ter de abandonar as marinhas.

É certo que aqueles que se não comprometeram com a Empresa do Sal ganhavam mais dinheiro, pois que, tendo liberdade de vender o de sua produção a quem quisessem, faziam-no, normalmente, um pouco mais barato do que a tabela da Empresa, mas mais caro do que aquele pelo qual os seus colegas o vendiam à referida Empresa.

Terminou a Empresa do Sal e as marinhas já estavam a dar bom rendimento, tanto assim que a propriedade se valorizou, sendo certo que se ofereciam quantias muito altas por aquelas que apareciam para vender, havendo grande afluência de compradores, que nelas, queriam aplicar os seus capitais.

Passados anos, houve nova crise, que se pensou resolver organizando uma cooperativa em que entrassem os marnotos e os proprietários. / 182 /

Esta iniciativa, porém, gorou-se, apesar das muitas reuniões efectuadas para o efeito, porque apareciam sempre uns «espertos» que, lembrando-se talvez do que tinha acontecido com a Empresa do Sal, não aceitavam dela fazer parte, para tirarem vantagens do sacrifício dos restantes. E o resultado viu-se: uma quantidade de marinhas abandonadas, isto é, sem serem exploradas, porque não compensava o custo da exploração.

Como os produtores do sal não quiseram entender-se, foram obrigados, para de algum modo moralizar o seu comércio, a entrar, por força legal, para o Grémio do Comércio de Aveiro.

Voltemos a falar das profissões: havia os ilheiros que, para evitar que o sol mirrasse o junco, iam para o trabalho de madrugada, sendo certo que, no Verão, à hora em que o pessoal das marinhas ia para a faina, já eles tinham apanhado a maré de junco (um barco) que, à tardinha, ao regressar da marinha (onde também tinham trabalhado) transportavam para o Cais do Alboi, ou para o Cais dos Santos Mártires.

Os chincheiros tinham uma vida penosa, pelo que poucos homens a desejavam, visto que, muitas vezes, estando a descansar nas suas camas, ao chamamento do arrais tinham de se levantar e, de gabão amarrado com uma corda, ir para a água, acontecendo muitas vezes terem de por lá ficara noite toda.

É verdade que, depois da praça feita, isto é, depois que no mercado era vendido o produto do seu trabalho nocturno, voltavam na bateira para a Ria e, numa mota ou no muro de uma marinha, cozinhavam a caldeirada, fazendo, no caldo, migas de broa. Depois de comerem, colocavam o toldo na bateira e «batiam» uma soneca até que chegasse a hora da outra maré, o que os refazia dos trabalhos passados na noite anterior e os preparava para nova faina.

Já os botiroeiros tinham uma vida mais sossegada visto que, depois de armarem as redes, dormiam, descansados, nas suas camas, pois o peixe encarregava-se / 183 / de correr para os botirões. De manhã, só havia que recolher os aparelhos e retirar o peixe que neles tinha caído.

Contra si, tinham, porém, o facto de estarem sempre com «o credo na boca», pois que, tratando-se de uma arte ilegal, estavam sujeitos a serem apanhados pela fiscalização dos marinheiros, que não só lhes apreendiam e queimavam os aparelhos, como os julgavam no Tribunal da Capitania e os condenavam, mandando-os uns dias para a cadeia. Aqui, o carcereiro dava-lhes tratamento especial, mantendo-os na sala livre e não pregando com eles nas enxovias que ficavam nos baixos da Câmara Municipal, onde hoje estão instaladas a Delegação de Saúde, a Tesouraria, a Repartição de Obras, etc.

Os serteleiros pescavam as enguias à noite, tendo por isco as minhocas que apanhavam nas valetas das ruas e, também, nas lamas da borda da Ria. A sertela é o aparelho mais simples e mais barato dos pescadores, pois limita-se a uma cana onde se atam as minhocas.

Os unhantes (aqueles que apanhavam as enguias à mão, servindo-se das unhas) conseguiam um maior rendimento do seu trabalho, sobretudo quando nas praias havia quantidade delas. Era uma profissão especializada, visto que os unhantes tinham que ir procurar as enguias nos seus esconderijos.

Ainda conheci, com esta profissão, os Pardais e os Calistos, que vendiam em suas casas o produto do seu trabalho, quer às mulheres da praça, quer a particulares que lhes encomendavam enguias para assar, para fritar, ou para a caldeirada. É que, para cada um destes pitéus, era escolhida a sua qualidade e tamanho, e tinham preços diferentes, nada parecidos, é verdade, com aqueles por que, actualmente, é vendida, mesmo sem escolha, no nosso mercado, esta mercadoria.

Os bolseiros, os mexilhoeiros e os berbigoeiros, na época própria, iam apanhar, respectivamente, caranguejos, mexilhões e berbigões, que noutros tempos só se comiam nos meses que têm R, sendo certo que, a partir de certa altura, se deixou de respeitar esta praxe e começaram a comê-los todo o ano.

Isto motivou o quase desaparecimento dos bancos de berbigão em que a nossa Ria era fértil; quer junto da Barra, quer junto da Costa Nova, pois, porque a venda deste marisco passou a dar bom dinheiro, abusou-se da sua apanha, principalmente para o exportar para o Porto e outras terras, onde era baptizado com o nome de «amêijoas».

Seria só este abuso a causa do desaparecimento do berbigão, ou o facto de haver correntes mais fortes dentro da Ria também nisso teria influência?

Se foi só devido ao abuso, então aconteceu como à galinha dos ovos de oiro...

Dizem-me que lá para o Rio Velho há criação de berbigão, mas que, logo que dão com ele, o apanham, mesmo muito pequeno, sem o deixar crescer, para o venderem nas feiras.

Bolseiros eram o «ti» Mateus, os seus filhos, e o António Gamelas (mais conhecido por António Machula) e é-o, ainda, o Luís Vinagre, mais conhecido por Luís Têso, que faz exportação de caranguejos – machos e fêmeas, não importa – para diversas terras a fim de servirem de aperitivo à cerveja; é como um substituto da lagosta, do camarão e de outros mariscos de gosto requintado – que custam muito caro.

O Luís Têso – o «rei do caranguejo», como ele, a si próprio, se cognomina – é dos poucos que ainda vai apanhar o mexilhão que, noutro tempo, tanta fama tinha, e era vendido em espetadas feitas e conservadas em molho de escabeche.

Da revista teatral, com este nome, transcrevo a seguinte explicação, dada pelo personagem que fazia o papel:

Sou Môlho de Escabeche

Natural da beira-ria!

Dou bom gosto a qualquer peixe

E sobretudo à enguia.

 

Mas se dou bom paladar

Aos acepipes de Aveiro

Deixo o estômago a miar

E a barriga num braseiro.

 

Môlho de Escabeche

Bem feito e bem posto

Ninguém há que deixe

De provar teu gosto.

 

Môlho de Escabeche

Que belo pitéu!

Quem rio molho mexe

Sobe logo ao céu.   / 185 /

E havia, outrossim, as peixeiras e as empilhadeiras; aquelas vendiam o peixe na praça, ou, de canastra à cabeça, pelas portas das casas; e as segundas empilhavam, em caixas, em canastras ou em cabazes, o peixe pescado pelas artes da xávega das nossas costas (S. Jacinto e Costa Nova), transportado para o nosso mercado, nas bateiras dos mercantéis. Depois de empilhado e devidamente salgado, este peixe destinava-se, não só ao consumo local, como, também, à exportação, quer pelo caminho de ferro, quer pelos mais variados transportes terrestres, como carros, carroças, burros, e, até, à cabeça das mulheres que o iam vender pelos arredores; e, ainda, por homens que, com duas canastras suspensas numa vara, atravessada em cima de um dos ombros, o levavam para muito longe.

E, ao falar das empilhadeiras, parece-me ser oportuno recordar o quadro da revista «Môlho de Escabeche» (quadro que era lindíssimo), representando a Ponte de S. João e tendo como fundo as marinhas.

Os solistas cantavam:

Empilhadeiras!

Vamos lá, haja alegria,

Cachopas da Beira-mar...

Em bateiras pela Ria,

Ao sabor da maresia,

Vem sardinha pr'a empilhar.

E os do coro:

Rica filha,

Empilha, empilha...

Empilha bem...

Linda arte

De empilhar

A arte que a gente tem.

Rica filha,

Empilha sempre

Sem parar

Que é destreza

E maravilha

Esta arte de empilhar.

Então, o peixe não se conservava com gelo, como hoje, mas sim com sal, e durava muito tempo, sem se estragar. Quem das pessoas com mais de 50 anos se não lembra de ter comido umas sardinhas amarelas, com batatas e nabos e de se regalar com uma bôla com sardinhas destas? / 186 /

Agora, não só não as há, mas, mesmo que as houvesse, não nos poderíamos consolar com tal petisco, porque os fígados da geração actual o não permitem.

Quantas vezes, às 3 e 4 horas da manhã, em dias de baile ou de festa, a rapaziada ia à padaria do Macedo buscar o pão, com as sardinhas que havia encomendado, aguardando a sua saída do forno; e é certo que o fígado não reagia mal a tal petisqueira...

No princípio da Primavera, apanhavam-se cabras (uma espécie de camarão pequeno), que mulheres da Beira-mar – Luz Copileques, Rosa Ataqueira, Prazeres Forneira e outras – coziam e iam vender à tarde pelas ruas, para servirem de merenda. Mais tarde, foi o Abraão que se encarregou deste negócio e, também, do de caranguejos – só fêmeas, porque os machos não têm nada que comer.

O pregão usado para esta venda era: «Cabras quentes!»

Também, em algumas marés, apanhavam-se moiros (que são uma espécie de cabras, mas mais escuras). Desta qualidade, eram principais clientes (se não únicas) as miroas de Marvão e Montoiro, que, muitas vezes, por demora na chegada das bateiras, dormiam em casa das suas fornecedoras: Josefa Moreira, Júlia Passarinha, etc.

Os mirões e as miroas era com as gentes de Aveiro que faziam os seus negócios, percorrendo a pé, ou de burro (pela estrada), ou de bateira (pela Ria) a distância que os separa da nossa terra.

Em Aveiro tinham as suas relações comerciais e pessoais; e era aqui que vinham vender os pães de breu, o carvão vegetal, etc. e abastecer-se do que necessitavam. Até havia casas comerciais com argolas chumbadas na parede, destinadas a prender os burros em que os mirões transportavam as suas mercadorias.

Era em Aveiro que as miroas de faixa vermelha à roda da cintura, a segurar-lhes as saias muito curtas (para a época) a fim de as deixar caminhar à vontade, e descalças, vinham vender as camarinhas, servindo de medida as malgas ou os punhados.

Da revista «AO CANTAR DO GALO» recordo os versos do falecido Zé de Fluza (pseudónimo de José Meireles), no quadro denominado «Mulheres das Camarinhas»: / 187 /

São contas polidas

brancas e rosadas

muito bem medidas

por malgas vidradas.

 

Pérolas brilhantes

dos matos em flor

vimos refrescantes

matar o calor.

 

Malgas às duas

Duas ou três

Sem falcatruas

E de uma só vez.

E as mulheres das camarinhas percorriam as ruas da cidade a apregoar:

Querem comprar camarinhas?

E a garotada respondia:

Quantas dá por um vintém? Ou, então – o que as arreliava muito: – Quantas dá no vintém?

As casas da Rua do Norte (hoje, de Manuel Luís Nogueira) e as da Rua do Vento (hoje, do Dr. António Christo) foram construídas em terrenos pertencentes à família Sacchetti, e a ela pagavam foro que, logo que a Lei o permitiu, os donos dessas casas remiram, ficando, portanto, livres e alodiais.

As da Rua da Apresentação (hoje Dom Jorge de Lencastre) e as das que lhe são adjacentes, foram construídas na Quinta do Piloto-Mor (ainda hoje essa zona é conhecida pela Quinta), que eu não sei se teria pertencido, ou não, à família Sacchetti, a qual, além das propriedades acima referidas, era senhora e dona de uma grande quinta na Granja da Oliveirinha.

Durante o tempo em que a referida família não residiu em Aveiro – e foram muitos anos –, era seu procurador o Joaquim Ferreira (que tinha por alcunha o Joaquim «Pau Preto»), cobrador do Banco de Portugal.

As divisões das casas acima referidas eram: uma sala grande (à frente) com dois quartos pequenos (aos lados) com portas para a sala e para o corredor que dava acesso à cozinha, de dimensões sensivelmente iguais às da sala.

Estas divisões, na maioria das casas, eram de chão de terra batida, coberto com junco ou com feno; este era apanhado nos muros das marinhas e tornava, no Inverno, as casas muito confortáveis. Havia outras – poucas – cujos quartos e sala já eram assoalhados.

As mulheres tinham o grande capricho de as manter sempre muito limpas e caiadas, quer interior, quer exteriormente.

Pela Páscoa, pela Senhora das Febres e pelo S. Gonçalinho, era vê-las, à / 188 / compita, de pincel em punho e caldeiro da cal, a conservar a brancura das paredes das suas casas.

Como já se disse, na sua maioria, as famílias da Beira-Mar viviam da faina da Ria; e, por isso, logo de manhã cedo, saía do Canal de S. Roque uma quantidade enorme de barcos, bateiras e caçadeiras, que transportavam toda aquela gente para os seus trabalhos diários; e, a assistirem a este movimento, era certo e sabido estarem presentes o Joaquim Polónia (de chapéu à salineira) e a Maria Maçarica (com as mãos debaixo do avental).

No regresso, à tardinha, o marnoto e o restante pessoal encontravam pronta a ceia e, então, na cozinha, ao centro e sobre uma esteira de bunho, daquelas que mulheres da Murtosa e do Bunheiro vinham vender a Aveiro, eram as alcatifas daqueles tempos – virava-se uma gamela de amassar a broa, ou uma escudela, onde se colocava a bacia de barro vermelho (vidrada) com a comida, donde todos se serviam, tendo os pais o cuidado de recomendarem – se de caldeirada de enguias se tratava – que cada um comesse só do seu lado, no que, como em tudo, normalmente, eram obedecidos; se, porém, algum dos filhos se esquecia da recomendação e tentava a ir pescar a outro lado uma enguia mais grossa, levava «sapatada» na mão e tinha de pousar o que lhe não pertencia.

Depois de comer, davam Graças a Deus e iam deitar-se.

O acompanhamento das refeições e o «matar da fome», nos intervalos daquelas, fazia-se com broa (pão de milho) que em quase todas as casas se amassava semanalmente, e as mulheres iam cozer aos fornos da ti Eduarda, do Zé Nham, do Jaime do Forno, da ti Lavada e da Maria do Forno.

O pão de trigo só se comia de manhã, com o café, ou se a pessoa estava doente, e ainda em dias de festa; e era-o por ração, apesar de três pães, muitíssimo maiores do que os de agora, custarem um pataco (40 réis ou 4 centavos).

Da broa, porém, cada um podia partir, à vontade, um tracanaz – mas não devia escodeá-la, para evitar o esmigalhaço.

Padarias – que eu me lembre – eram as do Macedo, do Calado, a Bijou (assim chamada por fabricar um pão especial, suponho que de tipo francês, muito mais pequeno do que o normal mas muito mais saboroso), a da Rua do Gravito e a do Frederico. / 189 /

Lembro-me, também, que, quando criança, havia na Rua do Passeio (hoje, do Dr. Miguel Bombarda) uma padaria, a «ti Zefa Zabumba» que fabricava padas que vendia a 15 réis (um centavo e meio da nossa moeda actual) e que a sua clientela comprava, ainda quentinhas, para a merenda. Já de Vale de Ílhavo vinha o pão de c'roa e, de Aradas, as padas que, entre si, rivalizavam pela sua qualidade de fabrico.

Da parte da tarde, nas horas vagas dos serviços caseiros, as mulheres da Beira-Mar escolhiam as casas das pessoas amigas, onde o sol entrava pela porta até à sala, e, para lá, levavam as burriqueiras com as roupas que tinham para pontear ou remendar. Assim, na casa da Luz Besoira, juntava-se muito pessoal que, na sala, costurava e palrava; e, no poial, sentavam-se as pessoas mais idosas (mulheres e homens) que já não podiam trabalhar, e apanhavam uma réstia de sol para os aquecer. À roda desta casa – muito soalheira – estavam a secar as canastras das salineiras.

Na quadra dos santos populares, a Maria Petinguinha, a Isménia Cabana, e outras, pediam ao «ti João Besoiro» (já idoso) para ir buscar a flauta e tocar algumas árias próprias dessa quadra. E, se eles a atendia nesse pedido, elas organizavam um bailarico, comprometendo-se perante a dona da casa onde o realizavam, a esfregar-lhes a sala com sabão de potassa, se é que a sujassem.

Outra das brincadeiras desta quadra era organizarem bichas com muita gente, de mãos dadas, e percorrerem, com grande alegria, o centro da cidade, cantando: «Olha a bicha do tum, tum, tum, que amanhã são trinta e um».

Pelos Santos Mártires (16 de Janeiro) e pela Senhora do Monte (15 de Agosto), à esquina das Ruas do Norte e do Vento (hoje de Manuel Luís Nogueira e do Dr. António Christo), organizavam-se bailaricos, com a actuação de bons cantadores e cantadeiras, sendo muito apreciadas as vozes do Jaime Jàtaviso, do Raul Ventura e das irmãs Apresentação e Maria do Céu.

Era uma vida simples a de toda aquela gente...

E a vida religiosa que viviam?!

As despesas com as festas da Igreja eram feitas pelos mordomos das duas confrarias existentes; a do Senhor Bendito e a do Santíssimo.

A primeira era composta de um número variável de irmãos (houve anos que ultrapassavam os 50), ao passo que a segunda só tinha 12.

A cada uma competia a realização de determinadas solenidades constantes do seu compromisso.

Os mordomos da Confraria do Santíssimo tinham de ser pessoas mais abonadas de teres e haveres, não só porque eram menos, como, também, porque as despesas totais eram maiores. A média que cabia a cada um era de cerca de mil escudos, ao passo que aos das Confraria do Senhor Bendito regulava por trezentos escudos. / 190 /

Quando a safra do sal tinha sido boa, não havia problema para obter parceiros em substituição dos que terminavam o seu mandato, pois, cada marnoto, desejava agradecer a Deus o proveito obtido pelo resultado do seu trabalho, que o tempo permitira que fosse de muita produção.

Havia famílias que não deixavam que o ramo (símbolo do mordomo) saísse de casa, entregando-o de pais para filhos, e destes para aqueles, em anos sucessivos.

Os novos mordomos eram, em dia de eleições, indicados pelos que tinham servido esse ano que, de antemão, tinham combinado o caso com os seus substitutos.

O juiz era eleito por todos, havendo a preocupação de se escolher um daqueles homens bons, por quem todos tinham o maior respeito e consideração e que já tinha servido por várias vezes e tinha dado provas do seu amor e dedicação à confraria.

Quando, na altura das eleições, havia falta de mordamos, procuravam-se alguns dos que já tinham servido e, então, estes faziam-no por dever de cargo.

O dia das eleições já era de festa entre os parceiros.

As festas da Igreja começavam com a da Senhora da Apresentação (2 de Fevereiro), que é a padroeira da freguesia, e na qual, mordomas e mordomos caprichavam, não só na ornamentação do templo como, também, – e principalmente – na escolha do pregador. Vieram, então, a Aveiro, os mais afamados do País – o que custava muito caro – e que tinham a ouvi-los um numeroso público, que enchia por completo a igreja de S. Gonçalo, onde, então, não havia os bancos que hoje existem. Quem não podia estar de pé, tinha de trazer de casa uma cadeirinha, ou um mocho, para se sentar. É que a festa durava umas horas, quer de manhã, quer de tarde.

Estou a lembrar-me de que um ano veio pregar àquela festa um Cónego da Sé de Évora, orador sacro de grande fama. Tendo eu regressado da fábrica na altura em que os assistentes ao sermão vinham a sair do templo, perguntei a uma minha conhecida que tal tinha sido o sermão, obtendo, como resposta que foi muito bom. Voltei a insistir: – E que disse ele? A esta pergunta, respondeu-me: – O pregador fala tão bem que a gente nem o entende!...

De tarde, fui ouvir o sermão e verifiquei que, na verdade, o Cónego usava / 191 / uma linguagem muito académica, que a maioria do seu auditório não atingia; no entanto, falava muito bem...

Para essa festa era cometida ao Mestre António Lé a organização de uma capela; esta, pelo seu custo elevado, não só fazia a festa litúrgica, como, para obter alguns proventos, se exibia, à noite, no Teatro Aveirense, como, aliás, já escrevi numa «Achega» anterior.

A parte coral desta capela era escolhida a dedo; há ainda quem se recorde de ouvir as vozes de Sebastião Amaral, Nuno Meireles, Mário Teles, Joaquim Costa, Mário Andias, etc.

Mais tarde, por inspiração do Dr. José Maria Soares e da família Góis, e como que a rivalizar com esta festa, começou a realizar-se a da Nossa Senhora da Luz. Para esta era contratado, quase sempre, o Padre Castelo Branco, sobrinho do grande escritor Camilo Castelo Branco –, um dos oradores sacros mais afamados daquela época e pregador nas festas mais importantes de todo o País.

O prior – o Padre Pedro – imprimia a todas as solenidades religiosas um esplendor extraordinário. Tinha uma voz forte e bem timbrada e dela tirava proveito, entusiasmando os seus paroquianos, que o admiravam e respeitavam, pois que, apesar de ter o defeito de ser muito agarrado ao dinheiro – ele que vivia uma vida modestíssima! –, era muito bondoso, e muito simples na sua maneira de tratar com toda a gente, pois de gente simples e modesta – da Beira-Mar também – ele descendia.

Na festa das Quarenta Horas (pelo Carnaval) e no Mês de Maria (Maio), a igreja enchia-se de pessoal da freguesia, que acompanhava o seu Prior, nos cânticos, com devoção e júbilo.

E, na procissão da Ressurreição, ao percorrer as ruas do seu bairro, cobertas de junco e flores, com as janelas ornamentadas de colchas de seda, e os seus moradores a lançarem quantidades enormes de pétalas de rosas sobre o pálio, ele entoava, após a música ter parado a sua actuação, o cântico de Aleluia, em conjunto com os mordomos do pálio e acompanhado por toda a gente que ia incorporada na referida procissão, transmitindo a todos a satisfação e a alegria que lhe ia na alma de sincero crente – que o era.

Quem, dos vivos que assistiram a essas solenidades, se não recorda, com saudade, da alegria que, então, sentiu?!

Dos Ramos não vale a pena falar, pois, sobre esta cerimónia, já muito se tem escrito; no entretanto, entendo não ser descabido aqui – e para concluir – recordar um número, dos mais vistosos e dos que maior sucesso fez lá fora, da revista «MÔLHO DE ESCABECHE» denominado / 192 /

QUANDO O NATAL CHEGA

(Coro)

Ramos!

Não há festa

como esta

Nem outra qualquer a vence. Ramos!

Festa da terra

Que encerra

A tradição aveirense.

(Parceiros)

Ai parceira! Ai parceiro

Quero crer que no Natal

Como esta festa de Aveiro

Não há outra em Portugal.

(Coro)

Ramos!

Pelas ruas

Da cidade

Como um canto triunfal...

Ramos!

Vai aqui

Toda a verdade

Dos festejos do Natal.

 

Ramos!

Pelo ar

A estralejar

O foguetório assobia...

Ramos!

Não há festa como esta (bis)

Que tenha mais alegria. / 193 /

 

Ramos!

À noitinha

Se avizinha

O povo todo de Aveiro...

Ramos!

Na folgança

Tudo dança

Junto à porta do parceiro.

 

Ramos!

Ramalhetes

De foguetes

E a charanga a buzinar...

Ramos!

Cachopas e rapazotes

A luz viva dos archotes

Toca a rir, toca a folgar!

Na realidade, era assim a entrega dos Ramos.

79-85

178-193