Todo ou quase todo o pessoal da Beira-Mar
dedicava a sua actividade à Ria, e, isso, ocasionava a existência de
muitas e diversas profissões, algumas das quais já hoje não existem, ou
não são praticadas pelos seus moradores.
/ 179 /
O
marnoto,
de quem toda a gente conhece a profissão, explorava, a meias, com o
proprietário, a marinha, tomando-a como coisa sua, e dispensando-lhe
toda a assistência, mesmo de Inverno, visitando-a com toda a
regularidade, a fim de evitar que o mau tempo ou as correntes mais
fortes danificassem a propriedade.
Mas... dizer que a
exploração era feita a meias, não corresponde à realidade dos
factos, pois aos marnotos competia o pagamento de todas as despesas da
exploração, como os ordenados aos moços, etc., ao passo que o
proprietário da marinha – a quem eles chamavam patrão – recebia
metade do produto da venda do sal, sem descontarem quaisquer despesas,
pois, até da venda, os marnotos tinham de tratar e tomar para si a
responsabilidade do pagamento, isto é, se o comprador não efectuasse a
liquidação, teria o marnoto de liquidar, ao patrão, a parte que a este
competia receber.
Quando a safra era
fraca – e isso acontecia algumas vezes – o dinheiro recebido pelo
marnoto não chegava para pagar as despesas feitas – ou pouco lhe sobrava
– este tinha que empenhar-se para satisfazer os compromissos tomados e
sustentar a família; no entanto, o patrão recebia, limpinha, a sua
quota-parte, isto é, metade do produto da venda do sal sem se importar
da situação em que ficava o seu marnoto. Era, assim, o contrato
existente na exploração das marinhas.
É verdade que havia
patrões – poucos – que acertavam com os marnotos à maneira destes não
terem de tirar de casa os seus bens para obterem os empréstimos
necessários, ou hipotecarem a sua casita, como aconteceu a alguns, que
acabaram por ficar sem ela.
Patrões havia que se
recusavam a fazer as obras indispensáveis à conservação da sua
propriedade, tendo o marnoto de as fazer à sua custa, se é que queria
trabalhar com algum proveito.
É que, então, acontecia
haver marnotos que ficavam sem marinhas, por estas não chegarem para
todos...
Agora, as coisas passam-se
de maneira diferente, como todos sabem: virou-se o bico ao prego. Há quem faça a exploração
a meias, cabendo a cada uma das partes metade do produto líquido
apurado. Outros são contratados como encarregados, mediante uma quantia
fixa pela safra (quer o patrão ganhe ou perca dinheiro), acontecendo que
há deles que não tomam a sério a missão que se obrigaram a desempenhar,
abandonando a marinha a horas a que a sua presença ainda era de
utilidade para obter um melhor rendimento.
Para obviar a este inconveniente, há patrões
que contratam dar uma percentagem por cada vagão que a marinha produzir,
além do rendimento normal (quantidade esta estabelecida, previamente,
entre ambas as partes).
/ 180 /
Ligados à faina das
marinhas temos os
barqueiros
que, nelas, carregam os barcos à pá e à padiola e
transportam o sal para os locais da descarga: armazéns, vagões,
camionetas, etc., competindo-lhes, também, carregarem, dentro do barco,
as canastras das salineiras ou as padiolas dos
homens que depositam o sal nos locais que lhes são indicados pelos
negociantes que o compraram nas marinhas.
A descarga do barco tinha
preço estabelecido; e o armazenista pagava, no fim da semana, o
valor do número de barcos que para ele foram descarregados, competindo a
uma das salineiras distribuir a importância recebida pelas colegas que,
do seu grupo, intervieram nas várias descargas; e, apesar de não serem
sempre as mesmas, nem mesmo o número delas a trabalhar em cada descarga,
raro era que as contas não batessem certo logo na altura do pagamento,
acabando, sempre, por acertá-las, sem que, para tal, houvesse
necessidade de usar papel e lápis.
Este trabalho também está
um pouco facilitado, pois há marinhas em que a carga do sal avulso é
feita por telas transportadoras, o mesmo acontecendo com a descarga no
Cais de S. Roque.
Como já disse numa outra
ACHEGA, antes da C.P. ter montado o Ramal do Cais de S. Roque, o grande
movimento do sal processava-se no Cojo, junto à Ponte-de-Pau que, por
estar em muito mau estado, foi substituída por uma outra, a qual, por
sua vez, deu lugar à que hoje veio facilitar a ligação das duas
freguesias da cidade, principalmente depois que o trânsito dos veículos
que vêm do Sul se começou a fazer pelo Bairro do Dr. Álvaro Sampaio,
pelas novas ruas que nele se abriram.
Os carros de bois, para
onde era baldeado o sal vindo nos barcos, dirigiam-se para a Estação da
C.P. pela Rua do Americano, muito esburacada (actualmente, Rua do
Comandante Rocha e Cunha, mas com outro perfil) e carregado para os
vagões que o levavam para os centros de consumo.
O mercado do Porto era o
principal cliente do sal de Aveiro, não só porque servia uma grande área
como, também, porque pelo porto do Douro se faziam as exportações para
Espanha.
A montagem do Vale do Vouga veio facilitar o
abastecimento das zonas interiores, pois que, até então, os moradores
dessas zonas até Viseu, tinham de recorrer às localidades com estações
da C.P. e tinham que o fazer com os carros de bois, ou carroças de mulas,
que outros meios de transporte não existiam.
/ 181 /
Pela Ria eram abastecidos
os mercados ribeirinhos, quer os do Sul (até Mira), quer os do Norte
(até Ovar).
Por barco, e para estes
mercados, iam de Aveiro outras mercadorias, como materiais de
construção, objectos de cerâmica de barro branco e outros artigos que
por lá não havia.
Aos domingos, o pessoal
das Gafanhas trazia de barco os seus produtos agrícolas para vender no
mercado – batata, feijão, etc. –, levando em troca mercearias,
fazendas e outros artigos, que adquiriam nos estabelecimentos da cidade.
Para facilitar o
transporte do sal para a Estação do Vale do Vouga foi construída a
Estrada Nova do Canal, na qual só muito mais tarde se começaram a fazer
construções.
Aí por 1914 ou 1915, houve
uma grande crise no salgado aveirense. Os comerciantes não só pagavam o
sal por muito baixo preço, como se faziam com os barqueiros que, em vez
das 10 toneladas que lhes competia trazer das marinhas, transportavam
12, 13 e até mais toneladas em cada barco; no entanto, para efeitos
de liquidação, cada barco era considerado como trazendo as 10 T.
Foi então que um grupo de
armazenistas do Porto e Matosinhos se lembrou de organizar a
Empresa do Sal da Ria de Aveiro, comprometendo-se a comprar todo
o sal dos produtores que, com a dita Empresa fizessem contrato a preço
certo, (25$00 por vagão de 10 T.), que era muito melhor do que a média
do que então corria.
Só depois de obterem o
compromisso da grande maioria dos produtores – poucos foram os que ficaram
de fora – é que os organizadores da Empresa a puseram a funcionar.
Senhores da produção, e
com capital suficiente para pagarem o sal que lhes era entregue, puderam
os gerentes da Empresa do Sal estabelecer preços compensadores, que
deram bastantes lucros aos seus accionistas e algum sossego aos
produtores que, a manter-se o mesmo estado de coisas, iriam acabar na
miséria e ter de abandonar as marinhas.
É certo que aqueles que se
não comprometeram com a Empresa do Sal ganhavam mais dinheiro, pois que,
tendo liberdade de vender o de sua produção a quem quisessem, faziam-no,
normalmente, um pouco mais barato do que a tabela da Empresa, mas mais
caro do que aquele pelo qual os seus colegas o vendiam à referida
Empresa.
Terminou a Empresa do Sal
e as marinhas já estavam a dar bom rendimento, tanto assim que a
propriedade se valorizou, sendo certo que se ofereciam quantias muito
altas por aquelas que apareciam para vender, havendo grande afluência de
compradores, que nelas, queriam aplicar os seus capitais.
Passados anos, houve nova crise, que se
pensou resolver organizando uma cooperativa em que entrassem os marnotos
e os proprietários.
/ 182 /
Esta iniciativa, porém,
gorou-se, apesar das muitas reuniões efectuadas para o efeito, porque
apareciam sempre uns «espertos» que, lembrando-se talvez do que tinha
acontecido com a Empresa do Sal, não aceitavam dela fazer parte, para
tirarem vantagens do sacrifício dos restantes. E o resultado viu-se: uma
quantidade de marinhas abandonadas, isto é, sem serem exploradas, porque
não compensava o custo da exploração.
Como os produtores do sal
não quiseram entender-se, foram obrigados, para de algum modo moralizar o
seu comércio, a entrar, por força legal, para o Grémio do Comércio de
Aveiro.
Voltemos a falar das
profissões: havia os ilheiros que, para evitar que o sol
mirrasse o junco, iam para o trabalho de madrugada, sendo certo que, no
Verão, à hora em que o pessoal das marinhas ia para a faina, já eles
tinham apanhado a maré de junco (um barco) que, à tardinha, ao regressar
da marinha (onde também tinham trabalhado) transportavam para o Cais
do Alboi, ou para o Cais dos Santos Mártires.
Os chincheiros
tinham uma vida penosa, pelo que poucos homens a desejavam, visto que,
muitas vezes, estando a descansar nas suas camas, ao chamamento do
arrais tinham de se levantar e, de gabão amarrado com uma corda, ir para
a água, acontecendo muitas vezes terem de por lá ficara noite toda.
É verdade que, depois da
praça feita, isto é, depois que no mercado era vendido o produto do seu
trabalho nocturno, voltavam na bateira para a Ria e, numa mota ou no
muro de uma marinha, cozinhavam a caldeirada, fazendo, no caldo, migas
de broa. Depois de comerem,
colocavam o toldo na bateira e «batiam» uma soneca até que chegasse a
hora da outra maré, o que os refazia dos trabalhos passados na noite
anterior e os preparava para nova faina.
Já os botiroeiros
tinham uma vida mais sossegada visto que, depois de armarem as redes,
dormiam, descansados, nas suas camas, pois o peixe encarregava-se
/ 183 /
de correr para os botirões. De manhã, só havia que recolher os
aparelhos e retirar o peixe que neles tinha caído.
Contra si, tinham, porém,
o facto de estarem sempre com «o credo na boca», pois que, tratando-se de
uma arte ilegal, estavam sujeitos a serem apanhados pela fiscalização
dos marinheiros, que não só lhes apreendiam e queimavam os aparelhos,
como os julgavam no Tribunal da Capitania e os condenavam, mandando-os
uns dias para a cadeia. Aqui, o carcereiro dava-lhes tratamento
especial, mantendo-os na sala livre e não pregando com eles nas enxovias
que ficavam nos baixos da Câmara Municipal, onde hoje estão instaladas a
Delegação de Saúde, a Tesouraria, a Repartição de Obras, etc.
Os serteleiros
pescavam as enguias à noite, tendo por isco as minhocas que
apanhavam nas valetas das ruas e, também, nas lamas da borda da Ria. A
sertela é o aparelho mais simples e mais barato dos pescadores,
pois limita-se a uma cana onde se atam as minhocas.
Os unhantes
(aqueles que apanhavam as enguias à mão, servindo-se das unhas)
conseguiam um maior rendimento do seu trabalho, sobretudo quando nas
praias havia quantidade delas. Era uma profissão especializada, visto
que os unhantes tinham que ir procurar as enguias nos seus esconderijos.
Ainda conheci, com esta
profissão, os Pardais e os Calistos, que
vendiam em suas casas o produto do seu trabalho, quer às mulheres da
praça, quer a particulares que lhes encomendavam enguias para assar,
para fritar, ou para a caldeirada. É que, para cada um destes pitéus,
era escolhida a sua qualidade e tamanho, e tinham preços diferentes,
nada parecidos, é verdade, com aqueles por que, actualmente, é vendida,
mesmo sem escolha, no nosso mercado, esta mercadoria.
Os bolseiros,
os mexilhoeiros e os berbigoeiros, na época
própria, iam apanhar, respectivamente, caranguejos, mexilhões e
berbigões, que noutros tempos só se comiam nos meses que têm R, sendo
certo que, a partir de certa altura, se deixou de respeitar esta praxe e
começaram a comê-los todo o ano.
Isto motivou o quase
desaparecimento dos bancos de berbigão em que a nossa Ria era fértil;
quer junto da Barra, quer junto da Costa Nova, pois, porque a venda
deste marisco passou a dar bom dinheiro, abusou-se da sua apanha,
principalmente para o exportar para o Porto e outras terras, onde era
baptizado com o nome de «amêijoas».
Seria só este abuso a
causa do desaparecimento do berbigão, ou o facto de haver correntes mais
fortes dentro da Ria também nisso teria influência?
Se foi só devido ao abuso,
então aconteceu como à galinha dos ovos de oiro...
Dizem-me que lá para o Rio
Velho há criação de berbigão, mas que, logo que dão com ele, o apanham,
mesmo muito pequeno, sem o deixar crescer, para o venderem nas feiras.
Bolseiros eram o «ti»
Mateus, os seus filhos, e o
António Gamelas
(mais conhecido por António Machula) e é-o, ainda, o
Luís Vinagre,
mais conhecido por Luís Têso, que faz exportação de caranguejos – machos
e fêmeas, não importa – para diversas terras a fim de servirem de
aperitivo à cerveja; é como um substituto da lagosta, do camarão e de
outros mariscos de gosto requintado – que custam muito caro.
O Luís Têso – o «rei do
caranguejo», como ele, a si próprio, se cognomina – é dos poucos que
ainda vai apanhar o mexilhão que, noutro tempo, tanta fama tinha, e era
vendido em espetadas feitas e conservadas em molho de escabeche.
Da revista teatral, com
este nome, transcrevo a seguinte explicação, dada pelo personagem que
fazia o papel:
Sou
Môlho de Escabeche
Natural da beira-ria!
Dou
bom gosto a qualquer peixe
E
sobretudo à enguia.
Mas se
dou bom paladar
Aos
acepipes de Aveiro
Deixo
o estômago a miar
E a
barriga num braseiro.
Môlho
de Escabeche
Bem
feito e bem posto
Ninguém há que deixe
De
provar teu gosto.
Môlho
de Escabeche
Que
belo pitéu!
Quem
rio molho mexe
Sobe
logo ao céu.
/ 185 /
E havia, outrossim, as
peixeiras e as empilhadeiras; aquelas vendiam o
peixe na praça, ou, de canastra à cabeça, pelas portas das casas; e as
segundas empilhavam, em caixas, em canastras ou em cabazes, o peixe
pescado pelas artes da xávega das nossas costas (S. Jacinto e
Costa Nova), transportado para o nosso mercado, nas bateiras dos
mercantéis. Depois de empilhado e devidamente salgado, este peixe
destinava-se, não só ao consumo local, como, também, à exportação, quer
pelo caminho de ferro, quer pelos mais variados transportes terrestres,
como carros, carroças, burros, e, até, à cabeça das mulheres que o iam
vender pelos arredores; e, ainda, por homens que, com duas canastras
suspensas numa vara, atravessada em cima de um dos ombros, o levavam
para muito longe.
E, ao falar das
empilhadeiras, parece-me ser oportuno recordar o quadro da
revista «Môlho de Escabeche» (quadro que era lindíssimo), representando
a Ponte de S. João e tendo como fundo as marinhas.
Os solistas cantavam:
Empilhadeiras!
Vamos
lá, haja alegria,
Cachopas da Beira-mar...
Em
bateiras pela Ria,
Ao
sabor da maresia,
Vem
sardinha pr'a empilhar.
E os do coro:
Rica
filha,
Empilha, empilha...
Empilha bem...
Linda
arte
De
empilhar
A arte
que a gente tem.
Rica
filha,
Empilha sempre
Sem
parar
Que é
destreza
E
maravilha
Esta
arte de empilhar.
Então, o peixe não se conservava com gelo,
como hoje, mas sim com sal, e durava muito tempo, sem se estragar. Quem
das pessoas com mais de 50 anos se não lembra de ter comido umas
sardinhas amarelas, com batatas e nabos e de se regalar com uma bôla com
sardinhas destas?
/ 186 /
Agora, não só não as há,
mas, mesmo que as houvesse, não nos poderíamos consolar com tal petisco,
porque os fígados da geração actual o não permitem.
Quantas vezes, às 3 e 4
horas da manhã, em dias de baile ou de festa, a rapaziada ia à padaria
do Macedo buscar o pão, com as sardinhas que havia encomendado,
aguardando a sua saída do forno; e é certo que o fígado não reagia mal a
tal petisqueira...
No princípio da Primavera,
apanhavam-se cabras (uma espécie de camarão pequeno), que
mulheres da Beira-mar – Luz Copileques, Rosa Ataqueira, Prazeres
Forneira e outras – coziam e iam vender à tarde pelas ruas, para
servirem de merenda. Mais tarde, foi o Abraão que se encarregou deste
negócio e, também, do de caranguejos – só fêmeas, porque os machos não
têm nada que comer.
O pregão usado para esta
venda era: «Cabras quentes!»
Também, em algumas marés,
apanhavam-se moiros (que são uma espécie de cabras, mas
mais escuras). Desta qualidade, eram principais clientes (se não únicas)
as miroas de Marvão e Montoiro, que, muitas vezes, por
demora na chegada das bateiras, dormiam em casa das suas fornecedoras:
Josefa Moreira, Júlia Passarinha, etc.
Os mirões e
as miroas era com as gentes de Aveiro que faziam os seus
negócios, percorrendo a pé, ou de burro (pela estrada), ou de bateira
(pela Ria) a distância que os separa da nossa terra.
Em Aveiro tinham as suas
relações comerciais e pessoais; e era aqui que vinham vender os pães de
breu, o carvão vegetal, etc. e abastecer-se do que necessitavam. Até
havia casas comerciais com argolas chumbadas na parede, destinadas a
prender os burros em que os mirões transportavam as suas mercadorias.
Era em Aveiro que as
miroas de faixa vermelha à roda da cintura, a segurar-lhes as saias
muito curtas (para a época) a fim de as deixar caminhar à vontade, e
descalças, vinham vender as camarinhas, servindo de medida as malgas ou
os punhados.
Da revista «AO CANTAR DO
GALO» recordo os versos do falecido Zé de Fluza (pseudónimo de
José Meireles), no quadro denominado «Mulheres das Camarinhas»:
/ 187 /
São contas polidas
brancas e rosadas
muito bem medidas
por malgas vidradas.
Pérolas brilhantes
dos matos em flor
vimos refrescantes
matar o calor.
Malgas às duas
Duas ou três
Sem falcatruas
E de uma só vez.
E as mulheres das
camarinhas percorriam as ruas da cidade a apregoar:
– Querem comprar
camarinhas?
E a garotada respondia:
–Quantas dá por
um vintém? Ou, então – o que as arreliava muito: – Quantas dá no
vintém?
As casas da Rua do Norte
(hoje, de
Manuel Luís Nogueira) e as da Rua do Vento (hoje, do
Dr.
António Christo) foram construídas em terrenos pertencentes à família
Sacchetti, e a ela pagavam foro que, logo que a Lei o permitiu, os donos
dessas casas remiram, ficando, portanto, livres e alodiais.
As da Rua da Apresentação
(hoje
Dom Jorge de Lencastre) e as das que lhe são adjacentes, foram
construídas na Quinta do Piloto-Mor (ainda hoje essa zona é conhecida
pela Quinta), que eu não sei se teria pertencido, ou não, à família
Sacchetti, a qual, além das propriedades acima referidas, era senhora
e dona de uma grande quinta na Granja da Oliveirinha.
Durante o tempo em que a
referida família não residiu em Aveiro – e foram muitos anos –, era seu
procurador o
Joaquim Ferreira (que tinha por alcunha o Joaquim «Pau
Preto»), cobrador do Banco de Portugal.
As divisões das casas
acima referidas eram: uma sala grande (à frente) com dois quartos pequenos (aos
lados) com portas para a sala e para o corredor que dava acesso à
cozinha, de dimensões sensivelmente iguais às da sala.
Estas divisões, na maioria
das casas, eram de chão de terra batida, coberto com junco ou com
feno;
este era apanhado nos muros das marinhas e tornava, no Inverno, as casas
muito confortáveis. Havia outras – poucas – cujos quartos e sala já eram
assoalhados.
As mulheres tinham o
grande capricho de as manter sempre muito limpas e caiadas, quer interior,
quer exteriormente.
Pela Páscoa, pela Senhora
das Febres e pelo S. Gonçalinho, era vê-las, à
/ 188 /
compita, de pincel em punho e caldeiro da cal, a conservar a brancura
das paredes das suas casas.
Como já se disse, na sua
maioria, as famílias da Beira-Mar viviam da faina da Ria; e, por isso,
logo de manhã cedo, saía do Canal de S. Roque uma quantidade enorme de
barcos, bateiras e caçadeiras, que transportavam toda aquela gente para
os seus trabalhos diários; e, a assistirem a este movimento, era certo e
sabido estarem presentes o
Joaquim Polónia (de chapéu à
salineira) e a
Maria Maçarica (com as mãos debaixo do avental).
No regresso, à tardinha, o
marnoto e o restante pessoal encontravam pronta a ceia e, então, na
cozinha, ao centro e sobre uma esteira de bunho, daquelas que mulheres
da Murtosa e do Bunheiro vinham vender a Aveiro, eram as alcatifas
daqueles tempos – virava-se uma gamela de amassar a broa, ou uma
escudela, onde se colocava a bacia de barro vermelho (vidrada) com a
comida, donde todos se serviam, tendo os pais o cuidado de recomendarem
– se de caldeirada de enguias se tratava – que cada um comesse só do seu
lado, no que, como em tudo, normalmente, eram obedecidos; se, porém,
algum dos filhos se esquecia da recomendação e tentava a ir pescar a
outro lado uma enguia mais grossa, levava «sapatada» na mão e tinha de
pousar o que lhe não pertencia.
Depois de comer, davam
Graças a Deus e iam deitar-se.
O acompanhamento das
refeições e o «matar da fome», nos intervalos daquelas, fazia-se com
broa (pão de milho) que em quase todas as casas se amassava
semanalmente, e as mulheres iam cozer aos fornos da ti Eduarda, do Zé
Nham, do Jaime do Forno, da ti Lavada e da Maria do Forno.
O pão de trigo só se comia
de manhã, com o café, ou se a pessoa estava doente, e ainda em dias de
festa; e era-o por ração, apesar de três pães, muitíssimo maiores do que
os de agora, custarem um pataco (40 réis ou 4 centavos).
Da broa, porém, cada um
podia partir, à vontade, um tracanaz – mas não devia escodeá-la,
para evitar o esmigalhaço.
Padarias – que eu me
lembre – eram as do Macedo, do Calado, a Bijou (assim chamada por
fabricar um pão especial, suponho que de tipo francês, muito mais
pequeno do que o normal mas muito mais saboroso), a da Rua do Gravito e
a do Frederico.
/ 189 /
Lembro-me, também, que,
quando criança, havia na Rua do Passeio (hoje, do Dr. Miguel Bombarda)
uma padaria, a «ti Zefa Zabumba» que fabricava
padas
que vendia a 15 réis (um centavo e meio da nossa moeda actual) e que a
sua clientela comprava, ainda quentinhas, para a merenda. Já de Vale de
Ílhavo vinha o pão de c'roa e, de Aradas, as padas que, entre si,
rivalizavam pela sua qualidade de fabrico.
Da parte da tarde, nas
horas vagas dos serviços caseiros, as mulheres da Beira-Mar escolhiam as
casas das pessoas amigas, onde o sol entrava pela porta até à sala, e,
para lá, levavam as burriqueiras com as roupas que tinham
para pontear ou remendar. Assim, na casa da Luz Besoira, juntava-se muito
pessoal que, na sala, costurava e palrava; e, no poial, sentavam-se as
pessoas mais idosas (mulheres e homens) que já não podiam trabalhar, e
apanhavam uma réstia de sol para os aquecer. À roda desta casa – muito
soalheira – estavam a secar as canastras das salineiras.
Na quadra dos santos
populares, a Maria Petinguinha, a Isménia Cabana, e outras, pediam ao «ti
João Besoiro» (já idoso) para ir buscar a flauta e tocar algumas árias próprias
dessa quadra. E, se eles a atendia nesse pedido, elas organizavam um
bailarico, comprometendo-se perante a dona da casa onde o realizavam, a
esfregar-lhes a sala com sabão de potassa, se é que a sujassem.
Outra das brincadeiras
desta quadra era organizarem bichas com muita gente, de mãos dadas, e
percorrerem, com grande alegria, o centro da cidade, cantando: «Olha a
bicha do tum, tum, tum, que amanhã são trinta e um».
Pelos Santos Mártires (16
de Janeiro) e pela Senhora do Monte (15 de Agosto), à esquina das Ruas do
Norte e do Vento (hoje de Manuel Luís Nogueira e do Dr. António Christo),
organizavam-se bailaricos, com a actuação de bons cantadores e
cantadeiras, sendo muito apreciadas as vozes do Jaime Jàtaviso, do Raul
Ventura e das irmãs Apresentação e Maria do Céu.
Era uma vida simples a de
toda aquela gente...
E a vida religiosa que
viviam?!
As despesas com as festas
da Igreja eram feitas pelos mordomos das duas confrarias existentes; a
do Senhor Bendito e a do Santíssimo.
A primeira era composta de
um número variável de irmãos (houve anos que ultrapassavam os 50), ao
passo que a segunda só tinha 12.
A cada uma competia a
realização de determinadas solenidades constantes do seu compromisso.
Os mordomos da Confraria
do Santíssimo tinham de ser pessoas mais abonadas de teres e haveres,
não só porque eram menos, como, também, porque as despesas totais eram
maiores. A média que cabia a cada um era de cerca de mil escudos, ao
passo que aos das Confraria do Senhor Bendito regulava por trezentos
escudos.
/ 190 /
Quando a safra do sal
tinha sido boa, não havia problema para obter parceiros em substituição
dos que terminavam o seu mandato, pois, cada marnoto, desejava agradecer
a Deus o proveito obtido pelo resultado do seu trabalho, que o tempo
permitira que fosse de muita produção.
Havia famílias que não
deixavam que o ramo (símbolo do mordomo) saísse de casa, entregando-o de
pais para filhos, e destes para aqueles, em anos sucessivos.
Os novos mordomos eram, em
dia de eleições, indicados pelos que tinham servido esse ano que, de
antemão, tinham combinado o caso com os seus substitutos.
O juiz era eleito por
todos, havendo a preocupação de se escolher um daqueles homens bons, por
quem todos tinham o maior respeito e consideração e que já tinha servido
por várias vezes e tinha dado provas do seu amor e dedicação à
confraria.
Quando, na altura das
eleições, havia falta de mordamos, procuravam-se alguns dos que já tinham
servido e, então, estes faziam-no por dever de cargo.
O dia das eleições já era
de festa entre os parceiros.
As
festas da Igreja
começavam com a da
Senhora da Apresentação (2 de Fevereiro), que é a
padroeira da freguesia, e na qual, mordomas e mordomos caprichavam, não
só na ornamentação do templo como, também, – e principalmente – na
escolha do pregador. Vieram, então, a Aveiro, os mais afamados do País –
o que custava muito caro – e que tinham a ouvi-los um numeroso público,
que enchia por completo a igreja de S. Gonçalo, onde, então, não havia
os bancos que hoje existem. Quem não podia estar de pé, tinha de trazer
de casa uma cadeirinha, ou um mocho, para se sentar. É que a festa
durava umas horas, quer de manhã, quer de tarde.
Estou a lembrar-me de que
um ano veio pregar àquela festa um Cónego da Sé de Évora, orador sacro
de grande fama. Tendo eu regressado da fábrica na altura em que os
assistentes ao sermão vinham a sair do templo, perguntei a uma minha
conhecida que tal tinha sido o sermão, obtendo, como resposta que foi
muito bom. Voltei a insistir: – E que disse ele? A esta pergunta,
respondeu-me: – O pregador fala tão bem que a gente nem o entende!...
De tarde, fui ouvir o
sermão e verifiquei que, na verdade, o Cónego usava
/ 191 /
uma
linguagem muito académica, que a maioria do seu auditório não atingia; no
entanto, falava muito bem...
Para essa festa era
cometida ao
Mestre António Lé a organização de uma capela; esta,
pelo seu custo elevado, não só fazia a festa litúrgica, como, para obter
alguns proventos, se exibia, à noite, no Teatro Aveirense, como, aliás,
já escrevi numa «Achega» anterior.
A parte coral desta capela
era escolhida a dedo; há ainda quem se recorde de ouvir as vozes de
Sebastião Amaral,
Nuno Meireles,
Mário Teles,
Joaquim Costa,
Mário Andias, etc.
Mais tarde, por inspiração
do
Dr. José Maria Soares e da família Góis, e como que a
rivalizar com esta festa, começou a realizar-se a da Nossa Senhora da
Luz. Para esta era contratado, quase sempre, o
Padre Castelo Branco,
sobrinho do grande escritor Camilo Castelo Branco –, um dos oradores
sacros mais afamados daquela época e pregador nas festas mais
importantes de todo o País.
O prior – o Padre Pedro –
imprimia a todas as solenidades religiosas um esplendor extraordinário.
Tinha uma voz forte e bem timbrada e dela tirava proveito, entusiasmando os
seus paroquianos, que o admiravam e respeitavam, pois que, apesar de ter
o defeito de ser muito agarrado ao dinheiro – ele que vivia uma vida
modestíssima! –, era muito bondoso, e muito simples na sua maneira de
tratar com toda a gente, pois de gente simples e modesta – da Beira-Mar
também – ele descendia.
Na festa das Quarenta
Horas (pelo Carnaval) e no Mês de Maria (Maio), a igreja enchia-se de
pessoal da freguesia, que acompanhava o seu Prior, nos cânticos, com
devoção e júbilo.
E, na procissão da
Ressurreição, ao percorrer as ruas do seu bairro, cobertas de junco
e flores, com as janelas ornamentadas de colchas de seda, e os seus
moradores a lançarem quantidades enormes de pétalas de rosas sobre o
pálio, ele entoava, após a música ter parado a sua actuação, o cântico de
Aleluia, em conjunto com os mordomos do pálio e acompanhado por toda a
gente que ia incorporada na referida procissão, transmitindo a todos a
satisfação e a alegria que lhe ia na alma de sincero crente – que o era.
Quem, dos vivos que
assistiram a essas solenidades, se não recorda, com saudade, da alegria que,
então, sentiu?!
Dos Ramos não vale a pena
falar, pois, sobre esta cerimónia, já muito se tem escrito; no
entretanto, entendo não ser descabido aqui – e para concluir – recordar
um número, dos mais vistosos e dos que maior sucesso fez lá fora, da
revista «MÔLHO DE ESCABECHE» denominado
/ 192 /
QUANDO O NATAL CHEGA
(Coro)
Ramos!
Não há festa
como esta
Nem outra qualquer a
vence. Ramos!
Festa da terra
Que encerra
A tradição aveirense.
(Parceiros)
Ai parceira! Ai parceiro
Quero crer que no Natal
Como esta festa de Aveiro
Não há outra em Portugal.
(Coro)
Ramos!
Pelas ruas
Da cidade
Como um canto triunfal...
Ramos!
Vai aqui
Toda a verdade
Dos festejos do Natal.
Ramos!
Pelo ar
A estralejar
O foguetório assobia...
Ramos!
Não há festa como esta
(bis)
Que tenha mais alegria.
/
193 /
Ramos!
À
noitinha
Se avizinha
O povo todo de Aveiro...
Ramos!
Na folgança
Tudo dança
Junto à porta do parceiro.
Ramos!
Ramalhetes
De foguetes
E a charanga a buzinar...
Ramos!
Cachopas e rapazotes
A luz viva dos archotes
Toca a rir, toca a folgar!
Na realidade, era assim a entrega dos Ramos.
|